Para Wilson Rocha, lavajatismo alçou extrema direita ao poder e gerou desgaste da imagem do próprio MPF.
Os excessos cometidos por operações como a Lava Jato minaram a credibilidade do Ministério Público Federal, o MPF, e colocam em xeque o modelo que a Constituição de 1988 definiu para a instituição, afirma o procurador da República Wilson Rocha em entrevista ao Intercept.
“Com a Lava Jato e a ascensão da extrema direita no Brasil, essa harmonia se perdeu. Várias instituições passaram a ter ressalvas em relação ao Ministério Público”, afirmou. “Organizações muito importantes da sociedade civil hoje olham para nós com desconfiança, especialmente as do campo da esquerda”.
“Isso demonstra a corrosão da legitimidade, do capital institucional enorme que o MPF ainda tem, acredito eu, junto à sociedade. Acho que a Lava Jato e esse modelo de combate à corrupção que a instituição promove hoje põem em risco esse capital”, me disse Rocha durante uma conversa de 50 minutos por telefone.
Os constituintes brasileiros projetaram o Ministério Público como um órgão garantidor de direitos, com atenção especial aos direitos difusos e coletivos – aqueles que pertencem à toda a sociedade, sem terem um dono específico, como por exemplos os do consumidor ou o direito à preservação do meio ambiente.
Progressivamente, porém, a instituição vem privilegiando sua face policial, óbvia em operações como a Lava Jato, que hoje são seu cartão de visitas. Um caminho errado, inclusive, para o combate à corrupção, acredita o procurador.
“Para quem tem um martelo na mão, tudo vira prego. O martelo na mão do MPF é a ação penal. E tem coisas que não se arrumam com ação penal”, argumentou. Entre elas, os crônicos problemas dos sistemas político e eleitoral brasileiros.
Para Rocha, a solução deles “passa por uma sociedade mais autônoma, inclusive em relação às instituições, com capacidade para reivindicar seus direitos de forma mais efetiva, controlar o gasto público de forma mais efetiva. O controle social da probidade administrativa é algo que se discute muito pouco no Brasil. É um caminho mais difícil, mais lento, que não dá protagonismo às instituições, que não transforma nenhum agente estatal em herói”.
Pior, a ânsia por protagonismo político personalizada em figuras como Deltan Dallagnol, Roberson Pozzobon, Carlos Fernando dos Santos Lima e Diogo Castor de Mattos – figuras mais vistosas e vaidosas da Lava Jato no MPF – coloca em xeque o próprio desenho institucional do órgão. O mesmo Ministério Público que persegue e expõe acusados em ações midiáticas é o responsável por garantir o acesso a todos os direitos previstos na Constituição. Como, por exemplo, à ampla defesa em processos criminais.
“Não há Ministério Público no mundo com esse perfil, o de uma instituição que é titular da ação penal e, ao mesmo tempo, tem instrumentos poderosos para a tutela de direitos difusos coletivos”, Rocha observou. “Eu acho que a Lava Jato e esse modelo de combate à corrupção mostram o colapso dessa arquitetura institucional. Eu particularmente hoje defenderia [a existência de] instituições diferentes, em que essas duas funções estivessem separadas”.
Talvez nada simbolize tão bem o desprezo da geração de procuradores e juízes alçada ao estrelato pela Lava Jato pelos direitos coletivos e difusos quanto o desdém demonstrado pelo então ministro Sergio Moro pela Funai. O retorno da subordinação da Funai ao Ministério da Justiça era reivindicação do movimento indígena – no governo Bolsonaro, a fundação fora colocada sob o ministério de Damares Alves. Ela acabou ocorrendo, mas sob protestos de Moro – como se coubesse a um servidor público escolher do que quer e do que não quer cuidar.
É justamente na defesa de indígenas, meio ambiente e direitos humanos que Wilson Rocha Fernandes Assis, 39 anos, especializou-se no Ministério Público Federal. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Sevilha, Espanha, ele cursou especialização e mestrado em História na Federal de Goiás – chegou a lecionar a disciplina para alunos do ensino médio. Atualmente, ele é procurador da República em Itumbiara, interior do estado.
Rocha atuou em casos notórios, como o que garantiu a kayapós uma indenização pela queda de um avião da Gol na terra indígena Capoto Jarina, em 2006, e a força-tarefa Araguaia, que trabalhou no cumprimento da sentença emitida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund.
Representou o MPF no Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais de 2011 a 2020 e ocupa o assento da instituição no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, que regula o acesso a conhecimentos de povos tradicionais associados para pesquisa científica, bioprospecção ou desenvolvimento tecnológico. Também é membro professo da Ordem Franciscana Secular.
Conversei com Wilson Rocha na véspera de mais um julgamento no Conselho Nacional do Ministério Público que Deltan Dallagnol conseguiu adiar (ele acabaria absolvido, em outro caso, na semana seguinte, graças a dezenas de postergações obtidas pela defesa). Rocha é, ele mesmo, processado no CNMP por uma postagem no Twitter, além de outras duas que curtiu e compartilhou, respectivamente, e que foram consideradas ofensivas ao presidente Jair Bolsonaro.
“A indignidade do presidente já é de conhecimento público. Resta-nos lembrar a indignidade dos que o apoiam, especialmente o alto oficialato das Forças Armadas que compõe seu governo e o séquito de @SF_Moro na Lava Jato”, escreveu, após Bolsonaro sugerir que sabia o que ocorrera com Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, desaparecido na ditadura militar e pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz. O presidente, como de hábito, recuou sem se desculpar.
“Não espero ser absolvido por prescrição. Espero ser absolvido porque eu de fato não vejo nenhum problema naquilo que escrevi”, ele me disse. O julgamento está marcado para amanhã, 8 de setembro.
Leia os principais trechos da entrevista.
Intercept – O Ministério Público nasceu como um garantidor de direitos mas, desde os anos 1990, vem se tornando progressivamente uma instituição policial, que mede a eficiência de seu trabalho na medida em que prende e condena gente. Como essa transformação aconteceu? Como o “braço policial” ganhou o protagonismo do MP?
Wilson Rocha – O protagonismo do que você chama de “braço policial” do Ministério Público é decorrente da busca de protagonismo da instituição frente às demais do estado brasileiro e da própria sociedade. A ação penal é o instrumento mais poderoso à disposição do Ministério Público. Era até certo ponto previsível que a instituição lançasse mão desse instrumento na busca por protagonismo. É algo preocupante, que merece reflexão crítica da sociedade, mas principalmente do próprio Ministério Público. É uma estratégia que gera problemas como o encarceramento [em massa], que a sociedade brasileira precisa enfrentar, refletir se é um caminho adequado para punição e repressão de crimes e a construção de uma sociedade mais justa. Também gerou um atrito muito forte com os outros atores institucionais da República, uma crise aguda entre instituições para qual a gente ainda não enxerga uma solução a curto prazo.
‘O MPF claramente confundiu o seu papel institucional com o protagonismo que a sociedade deveria ter em um projeto de iniciativa popular’.
O que me causa mais preocupação, do ponto de vista de funcionamento das instituições políticas do país, é a criminalização da atividade política que a gente viu pelo menos a partir do mensalão e, com muita intensidade, a partir da Lava Jato. É o enfrentamento pelo direito penal dos problemas decorrentes do nosso sistema eleitoral. Esse é um nó que desestabiliza o funcionamento do conjunto das instituições do país e que precisa ser repensado, não só pelo MPF, mas pelo conjunto das instituições do país e pela sociedade, que deve opinar a respeito de qual modelo ela entende adequado. A política tem os seus problemas, o sistema eleitoral tem os seus problemas, e isso é indiscutível. Mas precisamos refletir se é o direito penal o caminho para resolvê-los.
Qual seria o melhor caminho?
O protagonismo que o MPF busca cabe à sociedade. Acredito que a via democrática, ainda que mais lenta, é o caminho adequado para resolver esses problemas. Acredito em um protagonismo dos movimentos sociais, da sociedade civil, na correção desses problemas que a gente identifica no sistema político. O Ministério Público pode, sim, caminhar ao lado da sociedade, mas sempre respeitando o protagonismo do cidadão. Um momento muito claro em que o MPF passou o carro na frente dos bois foi no pacote das dez medidas contra a corrupção. Aquilo foi um projeto de lei que foi apresentado à sociedade como de iniciativa popular, mas todo mundo sabia que havia sido gestado e era patrocinado pelo MPF, inclusive com a utilização de banco de horas de servidores para colher assinaturas e dinheiro de publicidade oficial. O MPF claramente confundiu o seu papel institucional com o protagonismo que a sociedade deveria ter em um projeto de iniciativa popular, como o próprio nome diz.
A proposta de emenda constitucional 37, que pretendia impedir promotores e procuradores de investigar, se tornou um dos grandes alvos das hoje célebres jornadas 2013. Olhando retrospectivamente, rejeitar a PEC 37 foi um erro, desbalanceou o equilíbrio entre os poderes?
A PEC 37 era muito complicada. Pretendia que a investigação criminal ficasse concentrada na polícia. Não pode haver monopólio do poder de investigar ilícitos. Isso é atribuir a uma única instituição um poder descomunal. Ela iria fortalecer muito o aparato policial, e eu acredito que poderíamos ter um agravamento do quadro que tivemos. Há um conjunto de instituições que lidam com repressão a crimes e que devem atuar de forma firme, mas sempre dentro da legalidade: a Receita Federal, nos órgãos de controle internos do Poder Executivo, as Controladorias da União, dos estados, o Banco Central. Esse conjunto de instituições deve zelar pela integridade do funcionamento do estado, todos eles têm e devem exercer o poder de investigar. De modo algum isso poderia ficar na mão de uma só corporação, seja o Ministério Público, a polícia ou qualquer outra.
É razoável dizer que operações como a Lava Jato, que acorrentou pelos pés o ex-governador Sérgio Cabral Filho ao prendê-lo pela segunda vez, transportou para as elites a realidade policial que se vive nas periferias, com truculência e prisões arbitrárias?
O episódio de Sérgio Cabral demonstra a tentativa de fazer isso, ainda que simbolicamente. E esse é o trunfo da Lava Jato: dizer que finalmente a punição, a repressão penal de crimes chegava à elite, alcançava os crimes de colarinho branco. Era uma cena mais simbólica, retórica, do que real. A gente sabe que, num plano mais profundo, a Lava Jato agravou os problemas de corrupção no Brasil. Basta ver a realidade do país hoje, a gravidade das investigações que alcançam o presidente da República. A realidade é muito mais complexa. E o caminho para resolver os problemas, aprimorar as instituições, passa não só pelo Ministério Público Federal ou a Polícia Federal, mas pela democratização do conjunto das instituições do país. Passa por uma sociedade mais autônoma, inclusive em relação às instituições, com capacidade para reivindicar seus direitos de forma mais efetiva, controlar o gasto público de forma mais efetiva. O controle social da probidade administrativa é algo que se discute muito pouco no Brasil. É um caminho mais difícil, mais lento, que não dá protagonismo às instituições, que não transforma nenhum agente estatal em herói. Por isso, talvez ele seja um caminho menos tentado. E a triste história desse país nosso é construir esses falsos heróis que surgem e desaparecem do dia pra noite, enquanto a realidade das pessoas continua, infelizmente, muito ruim.
A Lava Jato fez de Lula um alvo, o colocou no centro de um esquema de corrupção na Petrobras (o que ele nega) e se esforçou para condená-lo. Sergio Moro colaborou com os procuradores na acusação, condenou Lula, ajudando a tirá-lo da eleição presidencial, e depois foi ser ministro de Jair Bolsonaro. Depois de serem traídos pelo bolsonarismo, força-tarefa e Moro negam ter ajudado a eleger Bolsonaro. Qual a responsabilidade deles no atual estado de coisas? A história cobrará a Lava Jato por nos ter legado um presidente de extrema direita com arroubos autoritários?
Antes de ser procurador da República, eu fui professor de história por sete anos. Isso talvez me ajude a ter mais visão de longo prazo do que a maioria dos meus colegas. Essa fatura já chegou, na verdade. O momento trágico dessa aliança do lavajatismo com o bolsonarismo foi a ida do Moro ao governo Bolsonaro. Antes desse gesto do juiz da operação, a gente iria ficar discutindo isso [a parcialidade da operação] a vida inteira e não iria chegar a uma conclusão. De um lado, os que defendem a operação dizendo que não havia predileção política. De outro, os críticos afirmando que a aliança existia e tirou o único partido que podia de fato ameaçar esse projeto de poder que hoje controla o país. Mas, no momento em que Moro abandona a toga e vai ser ministro da Justiça do governo Bolsonaro, eu acho que não há mais espaço para discussão nenhuma. Os fatos estão aí, e contra os fatos é difícil brigar. E há outros episódios: o já aposentado membro da operação…
…Carlos Fernando dos Santos Lima.
O procurador geral da república Carlos Fernando disse, em entrevista pública, que a operação tinha sua predileção política e era o Bolsonaro. Os equívocos já estão aí, são explícitos. A fatura já chegou pra instituição. Há internamente uma discussão muito intensa sobre a defasagem salarial no MPF, cujos membros há muito tem reajustes muito abaixo dos níveis da inflação. Entre os colegas, há quase um consenso sobre o fato de que isso é uma retaliação da classe política, atingida pelo trabalho do MPF. Fazendo uma análise menos condescendente e mais crítica, eu penso que isso é uma resposta aos desequilíbrios institucionais gerados por determinadas atuações do MPF.
Do ponto de vista político, os erros da instituição serão muito explorados pelos grupos diretamente atingidos. Mas, em uma perspectiva histórica, haverá também um juízo crítico daqueles setores que investigam os meios para se alcançar instituições políticas que cumpram a finalidade de limitar o arbítrio e democratizar o exército do poder. Eu acho que é difícil uma conclusão diferente de que o lavajatismo foi um dos componentes políticos da eleição do atual presidente da República.
Você falou de retaliações. É razoável dizer que vemos hoje, sob o governo Bolsonaro e com Augusto Aras no comando, o Ministério Público Federal na sua maior crise desde 1988?
O conjunto das instituições sofre os reflexos do momento político que a gente vive. Eu trabalho muito próximo à questão indígena, à questão ambiental, e o desmonte da Funai, do Ibama, é muito evidente, assim como a fragilização das leis, das normas que protegem os direitos coletivos, é enorme. Eu acho que todas as instituições estão fragilizadas hoje, mas nem todas tiveram responsabilidade pela situação. Mas, em relação ao MPF, essa responsabilidade existe. Eu acho que a instituição errou muito, em vários momentos, ao pretender ter um protagonismo que não deveria, ao não construir uma relação com as demais instituições de uma forma mais horizontal, menos arrogante. Isso atraiu uma má vontade em relação às demandas e às reais necessidades da instituição.
Acredito que tudo isso é decorrência de erros que a instituição teve na condução do seu trabalho. A gente atritou em momentos em que não precisava, houve vazamentos seletivos [na Lava Jato] em momentos sensíveis da vida política do país. Isso tudo hoje é visto de forma muito crítica, e é claro que há uma fatura a ser saldada aí. Há também uma insatisfação muito grande de atores muito poderosos da vida política em razão do trabalho bem feito que o Ministério Público Federal fez. A questão indígena, por exemplo, gera atritos políticos muito sérios dentro do Congresso.
‘O martelo na mão do MPF é a ação penal. Mas esse martelo não serve pra resolver qualquer coisa’.
Se, nesse caso, as retaliações que o MPF sofre são injustas, há também um desequilíbrio da nossa atuação em outros casos. E aí há em alguma medida uma tentativa de devolver a instituição aos seus limites constitucionais e institucionais. A gente é cobrado, e às vezes de forma dura. Ninguém está aí no cenário político brincando, não é? Ninguém é denunciado e volta pra casa sorrindo, não é? Tem que haver uma responsabilidade muito grande, que em algum momento não foi levada à sério como deveria. A gente tem que ter muito cuidado com entrevistas logo após deflagração de operações [um hábito da Lava Jato mantido até recentemente]. A apresentação do PowerPoint foi um erro crítico que, na minha opinião, gerou um desgaste totalmente desnecessário, criando um personagem político que, goste-se ou não, tem sua importância.
Eu proponho que a gente seja uma instituição com um perfil mais baixo, mais low profile, que a gente faça o nosso trabalho de uma forma mais discreta. E compreensiva. E não falo de compreensão com a instituição, mas com os limites históricos com que todo país é obrigado a lidar. Para quem tem um martelo na mão, tudo vira prego. O martelo na mão do MPF é a ação penal. Mas esse martelo não serve pra resolver qualquer coisa, qualquer problema.
Às vezes a martelada quebra as coisas…
Sim. E tem coisas que não se arrumam com martelo, não se arrumam via ação penal. A gente deve ser capaz de construir soluções mais complexas para problemas que são complexos. Pensar o nosso sistema político, os problemas que ele tem, é algo muito complexo. O MPF pode, sim, construir um diálogo respeitoso com as instituições e com a sociedade. Mas eu vejo com muito ceticismo a nossa capacidade de reduzir isso a denúncias e imputação criminal, pelo menos segundo a boa dogmática política, dentro dos trilhos das garantias constitucionais que a gente deveria seguir.
O procurador Deltan Dallagnol ponderou longamente sobre uma candidatura ao Senado, que não descarta para 2022, e disse achar necessário “um candidato do MPF por estado”. Qual sua impressão sobre essa politização do MPF e da transformação de uma operação contra a corrupção em partido político? Quão danoso é isso para a independência do MPF?
Não vou comentar as supostas pretensões políticas do colega, reveladas pela Vaza Jato. Limito-me a considerar que é um grave problema que procuradores e promotores tentem capitalizar politicamente a partir dos trabalhos realizados no MPF. Qualquer que seja o membro do Ministério Público que esteja fazendo isso deve ter acompanhamento da corregedoria, vai precisar se afastar da carreira e construir a sua candidatura pelas vias ordinárias, se filiar a um partido político, construir uma base eleitoral para ser eleito.
Nenhum problema quanto a isso. O problema é tentar viabilizar esse projeto pessoal, de um grupo de colegas, por meio do trabalho da instituição. Isso daí ameaça a credibilidade do Ministério Público, põe a perder um capital institucional enorme que foi angariado graças a um trabalho excepcional de tantos grandes e bons colegas pelo menos a partir de 1988. É um problema muito grande. O membro do MPF não pode ter filiação partidária, um indicativo claro de que o nosso trabalho não deve servir a interesses político-eleitorais de um membro. É um problema que eu acho que deve ser tratado no âmbito correcional.
Você tem um histórico de atuação em defesa dos indígenas brasileiros. O governo Bolsonaro é composto por gente que “odeia o termo povos indígenas”, e estamos vendo o impacto disso na prática. O MPF está sendo capaz de agir com ênfase suficiente para impedir um massacre? Ou os excessos da Lava Jato hoje o colocam em uma posição mais frágil para atuar?
O Ministério Público Federal, desde 1988 pelo menos, mas especialmente a partir da autonomia que conquista com o procurador-geral Claudio Fonteles, vinha contribuindo de forma decisiva para o avanço das instituições, o fortalecimento da sociedade, da luta dos povos indígenas, a própria proteção ambiental. Se fazia isso a partir de um determinado contexto: havia uma atuação conjunta de instituições que permitiam que esses resultados fossem alcançados, com o Ibama, na área ambiental, e a Funai, na questão indígena.
‘Na cúpula poucas pessoas estão dispostas a fazer uma autocrítica, a avaliar se ultrapassamos a linha na nossa relação com as demais instituições’.
Com a Lava Jato e a ascensão da extrema direita, essa harmonia se perdeu e várias instituições passaram a ter ressalvas em relação ao Ministério Público. Eu teria hoje uma dificuldade muito grande de dialogar com a Funai para viabilizar direitos indígenas, tendo em vista várias declarações do governo federal a respeito disso e o histórico do próprio presidente da Funai. Então, como você conversa com a Funai para garantir direitos ou demarcação de terras de uma comunidade indígena? Da mesma forma, os avanços na área ambiental eram muito significativos. Ao longo dos anos, foi criado o sistema de satélites que monitora em tempo real o desmatamento. Essas informações chegavam até o Ministério Público Federal, e havia a possibilidade de ajuizar de ações públicas contra os responsáveis. O MPF sempre precisou das demais instituições para trabalhar bem. As condições para um bom trabalho do Ministério Público Federal estão sendo destruídas. Então, o MPF vai devolver menos resultados para a sociedade em razão desse desmoronamento institucional que o país sofre.
Você falou que existe hoje uma autocrítica, um debate interno sobre os excessos do lavajatismo. Mas o quão majoritário ainda é o lavajatismo dentro do MPF? Já existe uma corrente disposta a colocar isso em perspectiva na instituição?
Acho que é amplamente majoritário o apoio à Lava Jato e ao projeto de protagonismo institucional que a operação traz dentro de si. Os colegas ainda veem pouco problema nisso, na série de reportagens que o Intercept realizou. Tenho visto um debate interno, mas grupos críticos ainda são bastante minoritários e enfrentam dificuldades para explicar suas críticas sem que isso seja levado como ataques pessoais.
Na cúpula da instituição poucas pessoas estão dispostas a fazer uma autocrítica, a avaliar se ultrapassamos um pouco a linha na nossa relação com as demais instituições, se a gente poderia ter respeitado de forma mais concreta a autonomia dos agentes políticos, que nem todos os problemas do sistema eleitoral poderiam ser tratados por meio da ação penal, e que nem tudo nos cabe na solução dos problemas do país. Uma parcela muito significativa desses problemas deve ser objeto de um debate social amplo, que passa pelo Ministério Público, mas a palavra final em relação a eles está longe de caber a ele. A instituição precisa amadurecer, encarar com mais tranquilidade críticas à operação Lava Jato e ao modelo de combate à corrupção que vem sendo implantado já há algum tempo. Não é só a Lava Jato, há várias outras operações que repetem as mesmas estratégias e que vão aprofundando esse fosso entre o MPF e as demais instituições, e a classe política.
‘Organizações muito importantes da sociedade civil hoje olham para nós com desconfiança’.
Acho que a gente precisa de uma inteligência que vá para além do campo meramente dogmático, penal, jurídico. O MPF precisa se posicionar no campo político com uma sensibilidade maior para a história, a ciência política, a sociologia, a antropologia do país. A gente precisa de uma estratégia de comunicação social que vá muito além da divulgação da última operação, sem a pretensão de o MPF dar as respostas, mas que mas construa reflexões. A comunicação do MPF poderia discutir racismo, que é uma discussão central para os problemas que o Brasil enfrenta hoje.
Dá pra dizer que de certa forma a Lava Jato “sequestrou” o Ministério Público, porque hoje em dia não se vê falar da instituição sem que seja na atuação criminal. Várias outras áreas de atuação ficaram eclipsadas, como direitos humanos, meio ambiente…
É isso mesmo. Ofícios que eram dedicados a essas áreas foram extintos em algumas unidades para privilegiar as ações de combate à corrupção. As pessoas que se dedicam à tutela coletiva no MPF têm hoje um espaço institucional menor. Os recursos, acho que diminuíram mais para nós do que para a Lava Jato, por exemplo. Os colegas têm muita dificuldade hoje para fazer uma diligência a uma terra indígena – isso antes da pandemia –, conseguir uma perícia a respeito de problemas ambientais. Há uma fila enorme de perícias pendentes nessas áreas de tutela coletiva que são importantes para o trabalho do MPF, e a gente não consegue dar vazão a elas. Não acredito que haja as mesmas dificuldades nessa área que se chama de combate à corrupção. Então houve, sim, uma diminuição do espaço institucional dos direitos humanos, da tutela coletiva, para favorecer essa vertente, que é majoritária, do combate à corrupção.
Qual vai ser, em sua opinião a longo prazo para a imagem do MPF, a herança do lavajatismo, da fúria persecutória da Lava Jato? Vai ficar uma chaga semelhante à da ditadura militar é para as Forças Armadas?
O Ministério Público é uma instituição muito mais complexa do que as Forças Armadas. Não tem hierarquia, uma voz única que fala pelo Ministério Público como há nas Forças Armadas. Eu acho que há uma corrosão da necessidade social do Ministério Público. Por exemplo, anos atrás o MPF reconstruiu um foro, um espaço para discutir violência no campo e realização de direitos de que eu participei. Algumas instituições sociais muito importantes na luta pela reforma agrária não estavam dispostas a sentar na mesa para conversar com o MPF. Organizações muito importantes da sociedade civil hoje olham para nós com desconfiança, especialmente as do campo da esquerda. Isso demonstra a corrosão da legitimidade, do capital institucional enorme que o MPF ainda tem, acredito eu, junto à sociedade. Acho que a Lava Jato e esse modelo de combate à corrupção que a instituição promove hoje põem em risco esse capital institucional. Não sei se no futuro o juízo que se fará do Ministério Público será tão duro quanto aquele que se faz hoje das Forças Armadas em relação à ditadura militar. Mas com certeza [a Lava Jato] arranha a imagem do Ministério Público. E aponta uma dificuldade, que acho que é a reflexão que vai haver daqui para frente: saber uma mesma instituição comporta a tutela penal e a tutela de direitos difusos coletivos.
São coisas antagônicas.
Pois é. Isso é uma jabuticaba do sistema político brasileiro. Não há Ministério Público no mundo com esse perfil, o de uma instituição que é titular da ação penal e, ao mesmo tempo, tem instrumentos poderosos para a tutela de direitos difusos coletivos. Eu acho que a Lava Jato e esse modelo de combate à corrupção mostram o colapso dessa arquitetura institucional. Eu particularmente hoje defenderia [a existência de] instituições diferentes, em que essas duas funções estivessem separadas. Na América Latina, existe a Defensoría del Pueblo, que não é como a nossa defensoria pública, que é uma advocacia para pessoas pobres. A Defensoría del Pueblo faz a tutela de direitos difusos coletivos que hoje cabe ao MPF fazer. Então, eu acho que esse modelo do restante da América Latina talvez seja mais adequado. Porque ele previa esse risco, que a legitimidade angariada pelo Ministério Público graças à tutela de direitos difusos coletivos fosse instrumentalizada [por operações como a Lava Jato brasileira] dentro da ação penal. E aí [temos] o órgão penal excessivamente forte face a face com uma defesa fragilizada, que não consegue fazer valer as garantias do réu. Isso mostra um esgotamento desse modelo. Não sei em que momento, mas o Brasil vai passar por uma assembleia constituinte. Diante desse colapso que a gente vê cotidianamente, dessa briga sem solução de Congresso com STF, com PGR, com Poder Executivo, [a situação institucional] está ruim, não funciona bem. Acho que isso vai demorar, não é para agora. Mas, nesse momento, eu defendo um modelo de Ministério Público distinto do que temos hoje.
Beneficiado por decisões judiciais, Deltan Dallagnol mais uma vez escapou de um julgamento no Conselho Nacional do Ministério Público. O chefe da Lava Jato viu na decisão uma vitória da liberdade de expressão. Você pode receber uma moção de censura do mesmo conselho por ter criticado o que Jair Bolsonaro disse sobre o pai do presidente da OAB, Fernando Santa Cruz, desaparecido político. Como entender e explicar isso?
Em relação ao que acontece com o processo do colega, eu não sei absolutamente nada. Eu não sei por onde passam as medidas que são tomadas para adiar tantas vezes esses casos. O que posso é falar em relação ao meu caso. Eu não criei e não pretendo criar em nenhum momento qualquer embaraço às ações da corregedoria do CNMP ou da corregedoria do Ministério Público Federal. Eu acho que tudo que a gente faz está sob escrutínio da corregedoria, e mais que isso, da sociedade. Acreditamos que as instituições vão levar em conta nossos argumentos, que a defesa vai ser efetiva. No meu caso, até agora não consegui êxito, o relatório da comissão processante quer a censura. Tenho a consciência muito tranquila. A comissão foi instaurada de ofício, não entendi muito bem por quê. Há milhares de membros do Ministério Público no Brasil, algumas centenas deles com uma presença muito forte no Twitter, e não tenho conhecimento de que a corregedoria esteja avaliando não só aquilo que os colegas escrevem, mas também o que eles curtem ou compartilham. Eu estou respondendo por uma curtida em um tuíte. Eu não tenho conhecimento de que outro membro do Ministério Público esteja respondendo por isso. Da minha parte, eu deixo o processo correr. A estratégia é fazer a defesa dentro daquilo que a legislação nos permite, exercer a defesa na maior amplitude possível, mas sem medidas protelatórias. Não espero ser absolvido por prescrição. Espero ser absolvido porque eu de fato não vejo nenhum problema naquilo que escrevi porque considero completamente absurda a minha responsabilização pelo compartilhamento de pensamentos de terceiros ou, pior ainda, por curtidas em mensagens de terceiros.
Entrevista publicada no The Intercept Brasil.
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