Não se pode admitir retaliações, intimidações, asfixia econômica ou regulamentações que visam a enfraquecer a atividade jornalística e a liberdade de expressão
A divulgação de informações de agentes públicos envolvidos na Operação Lava Jato tem gerado debate interminável e acalorado. Bom que seja assim. Alguns conteúdos são estarrecedores e o assunto é grave. O que se ouviu, até agora, explicita inegável parcialidade na condução de casos emblemáticos para o país e desvenda condutas não condizentes com servidores do Estado que deveriam agir sob o manto sagrado dos ordenamentos republicanos.
O tema do direito à informação e a virtude da liberdade de imprensa, valores intrínsecos da democracia, emergem como pivô de uma discussão que conta atualmente com novos atores. Assuntos relevantes na agenda internacional conseguem vir à tona, hoje, por meio de um esforço inédito de entidades que combinam jornalismo, preservação de fontes anônimas e ciberativismo em torno da bandeira de democratizar a informação, o que significa, em última análise, escarafunchar segredos privados e públicos.
O impacto da revelação de documentos secretos de governos e empresas foi ampliado quando organizações jornalísticas do porte de EL PAÍS, Le Monde, Der Spiegel, The Guardian e The New York Times emprestaram sua credibilidade concedendo amplo espaço para inúmeras e significativas revelações. Em parceria com o Wikileaks, compartilharam dados sobre operações secretas do governo norte-americano no Afeganistão, guerra no Iraque, troca de e-mails de diplomatas norte-americanos em negociações reservadas com a Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, União Europeia, entre outros temas de interesse global.
Outra repercussão mundial semelhante ocorreu com o vazamento de dados de empresas offshore em paraísos fiscais, em contas abertas pelo escritório panamenho Mossack Fonseca. O Panama Papers, como ficou conhecido, teve como protagonista o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) que organizou trabalho de apuração e divulgação a partir de uma rede intrincada de cerca de 400 jornalistas, de 76 países, inclusive com participação, no Brasil, do Poder360, do jornal O Estado de S. Paulo e da RedeTV!. Os dados foram obtidos, inicialmente, pelo jornal alemão Süddeutsche Zeitung, por meio de uma fonte anônima, e depois compartilhados com o ICIJ.
São novas configurações midiáticas, inusitados caminhos da notícia e tempos de pós-verdade. Eleições pelo mundo afora empoderaram líderes com viés autoritário e populista, empenhados em desacreditar a imprensa, retaliar veículos de comunicação e perseguir jornalistas. Atitudes deploráveis que debilitam ainda mais os valores da democracia. Infelizmente, transformaram-se em retóricas e práticas cada vez mais institucionalizadas, rasgando o protocolo de tolerância, respeito e civilidade com a imprensa.
O Judiciário é a instância que pode evitar essa escalada sombria. No Brasil, foi o Supremo Tribunal Federal que extinguiu a Lei de Imprensa, um resquício da ditadura militar que perdurou até 2017. Na Inglaterra, recentemente a Justiça britânica reiterou a inviolabilidade da imprensa no caso que ficou conhecido como “as noivas do Estado islâmico”. A Scotland Yard solicitou acesso a anotações dos jornalistas e às imagens brutas que não foram ao ar, relativas a uma jovem inglesa que se uniu ao grupo terrorista Estado Islâmico. O repórter Anthony Loyd, correspondente de guerra do The Times, entrevistou a moça em um campo de refugiados. Para a Scotland Yard era necessário obter, em nome das leis antiterror e da segurança nacional, o material não publicado. A vitória foi da imprensa.
O judiciário entendeu que o ofício dos jornalistas requer garantias para a confiança, sigilo e proteção do conteúdo apurado e das fontes — elementos cruciais no trabalho da imprensa. A liberdade de imprensa é inegociável e o trabalho dos jornalistas não deve ser cerceado ou sofrer embaraços. O trabalho do The Intercept Brasil e da rede de jornais e órgãos de comunicação do pool que divulga os bastidores da Operação Lava Jato (Folha de S.Paulo, Veja, EL PAÍS, entre outros) significa inestimável prestação de serviço para a democracia e para a sociedade. É o triunfo do direito de saber.
Evidentemente que não se trata de romantizar ou idealizar o jornalismo, às vezes representado por Clark Kent, super-herói, invencível, que luta pelos mais fracos e oprimidos. As organizações jornalísticas apresentam suas contradições, alinhamentos, interesses, ambições financeiras. Há erros, apurações imperfeitas, vulnerabilidades e, em alguns casos, falhas passíveis de punição. A lei é repleta de dispositivos para resolver tais litígios e dispensa açodamentos ou interpretações fora do espírito do Direito. O que não se pode admitir são retaliações, intimidações, asfixia econômica ou regulamentações que visam a enfraquecer a atividade jornalística e a liberdade de expressão, informação e manifestação de ideias.
Louvável, a partir das revelações em curso, tem sido a autocrítica de parte da imprensa sobre a cobertura da Lava Jato e o reconhecimento de excessos. A Folha de S.Paulo registrou (A Folha faz autocrítica, coluna publicada em 06/10) encontro que reuniu ex-ombudsmen e Flávia Lima, ombudsman atual, com a Secretaria de Redação. Foi um momento de reflexão sobre a conduta e a imparcialidade dos procuradores e dos juízes envolvidos na operação, particularmente Sérgio Moro. A constatação de excessos também foi expressa, em carta aos leitores, pela revista Veja (19/06/09), com o significativo título “ninguém está acima da lei”.
Ao dissecar suas próprias responsabilidades, a imprensa lembra a frase atribuída ao ex-presidente da República Juscelino Kubitschek: “Costumo voltar atrás, sim. Não tenho compromisso com o erro”. A busca do que é correto, corrigir o errado, ajustar e refazer o caminho para o que é justo, contrastam com as reiteradas declarações do atual presidente que além de depreciar o papel social da imprensa, ameaçam o trabalho dos jornalistas e insultam as organizações onde atuam.
Na Guerra contra o Vietnã, informações oficiais iludiam a opinião pública dos EUA ao alardear que as batalhas estavam sendo vencidas e o número de baixas era reduzido. Os documentos oficiais do Pentágono, publicados inicialmente pelo jornal The Washington Post, desmascararam a farsa. Autoridades governamentais lutaram ferozmente para manter a mentira. Foram derrotadas. “A imprensa deve servir aos governados, e não aos governantes”, foi a célebre sentença da Suprema Corte norte-americana ao absolver a imprensa e liberar os papéis secretos do Pentágono.
A matéria-prima na troca de mensagens de um grupo de procuradores e juízes é justamente a dolorosa percepção do quanto se pode macular o interesse público.
Que estas revelações sejam a “porta” para a revisão do nosso já tão comprometido Sistema de Justiça.
Ao explicar a linha editorial adotada para examinar o vasto material, retirando conteúdos inadequados e conversas que poderiam infringir o direito à privacidade, The Intercept Brasil resume de forma admirável o trabalho: “empregamos o padrão usado por jornalistas em democracias ao redor do mundo: as informações que revelam transgressões ou engodos por parte dos poderosos devem ser noticiadas”. Nada mais ético, relevante e oportuno.
Artigo publicado originalmente no El País.
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