“A pesar del ruido, el mundo hoy no va a cambiar”. A frase pronunciada por José Mujica na mesma manhã das eleições que o consagraram como presidente uruguaio, ganha agora outro significado. O mundo não mudou naquele dia, mas as conquistas de “Pepe” durante os cinco anos em que esteve à frente da presidência do país certamente transformaram a vida e a política uruguaia – além de inspirar o mundo.
Conhecido por sua simplicidade, chegou a receber jornalistas com suas alpargatas, mas sem a dentadura, na companhia de sua cadelinha Manuela, também modesta com suas apenas três patas, mas esquecendo-se totalmente das papas na língua. Afinal, como ele mesmo diz no auge dos seus quase oitenta anos, “uma das vantagens de ser velho é dizer o que pensa”.
E Pepe sempre disse o que pensava. Até mesmo quando ficou conhecido como o presidente mais pobre do mundo por viver com apenas 10% de seu salário e declarou que “as repúblicas não vieram ao mundo para estabelecer novas cortes, as repúblicas nasceram para dizer que todos somos iguais. E entre os iguais estão os governantes”. Para ele, não somos uns mais iguais que os outros. Quando questionado sobre sua pobreza, ele afirma: “Eu não sou pobre, eu sou sóbrio, de bagagem leve. Vivo com apenas o suficiente para que as coisas não roubem minha liberdade.”
A decisão de doar uma parcela significativa de seu salário se deve, em parte, ao fato de que, desde 2006, junto ao Movimento de Participação Popular (MPP), uma ala do partido Frente Ampla, Mujica e seus compañeros criaram o Fundo Raúl Sendic, uma iniciativa que empresta dinheiro a projetos cooperativos sem cobrar juros. O fundo é formado com o excedente dos salários dos políticos ligados ao MPP, incluindo grande parte do salário do ex-presidente.
Mas Pepe deixa claro que os 10% que sobram de seu salário são tudo o que precisa. Para quem passou 14 anos preso, sendo boa parte desse tempo confinado em um poço, durante a ditadura militar uruguaia, lutando contra a possibilidade de enlouquecer, sua pequena chácara em Rincón del Cerro, a 20 minutos de Montevideo, parece mesmo um palácio.
O poço não era o pior, mas sim o isolamento total do mundo. Na mesma condição que ele, viviam apenas outros oito presos, todos separados, sem saber o que ocorreu com os demais. Enquanto tentava se manter vivo e são, Pepe fez amizade com nove rãs e até mesmo observou que as formigas gritam quando chegamos pertinho para ouvir o que elas têm a dizer.
A matéria Diez años de soledad (um jogo de palavras com o nome do livro Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez), publicada por Mario Benedetti no jornal El País, em 1983, conta a história destes nove presos, chamados de “os reféns”, em um momento em que Mujica era apenas mais um militante tupamaro. A matéria termina com um pedido, feito por Benedetti desde seu exílio na Espanha: “Não esqueçamos que, se os revolucionários triunfantes recebem honras e admiração, e até seus inimigos se obrigam a respeitá-los, os revolucionários derrotados merecem ao menos ser considerados como seres humanos”.
Sobre seu passado tupamaro, Pepe, que já se chamou Facundo e Ulpiano, não sente vergonha ou orgulho em dizer que talvez tenha tomado decisões que desembocaram em execuções. Eram, afinal, outros tempos.
Praticamente vinte anos depois de sair da cadeia, a verdadeira revolução buscada pelo ex-tupamaro, que tanto lutou pela democracia, finalmente ocorreu nas urnas.
Em seu discurso de despedida, neste 27 de fevereiro de 2015, Mujica lembrou que a luta que se perde é a que se abandona. E ele nunca abandonou seus ideais. Não bastou o tempo de militância no Movimiento de Liberación Nacional-Tupamaros (MLN-T), ou o período em que foi detento no presídio que hoje, ironicamente, dá lugar ao suntuoso shopping Punta Carretas, em Montevideo, de onde participou da fuga mais marcante da história carcerária mundial, junto a outros 105 tupamaros e 5 presos comuns. A façanha entrou para o Guinness Book e ficou conhecida como “O Abuso”.
Pepe fugiu e continuou fugindo para não se tornar um político que investe apenas em suas próprias opiniões. Tanto é que declarou diversas vezes nunca ter experimentado maconha, mas aprovou a liberação de seu uso no país, citando Einstein, que dizia que “não há maior absurdo que pretender mudar os resultados repetindo sempre a mesma fórmula”. E, mudando a fórmula, promete lidar com o narcotráfico no país.
Durante o governo de Mujica, o Estado assumiu a regulação estatal da produção, venda, distribuição e consumo de maconha, em dezembro de 2013. Foram estabelecidos limites para cultivo e venda de maconha, bem como registros de consumidores e clubes de fumadores. A nova lei tornou o Uruguai o primeiro país do mundo com um regulamento tão abrangente.
Talvez por isso o ex-tupamaro tenha sido considerado pela revista americana Foreign Policy como um dos 100 pensadores mais importantes de 2013, ao redefinir o papel da esquerda no mundo. No mesmo ano, o Uruguai foi eleito pela revista britânica The Economist como o “país do ano”.
O frisson é tanto que brinca-se que os Engenheiros do Hawaii deveriam mudar o nome de sua música para “O Pepe é pop”. Enquanto não o fazem, Agarrate Catalina, a murga¹ de maior sucesso no carnaval uruguaio, já lhe dedicou mais de uma canção. Para se ter uma ideia da importância, é praticamente como se a Beija-Flor entrasse na Sapucaí com um samba enredo falando sobre a presidência e um carro alegórico cheio de dilmetes.
Mas não é preciso muita atenção para ver que o sucesso das medidas criadas por Mujica vai além do carnaval e já está ganhando o mundo: a exemplo do país, a Comissão de Drogas da África do Oeste declarou que a descriminalização destas deve ser um assunto de saúde pública, enquanto o Ministério de Justiça da Jamaica aprovou a descriminalização do uso religioso, científico e medicinal da maconha. A Comunidade dos Países do Caribe não ficou atrás e concordou em criar uma comissão para revisar a política de repressão às drogas na região e realizar as reformas que forem necessárias. [Fonte: Carta Capital]
Mesmo assim, as ideias de Mujica não são unanimidade dentro do país. Em julho do ano passado, uma pesquisa divulgada pelo instituto Cifra mostrou que 64% dos uruguaios é contra a lei da regulamentação da maconha. Entre eles, até mesmo alguns usuários se mostram contrários devido ao excesso de regulamentação: para consumir a planta legalmente no país, eles deverão ser cadastrados como usuários, tendo direito a comprar até 40 gramas mensais de maconha em farmácias, plantar até seis pés de cannabis para consumo próprio, ou fazer parte de clubes com uma quantidade de sócios que pode variar entre 15 e 45 pessoas. Contudo, ainda há muito medo sobre o que acontecerá com quem for cadastrado como consumidor, o que é acentuado com a recente troca do governo.
Tabaré Vázquez, o presidente eleito, é sucessor e antecessor de Mujica. Também membro da Frente Ampla, foi o primeiro presidente de esquerda a encarar a presidência do nosso vizinho de apenas 3,5 milhões de habitantes. Apesar disso, não compartilha exatamente os mesmos ideais de Pepe. É o que acontece no caso do aborto: um projeto de lei semelhante ao que vigora hoje no país havia sido vetado por Tabaré enquanto este era presidente. Mesmo assim, Vázquez terminou seu mandato com 70% de aprovação popular, enquanto Mujica contou com o apoio de apenas 65% da população.
O direito ao aborto, por fim, foi uma conquista do ex-tupamaro. Hoje, mulheres podem decidir interromper uma gravidez até a 12ª semana de gestação. Antes de partir para o procedimento, porém, deverão passar por acompanhamento médico e psicológico e terão a opção de desistir da decisão a qualquer momento. Para o ex-presidente uruguaio, a conquista é uma forma de poupar vidas.
Antes da lei que permitia o aborto ser promulgada, cerca de 33 mil procedimentos do gênero eram realizados anualmente no país. Mas, no primeiro ano em que a lei esteve em vigor, este número caiu consideravelmente: 6.676 abortos legais foram realizados de forma segura, sendo que apenas 0,007% destes apresentou algum tipo de complicação leve. No mesmo ano, houve apenas uma vítima fatal em casos de interrupção de gravidez: uma mulher que realizou o procedimento de maneira clandestina, com a ajuda de uma agulha de tricô – o que mostra que, apesar da legalização, abortos clandestinos continuam ocorrendo na banda oriental.
Pepe, pessoalmente, afirma ser contra o aborto, mas o considera um problema de saúde pública, como conta na entrevista abaixo, em que fala, entre outros assuntos, sobre a legalização da maconha e a acolhida a presos de Guantánamo, enquanto critica fortemente as políticas dos Estados Unidos:
Outra das conquistas do ex-presidente foi a legalização do casamento gay nos pampas uruguaios. Mas, exibindo seus cabelos brancos, ri ao ser perguntado sobre suas ideias modernas: “O casamento homossexual é mais velho que o mundo. Tivemos Julio Cesar, Alexandre O Grande. Dizer que é moderno, por favor, é mais antigo do que nós todos. É um dado de realidade objetiva, existe. Para nós, não legalizar seria torturar as pessoas inutilmente.”, disse em entrevista ao jornal O Globo.
Mesmo quem é contra as medidas criadas pelo governo há que se render aos dados: nos últimos anos o país do Maracanazo viu uma queda nas taxas de pobreza em zonas rurais e pode orgulhar-se de que seu país fosse a nação latino-americana com menos menores em situação de indigência. Subiram os salários e os abonos, enquanto o nível de desemprego se tornou o menor da história do país que já foi conhecido como a Suíça da América Latina.
No Uruguai não existe reeleição e, apesar dos progressos, Mujica deixou a presidência, mas seguirá no poder. Foi o senador mais votado nas últimas eleições, cargo que Pepe continuará exercendo sem nenhuma gravata, com o mate debaixo do braço e as respostas mais improváveis na ponta da língua.
Publicado no Hypeness.
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