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Jovem negro testemunha roubo de moto, mas é preso e condenado pelo crime

Jovem negro testemunha roubo de moto, mas é preso e condenado pelo crime
Por Marcelo Oliveira* do UOL

O empregado doméstico Joel Rodrigues do Nascimento Júnior, 21, está preso preventivamente desde junho de 2020 e foi condenado em primeira instância a 5 anos e 4 meses de prisão por roubo após testemunhar dois ladrões abandonarem uma moto roubada em sua rua, no bairro Jardim Sul, zona sul de São Paulo, afirmam ao UOL nove testemunhas e a defesa do jovem.

Sua prisão e condenação foram baseadas apenas nos testemunhos de um policial militar e no reconhecimento de Joel pelo dono da moto. A defesa de Joel afirma que o reconhecimento — no 26º DP (Sacomã) — foi ilegal.

A prisão de Joel mobilizou os moradores da rua Baldomero Fernandez, onde mora, que escreveram dezenas de cartas para serem anexadas ao processo, e pedem que as testemunhas que viram os verdadeiros autores do roubo da moto sejam ouvidas, bem como as testemunhas que viram que Joel não tocou no veículo.

Só 2 das 5 testemunhas foram ouvidas

Apenas duas das cinco testemunhas arroladas pela defesa de Joel foram ouvidas pela juíza Maria Domitila Manssur, da 16ª Vara Criminal, no dia da audiência de instrução e julgamento de seu caso, em novembro do ano passado.

A Polícia Civil e o Ministério Público não ouviram outras pessoas além do PM e das vítimas e não produziram novas provas. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal garantiu o poder de investigação do MP, que pode realizar diligências e colher testemunhos.

A reportagem do UOL leu as mais de 300 páginas do processo e conversou com nove testemunhas e parentes de Joel e o advogado da vítima. Segundo afirmam, na noite de 18 de junho, Joel saiu de casa para pedir um ferro de passar roupa emprestado para sua prima e vizinha, a recepcionista Juliana de Oliveira, 38.

Era domingo e no dia seguinte ele tinha uma entrevista de trabalho marcada.”
Juliana de Oliveira, prima e vizinha de Joel

Desempregado, Joel procurava emprego permanente enquanto fazia cursos. Para obter alguma renda, ele e a namorada, Keila Silva, trabalhavam como empregados domésticos na casa de uma vizinha.

Joel e Juliana haviam feito o vestibulinho da Etec na véspera e conversavam sobre a prova quando dois jovens passaram empurrando a moto Tenere, 250, roubada de um casal cerca de uma hora antes “embaixo da ponte da Imigrantes”.

B.O., inquérito e denúncia não informam local e horário correto do roubo

 

O boletim de ocorrência informa que o roubo ocorreu na rua de Joel, mas a vítima — cujo nome será preservado — narra no histórico da ocorrência que estava sob a ponte quando “mediante grave ameaça” foi abordada por dois rapazes negros em outra moto.

Existem 11 pontes ou passagens sob a rodovia entre São Paulo e Diadema, de onde vinha a vítima. O erro da Polícia Civil foi repetido pelo MP na denúncia, que reafirmou que o crime ocorreu na rua Baldomero Fernandez. O B.O. também não informa a hora em que o crime ocorreu, mas a hora da localização da moto: 19h20.

A ponte da Imigrantes mais próxima da casa de Joel fica a 3,2 km da casa dele. Joel havia chegado em casa aquele dia às 19h, após ter cortado o cabelo para a entrevista de emprego no dia seguinte. Ele enviou uma foto para a namorada do novo corte assim que chegou. O UOL viu a foto no celular de Keila.

Para o advogado de Joel, Hugo Nogueira da Cruz Urbano, a falta de hora e local preciso do roubo também dificultam a defesa de Joel, pois “não se pode precisar onde estaria o réu na hora que se deu o roubo”.

Após passarem por Joel e Juliana, os ladrões tentaram, sem sucesso, desativar o sistema antirroubo da moto e, por isso, a abandonaram, fugindo com o baú cheio de objetos das vítimas em direção à comunidade da Creche, a menos de 100 metros da casa de Joel. “Onde está o baú? Se Joel roubou a moto, porque o baú não foi localizado?”, questiona Keila Silva, 20, noiva do jovem.

Os ladrões deixaram a moto estacionada em frente à casa em que morava o entregador Weverton Lima Gomes. Joel foi até o vizinho e o avisou para não tocar na moto, que era produto de roubo.

A moto estava parada e me atrapalhava a entrar com a minha moto. O Joel não encostou, nem sentou na moto, como o policial disse. Ele foi parado pela PM quando já descia para a casa dele.”
Weverton Lima Gomes, vizinho de Joel

PM é a principal testemunha do caso

O policial de que fala o entregador é o soldado da PM Salvatore Riccetti, 40, lotado na época no 2ª companhia do 3º Batalhão da PM.

A versão de Riccetti é a que prevalece no boletim de ocorrência e no processo. Ele afirma que chegou à rua Baldomero Fernandez e que viu Joel estacionando a moto e que em seguida o jovem desceu a rua em direção contrária a dos policiais. Abordado por eles, disse que sabia que a moto era roubada e negou o crime.

Mesmo assim Joel foi preso em flagrante pelo roubo.

O PM disse que eram só ele e Joel na rua na hora da abordagem, o que é desmentido por todas as pessoas ouvidas pelo UOL. Todas negam que Joel tocou na moto. A prova técnica também. Laudo do Instituto de Criminalística, juntado aos autos em agosto, um mês depois de a prisão preventiva de Joel ter sido decretada, aponta não terem sido encontradas impressões digitais no veículo.

Quem estava na rua na hora questionou a prisão de Joel. Uma dessas pessoas foi a irmã dele, Kauiny Pereira Nascimento, que estava com o irmão na hora da abordagem policial.

Eles jogaram a viatura em cima da gente e eu apertei a mão do Júnior [como a família chama Joel] e o PM gritou ‘encosta ladrãozinho sujo’. Eu falei que o Júnior não é ladrão e ele disse: ‘Cala a boca sua favelada barraqueira’.”
Kauiny Pereira Nascimento, irmã de Joel

Riccetti foi condenado a um ano de prisão pelo crime militar de desobedecer ordem superior. O Ministério Público pediu a perda do cargo, mas o Tribunal de Justiça Militar de São Paulo, por maioria, negou o pedido do MP.

O mesmo PM foi preso em 2013 acusado de posse de armamento de uso restrito. Foi processado e absolvido, segundo a Polícia Militar. A corregedoria da PM chegou a abrir procedimento para apurar o caso, mas ele foi arquivado.

Riccetti também respondeu a um processo e dois inquéritos por homicídio. Os três foram arquivados.

Reconhecimento foi ilegal, sustenta defesa

A prisão em flagrante de Joel foi confirmada pela Polícia Civil após ele ter sido reconhecido na delegacia pela vítima.

A família de Joel narra que ele foi mostrado sozinho para a vítima e sua namorada. Segundo o advogado de Joel, Hugo Urbano, o jovem foi apresentado ao lado de pessoas brancas. O policial responsável pela prisão teria permanecido ao lado da vítima.

Urbano sustenta que o reconhecimento foi irregular, pois um negro ser apresentado sozinho ao lado de pessoas brancas, fere o CPP (Código de Processo Penal). O artigo 226, inciso II, do CPP prevê que a pessoa que deve ser reconhecida deve estar “ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança”.

No reconhecimento não foi pedido à vítima que descrevesse os ladrões, o que é previsto no inciso I do mesmo artigo do CPP. Não se sabe, por exemplo, se eles estavam de capacete, apenas que usavam uma moto preta. Segundo o advogado, também “não se sustenta a afirmação que ele foi reconhecido com certeza pela vítima”.

Juíza questiona falha no flagrante

Preso em flagrante em 18 de junho de 2019, Joel passou algumas horas preso, até ser libertado após a audiência de custódia, realizada no dia 19. A ordem de soltura foi da juíza Alexandra Miguel, sob a condição de que Joel se apresentasse à Justiça periodicamente, pois ele era primário, tinha endereço fixo e havia sido preso longe do local do roubo.

A juíza também anotou em sua decisão que havia dúvida sobre como qualificar o crime, pois a autoridade policial “nem sequer descreveu em que consistiu a grave ameaça” que teria sido feita às vítimas.

 

Em 25 de junho de 2019, o MP recebeu os autos do processo e denunciou Joel dois dias depois, sem realizar ou pedir qualquer diligência. O relatório do inquérito da Polícia Civil era uma cópia do flagrante, e o inquérito foi concluído também em 19 de junho, algumas horas após o boletim de ocorrência.

A juíza Maria Domitila assumiu o caso e, em 11 de julho de 2019, tornou Joel réu e decretou sua prisão preventiva para a garantia da ordem pública. Segundo a juíza, “a parcela ordeira da sociedade não aguenta mais a violência”.

As advogadas que representavam Joel na época decidiram não apresentá-lo quando chegou à casa de Joel a intimação, pois esperavam reverter a prisão no Tribunal de Justiça, o que não ocorreu.

Joel só foi preso em 30 de junho de 2020 por PMs da Rota, que receberam uma denúncia anônima. Era de manhã e ele dormia em casa. A conduta dos PMs é elogiada pela defesa e pela família de Joel.

Ladrões eram mais escuros e magros que Joel

Juliana e a ajudante de cozinha Adriana de Abreu Nunes, 33, viram os ladrões. Juliana afirma que eles eram negros, mas de tom de pele mais escura que a de Joel. Um dos rapazes, descreve, não era tão magro quanto o jovem, mas de sua altura. “Quando saí para a padaria, os vi subindo com a moto. O Joel estava do outro lado da rua, conversando com a Juliana”, afirma Adriana.

Adriana foi arrolada pela defesa para depor no julgamento de Joel, mas a juíza cancelou seu depoimento por entender que ele foi pedido fora de prazo. O depoimento de outras duas testemunhas também foi negado.

Segundo a defesa de Joel e sua família, os verdadeiros autores do roubo da moto foram presos em duas outras ocorrências na zona sul de São Paulo. O UOL está tentando falar com familiares dos presos para tentar localizar seus advogados. Caso um posicionamento seja enviado, ele será publicado.

Várias pessoas no bairro afirmam saber quem são os autores do crime, mas temem represálias. “A lei do ‘não sei, não vi’ é mais forte aqui”, escreveu um amigo de Joel em uma das 16 cartas anexadas ao processo.

O Júnior já teve carteira assinada, fez curso de logística na PUC, nunca passou pela Fundação Casa. Será que por ter nascido negro e pobre você já nasceu condenado neste mundo? Queremos ser ouvidos. Ou pobre e negro não tem vez?”
Lucinea Pereira dos Santos Nascimento, 53, operária, mãe de Joel

Em recurso ao Tribunal de Justiça, a defesa de Joel pediu a anulação do julgamento por falta de imparcialidade na condução do processo e que o jovem possa recorrer em liberdade até o fim do processo.

MP e Secretaria de Segurança dizem que prisão está de acordo com a lei

Nota da assessoria de comunicação do Ministério Público de São Paulo afirma que o processo de Joel “obedeceu aos princípios constitucionais do devido processo legal, ampla defesa e contraditório, não havendo que se falar em condenação sem provas de um inocente” e que mais testemunhas de defesa não foram ouvidas, pois foram apresentadas pela defesa fora de prazo.

A nota do MP não respondeu ao UOL sobre o fato de o órgão ter levado em conta somente o depoimento do policial e das vítimas. A Secretaria de Segurança Pública também não respondeu essa questão.

Segundo a Secretaria de Segurança Pública, “o reconhecimento se deu em sala própria e de acordo com os protocolos exigidos (…) Todos os procedimentos de polícia judiciária adotados no flagrante foram realizados nos termos da legislação vigente”.

UOL pede entrevistas com PM e juíza, que não falam

O UOL pediu uma entrevista com a juíza Maria Domitila Manssur. Por meio de nota, ela afirmou que a Lei Orgânica da Magistratura impede entrevistas de juízes sobre casos em andamento.

Segundo a assessoria do TJ, testemunhas não foram ouvidas, pois a defesa perdeu prazo para arrolar novas testemunhas e “a audiência foi conduzida dentro da normalidade, sem pressa ou intercorrências”.

A reportagem também pediu à PM uma entrevista com o soldado Salvatore Riccetti, mas a PM não respondeu a respeito, apenas sobre a questão relativa ao processo que ele respondeu no passado.

O dono da moto roubada foi procurado pelo UOL para falar sobre as circunstâncias do reconhecimento, mas não quis conversar com a reportagem.

Caso algum deles envie um posicionamento, ele será publicado.

*O UOL descobriu o caso de Joel por intermédio do estudante de jornalismo Marcos Hermanson Pomar. Ele pesquisava o caso do assassinato do jovem Guilherme Guedes, no bairro da Vila Clara, e utilizou reportagens do UOL no trabalho de conclusão de curso. O bairro é vizinho ao de Joel e lá ele conheceu o caso do jovem e encaminhou à reportagem uma cópia do processo.

Publicado no UOL.

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