Para as mulheres[1] brasileiras, viver uma gestação e parir de forma saudável e respeitosa são verdadeiros desafios. Afinal, uma em cada quatro gestantes/parturientes no Brasil é vítima de violência obstétrica[2], a denominação atribuída às diversas formas de violência praticadas contra as mulheres durante a assistência à gestação, ao aborto, ao parto e ao puerpério. Portanto, as violências obstétricas são uma forma de violência de gênero muito recorrente no País, as quais podem ser definidas de maneira mais pormenorizada como
[…] a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por [na maioria dos casos] profissional de saúde que se expresse por meio de relações desumanizadoras, de abuso de medicalização e de patologização dos processos naturais, resultando em perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres[3].
Infelizmente, as violências obstétricas ocorrem a partir de diversas condutas, as quais têm como alguns exemplos:
- Barrar a entrada do/a acompanhante de preferência da parturiente durante a internação, violando a Lei Federal 11.108/05[4];
- Praticar intervenções médicas – como a aplicação de ocitocina sintética durante o parto e como a cesariana – em gestantes/parturientes de forma rotineira (isto é: sem reais indicações clínicas) e/ou sem o consentimento real da mulher (ressalvadas as raras hipóteses de urgências médicas que impedem a sua obtenção);
Impossibilitar a parturiente de se movimentar livremente durante o parto, de escolher a posição em que se sentir mais confortável, de se alimentar, de receber anestesia e/ou de usufruir de métodos não farmacológicos de alívio da dor;
- Ridicularizar a mulher durante a assistência perinatal em virtude da sua cor, da sua origem, da sua escolaridade ou de quaisquer outras características pessoais;
- Impedir mães que passam por perdas gestacionais avançadas ou por óbitos neonatais de ver e/ou de tocar o/a seu/sua bebê ou, na maternidade, alojá-las em recintos com outras mulheres acompanhadas de filhos/as recém-nascido/as.
Diante da recorrência das violências obstétricas e das múltiplas formas que elas podem acontecer, é importante destacar que, no Brasil, marcadores sociais influenciam muito nas possibilidades de acesso a uma assistência perinatal de qualidade e também na incidência e nas características das violações de direitos praticadas contra muitas parturientes/gestantes. Nesse sentido, tem-se que, entre as mulheres atendidas por Unidades Básicas de Saúde (UBS) – as quais, em sua maioria, ficam localizadas em áreas de maior vulnerabilidade social –, apenas 15% receberam atenção pré-natal adequada[5].
É válido ressaltar o fato de que, entre o universo de mulheres supracitado, os indicadores de qualidade do atendimento pré-natal foram piores nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do País e entre as adolescentes, se comparadas às mulheres de idade mais avançada[6]. Esse panorama indica, portanto, que marcadores sociais de classe, origem social e idade tendem a influenciar na forma como uma brasileira vivencia o acompanhamento à gestação e, consequentemente, ao parto[7].
Considerando as discriminações sociais que afetam o acesso de gestantes/parturientes a um atendimento adequado, é essencial abordar a discriminação racial. Tem-se que a população negra, de modo geral, está mais sujeita a determinados/as agravos, doenças e condições de saúde que a população branca. No caso específico das mulheres, a gravidez e o parto são tidos/as como condições fisiológicas cujas vivências são alteradas por fatores socioeconômicos[8].
Nesse sentido, são as mulheres negras e pardas que apresentam os piores indicadores de qualidade na assistência pré-natal e ao parto. Elas possuem mais chances de ter de peregrinar
por maternidades até chegarem em uma na qual consigam parir, de ter o direito ao/à acompanhante negado, de não receber analgesia local para a realização de episiotomia – o que é relacionado aos mitos racistas de que as pretas são mais fortes e possuem a pelve mais adequada para parir –, de ter bebês com desfechos negativos, de sofrer com a depressão pós-parto, entre outros[9].
As violências obstétricas são, portanto, além de bastante recorrentes no Brasil e negativamente impactantes na vida de suas vítimas, diferentemente experimentadas pelas brasileiras, a depender de como elas se situam na interseção de eixos de discriminações sociais[10]. A despeito desse cenário – que demanda a atenção das autoridades, bem como políticas públicas específicas –, em 2019, algumas iniciativas políticas tensionaram e ameaçaram os movimentos de luta pela humanização da assistência perinatal, que vêm ganhando mais espaço no País desde o início do terceiro milênio[11].
Cito o despacho publicado pelo Ministério da Saúde (MS) em 03 de maio, sobre o uso da expressão “violência obstétrica”, como a primeira dessas iniciativas. Na ocasião, o órgão afirmou que o termo teria conotação inadequada e prejudicaria a busca pela assistência humanizada durante a gestação, o parto e o puerpério e defendeu que ele deveria ser abolido[12]. Esse despacho foi muito criticado pela sociedade civil, pois ele representa uma nítida tentativa do governo de obscurecer a prática de uma violência de gênero muito comum no Brasil.
Diante disso, no dia 07 de maio, o Ministério Público Federal (MPF) emitiu a Recomendação nº. 29/2019 e, um mês depois, em resposta a ela, o MS publicou o Ofício nº. 296/2019. Neste documento, o órgão reconheceu que as mulheres podem usar o termo que melhor represente as suas experiências ruins durante o parto, porém não mencionou a expressão “violência obstétrica”, nem defendeu o seu uso[13].
Menciono também a Lei nº. 17.137/2019, proposta pela deputada estadual Janaína Paschoal (PSL-SP) em 10 de abril e sancionada pelo governador João Dória (PSDB-SP) no dia 23 de agosto. A Lei assegura à gestante, em síntese, o direito a uma cesariana eletiva (aquela escolhida pela mulher, sem que existam indicações médicas para a sua realização) a partir da 39ª semana de gestação e à anestesia independentemente da via de parto.
Ademais, ela determina a afixação de uma placa nas maternidades, nos hospitais e nos estabelecimentos congêneres do Estado de São Paulo, “com os seguintes dizeres: ‘Constitui direito da parturiente escolher a via de parto, seja normal, seja cesariana (a partir de trinta e nove semanas de gestação)’”[14]. Merece destaque o fato de que em outras assembleias legislativas estaduais, há inciativas para aprovar leis como essa[15].
Além da má qualidade do texto legal, pela perspectiva da técnica legislativa, e dos problemas relativos à sua tramitação[16], que por ora não abordarei, tem-se que, ao enfatizar tanto a possibilidade de uma cesariana eletiva, a Lei nº. 17.137/2019 contraria as melhores orientações para uma assistência humanizada do parto. Nesse sentido, a Organização Mundial de Saúde (OMS) determina, desde 1985, que a taxa ideal de cesáreas não deve ultrapassar 15% dos nascimentos[17]. Além disso, evidências científicas demonstram que a realização excessiva dessa cirurgia aumenta a morbimortalidade materna e perinatal e consome demasiados recursos do erário público[18].
É importante frisar, ainda, que na justificativa do projeto da Lei nº. 17.137/2019, Janaína Paschoal distorceu os movimentos pela humanização do parto, atribuindo os casos de sofrimento e maus resultados em partos normais realizados na rede pública de saúde a uma “imposição do parto normal” supostamente existente hoje no Brasil. Contudo, a deputada parece ignorar não só os indicadores supracitados, como também a própria realidade do Estado de São Paulo, onde 59,2% dos nascimentos já acontecem por meio de cesáreas[19].
Por fim, cito a Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº. 2.232/2019, publicada em 16 de setembro. A resolução trata da recusa terapêutica e dispõe em seu art. 5º, §2º que a recusa terapêutica manifestada por gestante pode ser considerada um abuso de direito da mãe em relação ao feto, partindo de uma análise na perspectiva do binômio mãe/feto[20].
Ainda que esse artigo tenha tido a sua eficácia suspensa em decorrência do deferimento de medida liminar no processo nº. 5021263-50.2019.4.03.6100, do Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região, é possível perceber na resolução o intuito de prejudicar o protagonismo e a autodeterminação da mulher durante o seu parto, o que vai de encontro às pautas dos movimentos pela humanização da assistência e às evidências científicas.
Isso tudo posto, tem-se que uma parcela considerável das brasileiras é vítima de violências obstétricas e que as mulheres socioeconomicamente mais vulneráveis costumam ter os piores indicadores de assistência e sofrer violências mais específicas. Ao mesmo tempo, no cenário político atual, são defendidas medidas que indubitavelmente prejudicam os movimentos por uma assistência ao ciclo gravídico-puerperal que seja pautada pelo protagonismo da mulher e pelo atendimento às melhores e mais atualizadas evidências científicas. Logo, considero fundamental que mais juristas – obviamente, em parceria com profissionais da saúde e de outras áreas – se mobilizem no combate às violências obstétricas no Brasil.
A mobilização deve ocorrer não só pela responsabilização dos agentes dessas violências nas esferas cível, penal, administrativa e sanitária. Seria interessante que se realizassem pesquisas para delinear melhor os contornos das violações de direitos sofridas pelas gestantes/parturientes brasileiras e campanhas para conscientizar as mulheres e os/as profissionais da assistência sobre os direitos envolvidos no atendimento ao ciclo gravídico-puerperal. Ademais, a participação de mais juristas na elaboração de projetos de lei e políticas públicas que visem à humanização do parto, entre outras iniciativas, seria muito positiva.
Afinal, a gestação e o nascimento de um/a filho/a – ou, em alguns casos, o aborto e o óbito neonatal – são eventos muito marcantes na vida de uma mulher, o que exige que ela seja cuidada da maneira mais qualificada e mais respeitosa possível nesses momentos. Não se pode, portanto, permitir que a assistência perinatal no Brasil continue sendo um campo marcado por violências de gênero, que reforçam o machismo e o patriarcado estruturais.
[1] Neste texto, utilizei a expressão “mulheres” me referindo às pessoas que mais enfrentam os problemas aqui discutidos. Entretanto, vale destacar que eu não desconsidero que também homens transexuais e pessoas não binárias podem engravidar e, portanto, estar sujeitos/as a esse cenário.
[2] VENTURI, Gustavo; GODINHO, Tatau. Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado. São Paulo: Sesc/Fundação Perseu Abramo, 2013.
[3] DINIZ, Carmen Simone Grilo et al. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of Human Growth and Development, v. 25, n. 3, 2015. apud REPÚBLICA BOLIVARIANA DE VENEZUELA. Ley orgánica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violência. Caracas: UNFPA; 2007. p. 3.
[4] BRASIL. Lei nº 11.108, de 7 de abril de 2005. Altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para garantir às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS.
[5] TOMASI, Elaine et al. Qualidade da atenção pré-natal na rede básica de saúde do Brasil: indicadores e desigualdades sociais. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 33, n. 3, e00195815, 2017. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2017000305001&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 02 mar. 2020.
[6] Ibid.
[7] Aqui, faço a ressalva de que é possível que a baixa qualidade do pré-natal também seja relacionada, tal como sugerido na pesquisa citada, a problemas de outros tipos, relativos, por exemplo, à formação dos/as profissionais de saúde ou à imposição de um ritmo de trabalho nas UBS incompatível com a oferta de um bom atendimento. Não se pode esquecer, ainda, que o sucateamento do SUS prejudica demais a assistência perinatal das mulheres socialmente mais vulneráveis e que isso agrava as discriminações por elas sofridas. Contudo, essas questões não serão contempladas no presente texto.
[8] WERNECK, Jurema. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Sociedade. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v25n3/1984-0470-sausoc-25-03-00535.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2019. pp. 537-8.
[9] LEAL, Maria do Carmo et al. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 33, supl. 1, e00078816, 2017. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2017001305004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 23 jul. 2019.
[10] Ver o texto “A Intersecionalidade na Discriminação de Raça e Gênero”, de Kimberlé Crenshaw.
[11] No ano de 2000, foi instituído o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
[12] BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de atenção à saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Brasília, DF, 03 mai. 2019. Disponível em <http://sei.saude.gov.br/sei/controlador_externo.php?acao=documento_conferir&id_orgao_acesso_externo=0>. Acesso em 20 jul. 2019.
[13] BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de atenção à saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Coordenação-Geral de Ciclos da Vida. Coordenação de Saúde das mulheres. Ofício nº, 296/2019/COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS. Brasília, DF, 07 jun. 2019. Disponível em <http://www.mpf.mp.br/sp/sala-de-imprensa/docs/oficio-ms>. Acesso em 20 jul. 2019.
[14] SÃO PAULO. Lei nº. 17.137/2019, de 23 de agosto de 2019. Garante à parturiente a possibilidade de optar pela cesariana, a partir de 39 (trinta e nove) semanas de gestação, bem como a analgesia, mesmo quando escolhido o parto normal. São Paulo, 2019. Disponível em: <https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2019/lei-17137-23.08.2019.html>. Acesso em 02 mar. 2020.
[15] Como exemplos dessas iniciativas, menciono o Projeto de Lei 296/2019, proposto pela deputada Paulinha (PDT), em Santa Catarina, e a proposta legislativa sugerida por representantes dos movimentos Conservador do Amazonas e Mulheres Conservadoras do Amazonas, os quais se inspiraram na Lei 17.137/2019
[16] Ver o Parecer Jurídico sobre o PL 435/2019 – PL das Cesáreas, elaborado pelo Coletivo Nacional Nascer Direito, disponível em: http://nascerdireito.com.br/?p=407#page-content.
[17] WORLD HEALTH ORGANIZATION. Appropriate Technology for Birth. The Lancet 8452 (ii): 436-437, 1985.
[18] BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticos de Saúde. Área Técnica de Saúde da Mulher. Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher/ Ministério da Saúde, Secretaria de Políticas de Saúde, Área Técnica da Mulher. – Brasília: Ministério da Saúde, 2001. p. 14.
[19] BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Informática do SUS. Microdados do Sistema Informação sobre Nascidos Vivos. Brasília, DF, 2017. Disponível em <http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0205&id=6936&VObj=http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sinasc/cnv/nv>. Acesso em 21 jul. 2019.
[20] CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.232/2019. Estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientese objeção de consciência na relação médico-paciente. Brasília, 2019. Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2019/2232>. Acesso em 03 mar. 2020.
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