Brasil e Estados Unidos compartilham números desproporcionais de assassinatos de negros pela polícia
Emerald Garner tem 28 anos e, como toda mãe, quer que o futuro de suas crianças seja melhor do que sua realidade. Para ela, isso significa não precisar ensinar à filha, negra, que desvie e desconfie da polícia. Há seis anos, Eric Garner, pai de Emerald, foi morto em Nova York após suplicar para que um policial soltasse seu pescoço.
Antes de morrer em uma chave de braço, ele repetiu 11 vezes “eu não consigo respirar”, e se tornou um dos mais emblemáticos casos de brutalidade policial da história recente americana até o mês passado.
Brasil e Estados Unidos compartilham números desproporcionais de assassinatos de negros pela polícia. Como negro, Garner corria 2,9 vezes mais risco de ser morto por policiais do que uma pessoa branca. No Brasil, o risco é 2,3 vezes maior para os negros.
Mas a polícia brasileira mata mais, mesmo com população menor. Só no Rio de Janeiro a polícia matou quase o dobro do número de mortos por policiais americanos em todo o país no ano passado.
“Se tivéssemos aprovado leis sobre o tema na época do meu pai, George Floyd estaria vivo hoje”, diz Emerald.
Floyd, assassinado em Minneapolis no dia 25, também avisou ao policial que usava o joelho para pressionar seu pescoço contra o chão que não conseguia respirar, uma frase repetida pelos manifestantes que tomaram as ruas americanas nas últimas semanas
No Brasil, Floyd e Garner seriam Wemerson Felipe Santos, que morreu em novembro na Vila Pica-Pau, na periferia de Belo Horizonte, no primeiro dia em que trabalhava capinando um terreno do bairro. Wemerson sofreu uma rasteira, um pontapé e um mata-leão de policiais que faziam uma operação no bairro, até ficar roxo e perder sentidos, segundo reportou o portal G1.
No ano passado, David do Nascimento Santos, de 23 anos, saiu de casa na favela do Areião, no Jaguaré, em São Paulo, para usar o Wi-Fi de um bar da vizinhança, mas foi colocado dentro de um carro de polícia e apareceu morto, com marcas de tortura.
Quase 5 mil brasileiros negros, a maioria jovens, foram mortos pela polícia em 2018. A população negra do Brasil é quase o triplo da dos EUA e a polícia brasileira matou 18 vezes o número de negros que os policiais americanos mataram.
Os dados foram compilados pelo jornal O Estado de S. Paulo com base em números do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2018 – o mais atual com recorte racial – e do instituto americano Mapping Police Violence, de 2019. O número de mortos pela polícia americana tem se mantido no mesmo patamar desde 2013.
Com quase 18 mil departamentos de polícia nos EUA, não há uniformidade nos números oficiais sobre abordagens policiais com uso da força no país, informação que também falta no Brasil. Nos EUA, os negros são 13,4% da população e 24% dos mortos por policiais. No Brasil, os negros e pardos são pouco mais de metade da população, mas três quartos dos mortos por policiais.
A violência contra negros em proporção maior do que de brancos fez o País ser denunciado à Corte Interamericana de Direitos Humanos pela ONG Educafro em 2019, que considera que a política brasileira de combate à violência tem causado um “verdadeiro genocídio” da população negra. A denúncia pede que parte do PIB seja investido em inteligência policial.
“Nossa polícia no Brasil é muito mais violenta. Mas também existe um nível de violência racial que constitui o Brasil em outras esferas que naturalizou e incorporou no cotidiano a morte de pessoas negras. No Brasil, quando se mostra a morte de um negro, a luta é para provar que aquela pessoa não era um bandido, como se o fato de a pessoa ter cometido algum crime justificasse também a violência policial”, afirma Silvio Almeida, autor do livro Racismo Estrutural e professor convidado da Universidade Duke, na Carolina do Norte (EUA). Segundo ele, a “ocultação” do racismo no Brasil evita que a discussão seja feita em esfera pública.
“O Brasil não teve o imenso sistema de leis codificadas que surgiu após o colapso da escravidão, como vimos nos EUA com Jim Crow”, afirma Ellis Monk, do Departamento de Sociologia de Harvard, que pesquisa os paralelos entre racismo nos dois países
Sob o nome de Jim Crow, as leis de segregação racial americana tiveram vigência nos Estados do sul dos EUA até a década de 60. Brancos e negros não usavam os mesmos bebedouros públicos, banheiros, balcões de lanchonete, cabines de trem, escolas e ônibus. Os locais reservados aos negros eram precários.
“Existem muitas maneiras diferentes de manter hierarquias raciais e de cores. Você não precisa necessariamente de um sistema Jim Crow para atingir esse mesmo tipo de objetivo”, diz Monk, que avalia ser mais fácil enfrentar um problema que tem nome. “No Brasil é mais difícil nomear os alvos que mantêm hierarquias raciais quando não são tão óbvios como eram nos EUA ”
Os dois países têm em comum o passado de escravidão e exploração de mão de obra africana para formar sociedade e economia, institucionalizando uma discriminação racial persistente em diversos segmentos, como a habitação.
Nos EUA, uma casa em bairro negro vale US$ 48 mil a menos do que uma propriedade de características e localização semelhantes em um bairro branco. A diferença é chamada por pesquisadores de custo racial. “Em um ano, eu fui parado sete vezes pela polícia. Não cinco, nem seis. Sete.”
A história poderia ser a de um jovem negro brasileiro, mas foi a fala do senador Tim Scott, negro e republicano da Carolina do Sul.
“Não são casos isolados. É uma lógica de uma polícia que se arvora no direito de dizer quem vive e quem morre”, afirma a psicóloga Marisa Feffermann, da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, que lançou recentemente a campanha “Fala Quebrada” para reunir denúncias de ações policiais violentas, além de outras situações de desrespeito aos direitos básicos fundamentais.
Reportagem publicada no Correio Braziliense com informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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