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Os Dois mundos

Os Dois mundos

Em homenagem aos 80 anos de Chico Buarque

Em recente reportagem, um jornal alemão relata que, na terça-feira de manhã, cerca de 40 manifestantes se dirigiram ao Tribunal Distrital de Wedding, em Berlim, para apoiar Manfred Moslehner, de 84 anos, em uma ação de despejo. Há quase 14 anos, os antigos inquilinos do bairro Steinberg, em Berlim-Reinickendorf, lutam contra sua desocupação. Atento ao processo de gentrificação, um investidor, que comprou a propriedade em 2010, quer modernizar as casas geminadas e vendê-las com lucro. Manfred Moslehner foi o primeiro a ser objeto da ação de despejo da casa onde nasceu. Cumulativamente ao despejo, o novo proprietário também pediu uma sanção pecuniária e, se necessário, até a detenção do ocupante. Claro está que a gentrificação está diretamente ligada ao neoliberalismo, que se edifica sobre o lucro e não sobre o bem-estar das pessoas. Esse relato mostra, no entanto, o lado germânico ou eurocentrista de seus efeitos. Esse é o mundo do capital, com o direito ao seu serviço, mas o mundo branco e insípido.

Comparando esse cenário com a realidade brasileira, podemos ver que vivemos em outro mundo. Aqui, os pobres não nascem em casas antigas e geminadas, nem em bairros, nascem em barracos; não dormem em camas normais, dormem no chão, ou sobre colchões catados no lixo; só comem quando conseguem; seus recursos, geralmente advindos de biscates ou esmolas, são os mínimos indispensáveis à sobrevivência; aqueles que superam essas dificuldades podem ser tidos como nossos heróis, porque, diante de tantas adversidades, ainda chegam a alcançar um mínimo de dignidade. Ademais, os pobres brasileiros não são objetos de ações de despejo, são simplesmente expulsos de seus locais, quando o poder dominante assim o determinar. Aqui, as desocupações são sempre acompanhadas pela PM, que não raramente, nas famosas e alardeantes trocas de tiros, acaba matando crianças e adolescentes, acusados de haverem ameaçado e tentado agredir os agentes da lei. Se em Berlim, os manifestantes se dirigem aos tribunais, aqui só lhes resta se protegerem dos tiros. São duas realidades diferentes. Nossa realidade é muito, mas muito mais perversa e brutal. Aqui os pobres são tratados como vermes, sem esperança, invisíveis aos juristas e tribunais, simples alvos do exercício da violência estatal na defesa do que chamam de sociedade organizada.

Quando me deparo com essa gritante diferença, tenho que pensar em Chico. Chico não é apenas o mais extraordinário compositor brasileiro, é também um grande escritor, um cronista majestoso e intérprete da vida brasileira em toda sua extensão. Intérprete dos sentimentos de liberdade, do amor, de crítica social à ganância, ao autoritarismo, às políticas desagregadoras, ao ódio; intérprete da compreensão das emoções, dos dias alegres e, também, das desventuras; intérprete da necessidade de mudar, de sorrir, de sonhar. A cada música, a cada conto, a cada livro, Chico nos desperta do sono da neutralidade para nos colocar no solo desgastado da vida cotidiana e nos impulsionar para um agir significativo na busca da felicidade, na desconstrução de ilusões e preconceitos, na esperança de novos tempos, na renovação de pensamentos, no exercício pleno de conquista de cidadania para quem jamais a teve. Chico é acima de tudo um intérprete do mundo, mas com uma expressão conjugada ao futuro, um futuro de igualdade e cumplicidade. É um grande privilégio desfrutar de sua amizade, a amizade de um gênio, que emerge da natureza, por sua força criadora, somente a cada meio milhão de anos.

PARABÉNS, CHICO. UM GRANDE ABRAÇO

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