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O que faltou dizer

Por Flávia Rahal e Guilherme Ziliani Carnelós

É inegável que o estupro enfrenta uma ainda arraigada resistência cultural primitiva de fundo sexista que autorizaria o homem a extravasar sua lascívia diante de mulher que não aja de forma recatada. Infelizmente, a crença popular mais generalizada ainda impõe às mulheres e meninas (e não aos homens) que se comportem, que não sejam o gatilho do desejo masculino. O tema veio a debate após uma menina de 16 anos aparecer em um vídeo, nua e sendo tocada por muitos rapazes, que circulou nas redes sociais, causando enorme e justificada comoção. A indignação foi geral: não se pode mais tratar a mulher como objeto, nem culpar a vítima pelo estrupo.

O destaque dado à questão mostra um desejo forte de quebrar esse estigma associado à moral.

Nesse caso da adolescente, voltaram-se todos, primeiro, para a atuação da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática – que, sob a batuta do delegado Alessandro Thiers, procurava evidências técnicas de violência sexual. A então advogada da vítima reagiu, o delegado foi afastado e a Dra. Cristiana Bento, titular da Delegacia da Criança e do Adolescente, assumiu as investigações. Com base no mesmo vídeo, afirmou não ter dúvidas da ocorrência do estupro, a despeito do resultado negativo das conclusões do Instituto Médico Legal.

Houve quem questionasse: “Mas se o exame médico nada detectou é porque não há estupro, certo?” Errado. Independentemente da forma como a mulher venha a se comportar, não se admite nenhuma forma de violação de seu corpo. Na linha adotada no Projeto de Lei 253/2004 do Senado Federal, independentemente da qualidade que se atribua à mulher, a liberdade de escolha da mulher é intangível.

É bom que se diga que o estupro não exige mais a “conjunção carnal” presente no artigo 213 do Código Penal. O indivíduo (pois não só a mulher pode ser vítima desse crime) escolhe também quem o toca e como.

O crime de estupro engloba todas as manipulações de caráter libidinoso e não consentidas feitas na vítima. E muitas delas não deixam vestígios aferíveis em exame pericial. Mesmo que a vítima esteja vestida, invadir a liberdade sexual da mulher configura o crime, pois a lei a protege de forma genérica, sem que em seu corpo estejam impressos sinais de violência.

Daí a absoluta importância do consentimento.

Sobre os menores de 14 anos, lei e jurisprudência são claras: crianças e adolescentes até essa idade não têm condições de maturidade suficientes para consentir à prática sexual. Portanto, o agente que voluntariamente mantém relação sexual com vítima nessas condições comete o crime. É o caso classificado na legislação como estupro de vulnerável.

Sendo a vítima maior de 14 anos, o estupro pode ocorrer com emprego de violência ou grave ameaça, por meios que induzam consentimento mediante fraude ou se o ato libidinoso é perpetrado contra vítima que não tem condições de oferecer resistência, como é o caso da embriaguez ou da falta de consciência decorrente do uso de drogas.

Nessa última hipótese, a vítima é trazida ao mesmo estado de vulnerabilidade da menor de 14 anos, sem condições de escolha.

Esse tipo de situação foi tratado com maestria por Pedro Almodóvar em seu premiado “Hable con Ella”, filme que narra a história de um enfermeiro que se apaixona por uma paciente em coma. A paixão o leva à conjunção carnal que resulta em gravidez – sendo esta, paradoxalmente, o impulso para que a vítima retome consciência. Contrariando a ideia geral que se tem do estuprador, a abordagem do cineasta causa desconforto pelo fato de não ter sido o enfermeiro retratado como um facínora, mas como um sujeito carente e dedicado.

A imagem é ilustrativa para se concluir que a configuração do crime independe da qualidade da vítima e, com dissemos, da qualidade do agente. Basta para a configuração do crime a transgressão do consentimento.

Texto publicado originalmente no Congresso em Foco.

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