Em 14/6/2018, o STF declarou, no julgamento das arguições de descumprimento de preceito fundamental 395 e 444, por maioria de votos, que a primeira parte do artigo 260, do CPP[1] que autoriza a condução coercitiva do imputado para fins de interrogatório não foi recepcionada pela Constituição. Conforme a corte, a medida cerceia a liberdade de locomoção e viola o princípio da presunção de inocência, além de ignorar a garantia contra a autoincriminação. Em seu voto, o ministro Celso de Mello fez menção à existência do “direito de não comparecer” (ou “direito de ausência”) que assiste ao réu no que toca à determinação da medida constritiva.
Quanto ao reconhecimento pessoal, nenhuma dúvida temos de que o imputado pode — voluntariamente — a ele se submeter, bem como pode se recusar a participar, na perspectiva do direito que tem de não produzir prova contra o seu interesse. Mas esse tema nunca foi pacífico e a prática policial (e também judiciária) brasileira infelizmente não respeita o nemo tenetur se deterege em relação ao reconhecimento, determinando sua realização ainda que o imputado não queira. Mas e agora, com a inconstitucionalidade da condução coercitiva, será que pode seguir sendo feito o reconhecimento pessoal contra o consentimento do imputado, mediante a sua condução coercitiva?
Não obstante o avanço no entendimento da corte, a parte do dispositivo que autoriza a condução coercitiva do imputado para fins de reconhecimento não foi diretamente mencionada (pois, para alguns, o nemo tenetur se detegere[2] incidiria apenas no âmbito do interrogatório, mas não no do reconhecimento), temática que merece outro enfoque à luz da Constituição.
Acerca da obrigatoriedade da presença do suspeito ao ato de reconhecimento, pode-se mencionar, a título de curiosidade, processo analisado pela corte italiana, datado de 1978[3]. O caso teve início após o envio de um ofício assinado por um juiz de Turim, em cujo conteúdo havia a determinação da realização do reconhecimento de um suspeito que residia em Roma. O juiz deprecado, em Roma, intimou o suspeito para o reconhecimento, tendo este se negado a comparecer. Entendendo não ser possível conduzi-lo coercitivamente, determinou, em face do princípio da não taxatividade dos meios de prova, sua identificação fotográfica. A divergência entre os magistrados começou quando o juiz deprecante determinou a nulidade do reconhecimento fotográfico sob o entendimento de que o suspeito tinha o dever de comparecer, sendo-lhe assegurado o direito de não participar ativamente do ato (non facere). Embora o caso não tenha sido julgado em razão da declaração de incompetência por parte do tribunal, o juiz de Turim considerou nulo o reconhecimento fotográfico sob o argumento de que não teria a mesma força probatória que o reconhecimento pessoal.
Atualmente, ainda existem autores que entendem que o suspeito é obrigado a comparecer ao ato de reconhecimento, pois, do contrário, sua recusa (a despeito dos direitos e garantias que lhe assistem durante o procedimento inquisitivo) impossibilitaria a continuidade das averiguações, comprometendo a eficácia das investigações. Fazem uma diferenciação entre cooperação ativa e passiva, além de afirmarem, no tocante ao inquérito policial, que, preponderando em sua plenitude o interesse individual da liberdade sobre o interesse público na persecução penal, esta “estaria fadada ao fracasso”[4], havendo o “engessamento das atividades investigatórias”. Para esses autores, apesar de haver necessidade da condução coercitiva do suspeito, não pode ser ele compelido a praticar comportamentos ativos, tais como abaixar-se, gesticular, sorrir ou fazer caretas, porquanto essas condutas afetariam seu direito à não autoincriminação. Legítima seria sua condução, durante o desenrolar do inquérito policial, para o local da identificação com a estrita finalidade de fazê-lo comparecer ao ato, sendo tratado como objeto de prova[5], não podendo opor-se à atividade estatal voltada à sua identificação pessoal, vez que não importaria, necessariamente, em autoincriminação[6].
Pensamos que essa é uma posição equivocada e superada. Já era antes mesmo de o STF se manifestar sobre a condução coercitiva. Primeiramente, é preciso reconhecer que a distinção entre “cooperação ativa e passiva” é cosmética e tergiversa o núcleo do direito de não produção de provas contra si mesmo. Em segundo lugar, é ilusória, na medida em que esvazia, de forma utilitarista, o direito fundamental do imputado ao obrigá-lo a participar do ritual probatório contra sua vontade, a pretexto de mera cooperação passiva. Em terceiro lugar, é um eufemismo chamar isso de “colaboração passiva”, quando na verdade é uma verdadeira coação, submissão ao poder.
Por fim, para não alongar, é um imenso reducionismo imaginar ou sustentar que uma pessoa possa ser retirada a força de casa, obrigada a participar de um ritual constrangedor de produção de provas contra seu interesse e vontade, sem que isso configure uma afrontosa violação do seu direito de defesa negativo, de não autoincriminação e de não produção de provas contra sua vontade. Pensar que isso é “colaboração passiva” é reduzir absurdamente todo esse complexo acontecimento. Sem falar que não existe como, por exemplo, retirá-lo forçosamente de sua casa sem com isso estar realizando uma verdadeira “condução coercitiva”!
Portanto, por qualquer ângulo que se olhe, a conclusão é a mesma: não pode haver condução coercitiva para obrigar o imputado a participar de reconhecimento pessoal. Já não podia antes (bastava respeitar a Constituição), e agora, com a decisão do STF, fica ainda mais clara a vedação.
O artigo 260, no tocante à autorização da condução coercitiva do acusado para fins de reconhecimento, viola as garantias constitucionais da presunção de inocência e do direito ao silêncio, pois a presença do réu no processo é um direito, não um dever[7]. Assim, não sendo o imputado objeto do processo e não estando obrigado a submeter-se a qualquer tipo de ato probatório, sua presença física na audiência, para fins de reconhecimento, depende não das autoridades, mas exclusivamente de sua decisão — sobre a qual, dada a amplitude do nemo tenetur, nenhuma censura ou reprovação pode recair.
No processo penal, contrariamente ao que ocorre no âmbito do processo civil, a presunção de inocência resguarda o imputado, transportando a integralidade da carga probatória para o acusador. Não sendo legítima a limitação do direito de defesa negativo (esteja o réu em liberdade ou preso), a carga da (in)existência dos elementos do delito incumbe ao Ministério Público ou ao querelante, o que inviabiliza a condução coercitiva do acusado para fins de reconhecimento caso este se recuse a comparecer ao ato.
Ademais, pertinente indagar qual deve ser a solução quando o réu é intimado para prestar depoimento em audiência, comparece espontaneamente, mas, desconhecendo que o juiz pretende submetê-lo a reconhecimento informal, é surpreendido com a vítima ou a testemunha apontando-o como o responsável. Entendemos tratar-se de caso de flagrante ilegalidade, vez que o acusado tem o direito de ser informado, sem subterfúgios, acerca dos motivos pelos quais sua presença é requerida. Compreender diversamente é atentar frontalmente às regras do jogo processual (fair play).
O cenário é outro caso o acusado compareça por espontânea vontade ao ato e consinta em submeter-se à identificação, podendo esta ser legitimamente realizada, todavia, com respeito aos preceitos do artigo 226, sob pena de nulidade do ato. Ademais, também pensamos que a recusa do réu em submeter-se à produção deste meio de prova não caracteriza crime de desobediência (“direito de não comparecer” ou “de ausência”), tampouco, como enfatizado, pode ser interpretada contra ele. Caberá ao acusador ir atrás, diante da negativa, de outros elementos que possam sustentar sua tese acusatória.
Dessarte, a conclusão é clara: o instituto do reconhecimento pessoal segue vigendo, mas não pode haver condução coercitiva — qualquer que seja a fase do processo — para obrigar o imputado a dele participar. Também não pode ser realizado, mesmo em audiência, contra o consentimento do réu, pois viola o direito de não autoincriminação. E, por fim, não existe “reconhecimento informal”, pois se trata de meio de prova com forma prevista em lei. Ou é seguido à risca o previsto no artigo 226, ou temos uma prova ilícita. Afinal, no processo penal, onde se estabelece um complexo ritual de exercício de poder, forma é garantia, é limite de poder. Acima de tudo, forma é condição de legalidade do ato, sob pena de cairmos no vale-tudo, irracional e ilegal.
[1] A redação do artigo 260 é a seguinte: “Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”.
[2] Previsto em sede constitucional (na modalidade “direito ao silêncio”, artigo 5º, LXIII) — além de decorrer dos princípios do devido processo legal, da presunção de inocência e da ampla defesa — e convencional (artigo 8º, 2, “g”, da CADH), tendo sido igualmente previsto, anteriormente, no artigo 14, 3, “g”, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Proclamado, em 1791, como diretriz fundamental pela Quinta Emenda à Constituição norte-americana, ganhou maior destaque no âmbito jurídico após decisão, de 1964, no caso Escobedo v. Illinois, da Suprema Corte dos Estados Unidos e, de forma mais contundente, em 1966, onde, no caso Miranda v. Arizona, ficou assentado que os órgãos investigativos têm o dever de informar os suspeitos do seu direito contra a autoincriminação (You have the right to remain silent).
[3] LOPES, Mariângela Tomé. O Reconhecimento como Meio de Prova. Necessidade de Reformulação do Direito Brasileiro, p. 67-68.
[4] QUEIJO, Maria Elizabeth. O Direito de Não Produzir Prova Contra si Mesmo (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal), p. 242.
[5] LOPES, Mariângela Tomé. O Reconhecimento como Meio de Prova. Necessidade de Reformulação do Direito Brasileiro, p. 181.
[6] MARREIROS BARBOSA, Ruchester. A Condução Coercitiva pode ser Necessária à Eficácia da Investigação.
[7] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, p. 578-579.
Texto publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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