Lucas Morais da Trindade estava deitado no sofá, à meia-noite do dia 27 de novembro de 2018, quando policiais invadiram seu domicílio, na periferia de Espera Feliz (MG), sem mandado judicial, por conta de uma denúncia de tráfico de drogas. No local, foram apreendidos dez gramas de maconha, que estavam no bolso da calça de Lucas, e embalagens plásticas do tipo usado para fabricação de geladinhos caseiros. Lucas trabalhava em um armazém.
Em sentença homologada em setembro de 2019, o juiz entendeu que as embalagens plásticas comprovavam a traficância. Condenado a cinco anos e dez meses de reclusão, Lucas permaneceu detido no presídio de Manhumirim, na Zona da Mata mineira, desde a prisão em flagrante até ser encontrado desmaiado na cela na manhã de sábado, 4 de julho de 2020. Foi levado às pressas para o hospital local, onde morreu em seguida, aos 28 anos de idade.
No presídio em que Lucas estava preso, vivem cerca de 200 detentos, dos quais 159 testaram positivo para o novo coronavírus.1A Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais afirmou que Lucas estava com Covid 19 desde o dia 25 de junho, mas não apresentava qualquer sintoma da doença.
Homem negro, Lucas não tinha amigos poderosos.
A morte e vida severina de Lucas desvela a entranha adoecida de um sistema de justiça criminal que, de um lado, blinda “amigos” e, de outro, persegue e extermina “inimigos”, moldando a interpretação do direito à conveniências de ocasião2.
Antes de tratar dos “amigos”, falemos dos “inimigos”.
Ao proferir seu voto no Recurso Extraordinário nº 635.659, no qual o Supremo Tribunal Federal analisa a constitucionalidade do art. 28 da Lei nº 11.343/06, o relator, ministro Gilmar Mendes, adverte que a presunção de inocência “não tolera que a finalidade diversa do consumo pessoal seja legalmente presumida”, sendo “ônus da acusação produzir os indícios que levem à conclusão de que o objetivo não era o consumo pessoal”. O ministro Mendes reconhece não ser possível responsabilizar quem usa drogas pelos “malefícios coletivos decorrentes” do tráfico, pois “esses efeitos estão muito afastados da conduta em si do usuário”, tratando-se de ligação “excessivamente remota para atribuir a ela efeitos criminais”, de modo que “esse resultado está fora do âmbito de imputação pessoal”.
Em seu voto, o ministro Luís Roberto Barroso propôs a adoção de critérios objetivos baseados em quantidades para definir a tipicidade em situações envolvendo a posse de drogas: “À luz dos estudos e critérios existentes e praticados no mundo, recomenda-se a adoção do critério seguido por Portugal, que, como regra geral, não considera tráfico a posse de até 25 gramas de Cannabis”.
Em setembro de 2015, após três votos a favor da descriminalização da posse para uso pessoal, o julgamento foi suspenso, em função de pedido de vista e, hoje, a inclusão do feito em pauta depende da vontade do presidente da Suprema Corte. Em 2019, o caso chegou a ser pautado para julgamento em 5 de junho, mas foi retirado dias antes desta data, por ordem do ministro Dias Toffoli.
De acordo com o jornal El País, “O debate sobre as drogas colocou o STF sob pressão dos diferentes lados. Ainda pela manhã, a Federação Amor Exigente (FEAE) protocolou uma petição pelo adiamento do julgamento. No documento, pediam que a Corte não se manifestasse sobre o assunto até que o Projeto de Lei da Câmara 37 (PLC 37) seja sancionado pelo presidente. O PLC 37, aprovado pelo Senado no último dia 15, modifica a Lei Antidrogas, facilitando, por exemplo, a internação involuntária (sem o consentimento do paciente)”3.
Segundo a Revista Época, a “retirada do processo das drogas da pauta foi decidida dois dias depois de Toffoli ter negociado um pacto pela governabilidade com os chefes do Executivo e do Legislativo. Antes de tomar a decisão, o ministro recebeu representantes do governo em audiência e conversou com Bolsonaro no Planalto”4e com Osmar Terra, então ministro da Cidadania e autor do Projeto de Lei da Câmara nº 375.
“E por que a gente quer aprovar de maneira tão rápida esse projeto? Por que se ele não for aprovado, o STF corre um sério risco, de muito em breve, liberar as drogas no Brasil. Agora, se esse projeto for aprovado, a causa que está no STF perde o objeto, acaba essa discussão’, defendeu Eduardo Bolsonaro, pedindo aos senadores que não propusessem emendas e aprovassem a mudança”6. As palavras persuasivas do deputado Bolsonaro convenceram a maioria do Senado a refutar as mudanças aprovadas pela Câmara na proposta e aprovar o texto original, como era o desejo do autor da iniciativa.
O ministro Toffoli determinou novamente a inclusão do processo na pauta do STF no segundo semestre de 2019, mas, de novo, determinou sua retirada dias antes da data designada. Sem nenhuma explicação ou justificativa. Já o futuro presidente do STF, Luiz Fux, acredita que em “alguns países, se a sociedade não está madura para receber uma decisão sobre um tema deste, o tribunal tem o direito de não julgar, mas no Brasil, por uma regra constitucional, uma vez provocado, o tribunal tem que dar sua palavra” 7.
Com a aposentadoria do ministro Celso de Mello, em novembro deste ano, e a do ministro Marco Aurélio Mello, em julho de 2021, há boas razões para crer que o perfil de seus substitutos tende a ser conservador, o que em matéria penal significa rigor inclemente e adesão incondicional ao ideário político criminal da guerra às drogas.
A opção de retardar a retomada visa manipular o resultado do julgamento colegiado, iniciado em agosto de 2015, por intermédio da transformação de possível maioria a favor da tese de inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas8, em minoria, graças à indefinição da pauta do STF, combinada com a perspectiva de aposentadoria iminente de dois ministros que ainda não votaram. A menos que o julgamento seja imediatamente incluído na pauta – ou que os ministros que irão se aposentar antecipem seus votos, conforme autoriza o art. 135, §1º, do RISTF –, a tática do engavetamento será bem sucedida.
Enquanto a decisão final sobre descriminalização vai ficando para as calendas gregas, o Conselho Nacional de Justiça editou, em 17 de março de 2020, a Recomendação nº 62, conclamando tribunais e magistrados a adotar medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo, entre as quais a concessão de prisão domiciliar a presos acusados ou condenados por crimes praticados sem violência ou grave ameaça, como é o caso do tráfico de drogas9.
O então ministro da Justiça, Sérgio Moro, liderou o boicote dos liberticidas à Recomendação nº 62, do CNJ, minimizando o risco à saúde dos presos10e usando exemplo falso de um homem que teria sido preso novamente, com armas e drogas, após ter sido solto devido à pandemia11. O ex juiz e agora ex ministro, declarou: “Alguns fazem a proposta de soltar todos os presos que não tenham sido condenados por violência ou grave ameaça. Estamos falando de todo tráfico de drogas, basicamente. Grande parte dos grandes traficantes foram condenados só por tráfico. E vamos soltar todos os traficantes do país? Não faz sentido”12.
Na jurisprudência, discursos políticos paleo repressivos, muitas vezes sem relação direta com o caso concreto, são usados como justificativa para a negação de direitos constitucionais e legais a réus acusados de tráfico de drogas em temas como a própria tipificação do tráfico em conformidade à presunção de inocência e ao ônus da prova, liberdade provisória e prisão cautelar, a incidência da causa de diminuição da pena prevista no art. 33, $4º, da Lei de Drogas, regime aberto na execução da pena privativa de liberdade e penas restritivas de direitos substitutivas: “resulta ilógico proceder-se ao esvaziamento deste rigor aos condenados por crimes de tráfico de drogas, sob pena de eliminar o tratamento rígido que a lei buscou a fim de concretizar a política criminal”.13 O traficante é definido, pelo Judiciário, como inimigo público: “A sociedade não tolera o traficante, não podendo o Poder Judiciário fazer ouvidos moucos ao clamor social”14, afinal, “a leniência com o tráfico destrói famílias, jogando usuários e viciados na sarjeta, bem como incrementa roubos, latrocínios, furtos e homicídios”15.
A ideia de disseminação desenfreada do consumo de drogas com potencial de produzir um quadro de dependência massificada que coloca em risco a saúde pública – um verdadeiro salto triplo carpado interpretativo – é recorrentemente utilizada: “Uma sociedade repleta de viciados e dependentes é uma sociedade que caminha a passos largos para sua própria destruição”16. Em resumo, “O tráfico, se não combatido com destemor, incute sentimento de insegurança e descrédito” 17.
Levantamento da Defensoria Pública de São Paulo a partir de mutirão realizado aponta índice de sucesso de 65% no STJ em casos de tráfico privilegiado durante a pandemia18.
Segundo o CNJ, de maio para junho, houve um aumento de 800% nos casos de Covid-19 nos superlotados presídios brasileiros19. Foi proposta no STF a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 684, em que providências para evitar a disseminação da pandemia no sistema prisional são solicitadas, mas até agora não há decisão sobre o pedido liminar por parte do ministro relator.
O caso de Lucas é apenas mais um exemplo, entre milhares, da cegueira hermenêutica deliberada que impulsiona a engrenagem do superencarceramento por meio da inconstitucional presunção de tráfico. Acaso houvesse a adoção do standard probatório respeitador da presunção de inocência e do ônus da prova, proposto pelo ministro Mendes ou mesmo do critério quantitativo sugerido pelo ministro Barroso para definir a tipicidade do tráfico, no julgamento ainda não finalizado, Lucas seria enquadrado no art. 28 da Lei nº 11.343/06, e não no 33. O destino dele poderia ter sido outro, mas nem a sorte, nem o tempo, foram-lhe favoráveis.
Lucas teve negado o pedido de liberdade pelo TJMG, que se recusou a aplicar a Recomendação nº 62, do CNJ e morreu após contrair o novo coronavírus na prisão. “O senhor é o meu pastor, perdoe o que seu filho fez, morreu de bruços, no Salmo 23”20. Seu recurso de apelação seria julgado no final de julho. Mors omnia solvit. Tempus fugit.
Agora, falemos sobre os “amigos”.
Fabricio Queiroz, suspeito dos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa, teve melhor sorte: apesar de ter negado centenas de habeas corpusimpetrados em favor de presos que apontavam o risco de contaminação – inclusive um pedido coletivo da Defensoria Pública do Ceará –, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, em regime de plantão, contrariou sua própria jurisprudência21e concedeu prisão domiciliar ao famigerado ex assessor da família Bolsonaro, assim como à sua esposa, que estava foragida havia três semanas.
Em recente café da manhã no Palácio do Planalto, com a presença do presidente da Suprema Corte, Jair Bolsonaro não se conteve e confessou: “é muito bom termos aqui a Justiça ao nosso lado, ao lado do que é certo, do que é razoável e ao lado do que é bom para o nosso Brasil”22.
No reino do capital, tudo é mercadoria. Tudo é comprável. Tudo tem um preço. “Estes são os meus princípios; se você não gostar, tenho outros”, já dizia Groucho Marx.
O percentual considerou 142 habeas corpus apresentados ao STJ diante de condenações que fixaram em casos de tráfico privilegiado uma pena em quantidade mínima (1 ano e 8 meses), porém em regime inicial fechado (o mais grave previsto pela lei). A partir desse recorte de casos, os pedidos de liberdade foram feitos à Corte pela Defensoria. Nesse grupo, 93 decisões concederam habeas corpus reafirmando enunciados e súmulas do próprio STJ e também do Supremo Tribunal Federal (STF). Os números integram levantamento que vem sendo realizado pelos Núcleos Especializados de Situação Carcerária (NESC) e de Segunda Instância e Tribunais Superiores da Defensoria Pública de SP.
Três enunciados das Súmulas do STJ e STF com frequência fundamentam a reforma das decisões:
Súmula nº 440 STJ: “Fixada a pena-base no mínimo legal, é vedado o estabelecimento de regime prisional mais gravoso do que o cabível em razão da sanção imposta, com base apenas na gravidade abstrata do delito.”
Súmula nº 718 STF: “A opinião do julgador sobre a gravidade em abstrato do crime não constitui motivação idônea para a imposição de regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada.”
Súmula nº 719 STF: “A imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea.”https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Conteudos/Noticias/NoticiaMostra.aspx?idItem=90332&idPagina=1&flaDestaque=V, acesso em 23 de julho de 2020.
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