As corporações precisam compreender que a responsabilidade social ao adotar o lema ‘vidas negras importam’ não se limita a mera inclusão de funcionários ‘diversos’. É necessário que elas se comprometam com o enfrentamento ao racismo
“Diversidade e inclusão” são duas palavras usadas com cada vez mais frequência pelas empresas brasileiras. Afinal, há inúmeros estudos que apontam que o investimento em “diversidade” é lucrativo para elas. Empresas formam grupos de afinidade, fazem eventos, reúnem CEOs supostamente preocupados com a agenda de diversidade, algumas criam áreas dedicadas a essa temática dentro das corporações, pluralizam seus comerciais e investem em conteúdo diverso em suas mídias sociais. No entanto, muitas delas sequer mencionam a palavra racismo.
Quantas dessas políticas empresariais de “diversidade e inclusão” podem ser consideradas de fato antirracistas? O quanto as vidas negras realmente importam para essas empresas? Importam no limite do valor do trabalho precarizado que exige delas ou importam de forma a considerarem vidas negras dignas de paritária existência às vidas brancas?
No dia 20 de novembro de 2020 – considerado o Dia da Consciência Negra no Brasil, onde lembramos a luta de Zumbi dos Palmares, de Dandara e tantas outras e outros resistentes do movimento negro que nos antecederam e lutaram por nossa sobrevivência –, amanhecemos com a notícia de que João Alberto Silveira de Freitas, um homem negro de 40 anos, foi espancado até a morte por agentes de segurança e um policial militar à paisana em uma das lojas da rede mundial de supermercados Carrefour, na zona norte de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
O Carrefour é uma empresa considerada referência em “diversidade e inclusão”, recebe periodicamente prêmios pelas práticas que supostamente realiza nesse segmento. Em seu site institucional, a corporação define o seu posicionamento: “Valorizar a diversidade é cuidar da qualidade das relações que mantemos com todas as pessoas. O que une as pessoas não é o estilo, a etnia, as habilidades, a idade, a orientação sexual, o gênero ou a crença, mas sim, a capacidade de respeitar umas às outras, entendendo as diferenças e semelhanças de cada um.” Ou seja, um discurso vazio, uma vez que o Carrefour tem se mostrado incapaz de respeitar vidas negras.
A violência vivida por João Alberto Silveira de Freitas no Carrefour não é um caso isolado. Há de se lembrar de Moisés Santos, homem negro de 53 anos que trabalhava para o Carrefour e faleceu durante o expediente. Ao encontrar o corpo desfalecido, a gerência do supermercado não teve sequer a decência de fechar a loja em respeito a Moisés e cobriu seu corpo negro com guarda-sóis para que ele não fosse visto pelos consumidores. O corpo de Moisés ficou lá por horas. Também lembramos hoje de Luís Carlos Gomes, homem negro que recebeu um mata-leão pelos seguranças do Carrefour até perder completamente sua respiração. E lembramos de Januário Alves de Santana, homem negro de 39 anos, que foi agredido violentamente por seguranças do Carrefour ao tentar entrar no próprio carro. E esses são somente alguns dos casos que dentre muitos ganharam repercussão midiática.
Ressalta-se que essa não é uma hipocrisia exclusiva do Carrefour. Racismo e violência conduzem muitas das práticas empresariais, especialmente nas corporações do segmento comercial. Lembremos de Pedro Henrique Gonzaga, agredido e assassinado por seguranças do supermercado Extra na Barra de Tijuca, no Rio de Janeiro, e do adolescente torturado por seguranças do supermercado Ricoy sob suspeita de furtar um chocolate.
O que todos esses episódios têm em comum além de terem acontecido em supermercados? Se fossem pessoas brancas, todas essas histórias não teriam o mesmo desfecho.
Tanto o Carrefour quanto o Extra terceirizaram sua segurança a Vector Segurança Patrimonial, que também atende a outras empresas do ramo como Americanas, Atacadão, C&C, Cyrella, Atento, Vivara. E, apesar dos constantes casos de violência praticados, a Vector Segurança Patrimonial continua prestando serviços para as mesmas companhias, evidenciando a conivência destas com as práticas racistas e violentas que são promovidas pelos agentes de segurança privados da empresa de segurança.
Diante de tantas ocorrências frequentes questiona-se o papel das empresas no genocídio negro em curso. Em maio deste ano, protestos diversos estouraram por todo o mundo após o assassinato de George Floyd e muitas empresas nos Estados Unidos firmaram um compromisso ao apoiar o movimento negro estadunidense, se posicionando enfaticamente contra a violência policial que mata jovens negros todos os dias.
Não vemos o mesmo compromisso sendo assumido no Brasil, inclusive por empresas multinacionais, como a PWC, que teve um posicionamento firme em defesa das vidas negras e contra a violência policial nos Estados Unidos, mas aqui não.
‘Vidas negras importam’ não pode ser um apenas um slogan vazio usado para autopromoção e para capitalizar em cima de nossas vidas
As corporações precisam compreender que a responsabilidade social ao adotar o lema “vidas negras importam” não se limita a mera inclusão de funcionários “diversos”. Isto é o mínimo que uma empresa deveria estar fazendo em país de maioria negra. É necessário um compromisso no enfrentamento às violências vividas pela população negra que minam nossa sobrevivência.
A Coalizão Negra por Direitos protocolou, neste 20 de novembro, uma ação de representação contra o Carrefour e a empresa Vector Segurança Patrimonial, solicitando ao Ministério Público Federal e Ministério Público do Rio Grande do Sul a responsabilização dessas empresas pelo racismo que conduziu a morte de João Alberto Silveira de Freitas. É fundamental uma enérgica intervenção do poder público nos casos de violência e racismo por parte da segurança privada. Quantas mais pessoas negras precisarão ser assassinadas em supermercados para que o Estado possa punir essas empresas por violações de direitos humanos?
Protestos foram convocados em várias cidades do país para cobrar a responsabilidade do Carrefour por mais essa vida negra que nos é tirada. Na frente de diferentes unidades da rede de supermercados, o movimento negro se fez presente para não deixar que mais essa vida seja interrompida sem a menor responsabilização daqueles que a ameaçam. Há também um compromisso cívico que todos devemos fazer de não consumir absolutamente nada dessas empresas que tratam com tanto descaso as vidas negras.
Esses atos racistas e violentos que vemos sendo perpetuados pelas empresas no Brasil são direcionados a toda a população negra e ao movimento negro brasileiro. Nas palavras do rapper Djonga, “Olho corpos negros no chão, me sinto olhando o espelho/ Que corpos negros nunca mais se manchem de vermelho”. Cada vida que perdemos para a violência racista tira também um pouco de nós. Cada vida tirada é uma dor que dói nos afetos das vítimas que aqui ficam e doí também na gente que se enxerga naquele corpo que foi interrompido.
“Vidas negras importam” não pode ser um apenas um slogan vazio usado para autopromoção e para capitalizar em cima de nossas vidas. Vidas negras importam é ação prática diária. Este é o compromisso que esperamos ser assumidos em dias como o de hoje.
Publicado no Nexo.
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