“Di Cavalcanti possuía facetas diversas e complexas e é difícil de enquadrá-lo. Sua vida é um leque de contradições. Foi comunista mas amigo de militares, teve origem humilde mas circulava na alta sociedade, era boêmio mas muito trabalhador, um indisciplinado que era intelectual, um vanguardista que se tornou popular”, explica Bortoloti em entrevista ao Valor.
Para o biógrafo, Di Cavalcanti é a perfeita representação daquilo que o Brasil foi no século XX, um século que o artista viveu intensamente. “Di espelha nossa incoerência”, diz o autor, que se debruçou durante dez anos em uma pesquisa consistente para construir a biografia. Como o artista não manteve, durante a vida, um arquivo com documentos e cartas sobre sua obra, Bortoloti teve a difícil missão de encontrar informações em documentos oficiais, arquivos de outras pessoas, registros na imprensa e artigos do próprio Di – que também foi jornalista.
De sua origem humilde, nascido em São Cristóvão, no Rio, na primeira infância o artista foi influenciado pelas ideias abolicionistas do tio José do Patrocínio. Em mais de 500 páginas, o livro refaz a trajetória de Di como artista e pessoa pública do subúrbio carioca à notoriedade internacional, sua descoberta da França nos anos 20, sua filiação ao Partido Comunista, sua participação na Semana de Arte Moderna e o encontro com Mário e Oswald de Andrade. O livro também relata sua participação ativa no movimento comunista brasileiro, pelo qual foi preso duas vezes. A primeira em 1932, durante a Revolução Constitucionalista, e depois em 1936, na Intentona Comunista, quando foi recolhido com sua mulher, Noêmia, junto com Luiz Carlos Prestes, Olga Benário, Nise de Oliveira, Carlos Mariguella e Graciliano Ramos.
Se a prisão o fez se afastar da política e fugir para outra estadia na França, os ideais comunistas permaneceram em seu trabalho. Na arte, Di Cavalcanti uniu as influências cubistas e expressionistas adquiridas em seus períodos em Paris para dar vida à sua concepção de sociedade. “A sua maior preocupação com a ‘mensagem’ do que com a forma foi um dos motivos que o afastou dos modernistas, apesar de ter participado da Semana de Arte Moderna de 22”, conta Bortoloti. Di achava que Mário e Oswald de Andrade estavam muito mais preocupados com a forma do que com o conteúdo da obra de arte. Para o artista, a representação do Brasil tinha que passar pelo povo, o que fez pintando trabalhadores, pescadores, anônimos, prostitutas e as famosas mulatas.
Para Bortoloti, ao escolher as mulatas e pessoas comuns como personagens de seus quadros, Di queria dar um papel de protagonismo ao povo brasileiro, “colocando aquela mestiçagem no lugar onde estavam as divas renascentistas e as divindades gregas, que também foram retratadas em posições sensuais”. “Ele estava lutando contra a ideia de supremacia branca”, acredita.
Se em um primeiro momento o pintor foi elogiado por seus retratos, retratando o povo em momentos de folga lírica, nas alcovas, nos bordéis, em rodas de samba, nas janelas, mais tarde foi criticado por ser racista e sexista. “Um olhar injusto e reducionista sobre a obra dele”, afirma o autor.
Segundo ele, Di Cavalcanti foi seguramente o mais intelectual dos pintores de sua geração, e “alguém já o definiu como um homem diabolicamente inteligente mas patologicamente sensível. Sua profunda consciência da sociedade foi amaciada pelo romantismo, pela boemia, pelo fervor sensual com que se apegava às coisas do mundo”.
O livro retrata alguém que sempre manteve um olhar político sobre a sociedade, a quem servia e da qual debochava, sempre experimentando a vida com desenvoltura. Esse comportamento, aliado às suas críticas fervorosas ao abstracionismo, fez com que em sua maturidade fosse visto como um artista ultrapassado.
No fim da vida, sua obra ganhou impulso quando, em 1972, nos 50 anos da Semana de Arte Moderna, Di foi escolhido pelo governo militar como um símbolo do “nacionalismo patriótico”, distorcendo o conceito original de sua obra. Porém, redescoberto, sua obra valorizou-se no mercado de arte e, para se aproveitar do momento, começou a produzir quadros em grandes quantidades, copiando a si próprio em trabalhos de menor qualidade. Di Cavalcanti foi o primeiro artista brasileiro cujas obras atingiram cifras extraordinárias, mas também foi uma das primeiras vítimas das maquinações do mercado de arte, que acabou transformando o artista em uma caricatura de si mesmo.
A sólida biografia escrita por Bortoloti – que também é autor de “Anjo mutilado”, magnífica biografia do pintor Alberto da Veiga Guignard – consegue capturar todas as nuances desse artista genial e o recolocar no panteão dos mais importantes artistas brasileiros.
Di Cavalcanti: Modernista popular
Marcelo Bortoloti Companhia das Letras, 536 págs., R$ 134,90
Publicado originalmente no Valor Econômico.
Deixe um comentário
Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *