Por Marcelo Semer
Quando o presidente da República começou a municiar suas redes sociais com fake news, algo não muito diverso do que havia marcado sua campanha, aliás, muitas pessoas se indignaram. Mas não muito mais do que isso. Dizia-se que era inadmissível que um presidente propagasse mentiras – mas estas continuaram a ser admitidas. Até outro dia em que a imprensa divulga que os ministros do Tribunal de Contas da União (TCU) ficaram escandalizados com a utilização de dados mentirosos para questionar os mortos na pandemia.
A imprensa ela mesma se escandalizou quando as ofensas a seus jornalistas se tornaram quase diárias no cercadinho onde o presidente os atende no começo do expediente. Ele foi misógino, homofóbico ou simplesmente mal-educado. E a imprensa seguiu ouvindo e divulgando o presidente, até que os jornalistas começaram a ser fortemente hostilizados pela claque e, em alguns eventos, simplesmente agredidos. Mas não houve greve, não houve bloqueio, não houve silenciamento. O mesmo presidente que havia dito, de forma nojenta, que uma jornalista estava ávida para “dar o furo”, na semana passada chamou outra de “quadrúpede”.
As instituições continuaram funcionando, mesmo depois que o presidente deu razão a um auxiliar direto que ofendeu, gratuita e grosseiramente, a ministros do Supremo Tribunal Federal – mas o que parecia ser o fim de linha resolveu-se com um prêmio para um requisitado cargo no exterior. E o presidente continuou dando guarida a todos os parceiros que humilham e ameaçam os ministros, e ele mesmo tece considerações para lá de desairosas cada vez que recebe uma decisão desfavorável. Mas não tem problema, segundo os próprios presidentes do Tribunal. Dias Toffoli, ao deixar o cargo, fez questão de dizer não ter visto da parte do presidente e de seus ministros, “nenhuma atitude contra a democracia”; Luiz Fux, logo depois de assumir, afirmou que o impeachment de Bolsonaro seria simplesmente “desastroso para o país”.
Não bastassem os milhares de militares com que o governo vem aparelhando a máquina pública, e um grupo de ministros fardados de competências questionáveis, uma parcela considerável do meio político ainda permanece na expectativa de que, no final das contas, os mais racionais do Exército saberão cortar as asas do presidente para evitar loucuras. Mas eis que o general Pazuello sobe no palanque para troçar da CPI da Covid, e sua falta funcional é arquivada em tempo recorde, proibindo Bolsonaro que os militares até a comentassem. Que fundamentos terão sido urdidos para justificar não punir a violação à disciplina de que tanto se orgulham os militares não se saberá tão cedo, pois o sigilo lançado no processo administrativo só se iguala ao das atrocidades praticadas na Guerra do Paraguai.
Depois de levas de eleições muito bem-sucedidas, com apurações rápidas e confiáveis, eis que a fidelidade da apuração eletrônica é colocada em xeque, da mesma forma como Donald Trump antecipou nos Estados Unidos as críticas ao já tradicional voto por correspondência. O alerta de fraude, como se sabe, foi mero pretexto para negar um provável resultado desfavorável e, no caso, justificou uma agressão ao Parlamento que os Estados Unidos até então nunca tinham presenciado. E que diz Bolsonaro sobre o assunto? Que “se não houver voto impresso na eleição de 2022, no Brasil será muito pior”. A ameaça explícita à democracia não fez o país discutir o impeachment, mas justamente o voto impresso.
Um secretário de Bolsonaro emulou a lembrança de Goebbels, para anunciar um programa nacionalista que, na véspera, o presidente elogiara como a redenção da cultura brasileira. Bolsonaro o demitiu a contragosto, mas passou ele mesmo a mimetizar Mussolini na convocação e liderança de atos de massa que defendem, abertamente, a destruição da democracia. Chocando um total de zero pessoas, pois, como como diz Marcio Sotelo Felippe, um dos intelectuais que mais cedo identificou o DNA fascista do governo:
“Bolsonaro jamais dissimulou. Ao longo de sua abjeta vida e de sua ridícula trajetória política, ele nunca escondeu o culto à morte, o gosto pela tortura, a frustração porque a ditadura não matou 30 mil pessoas em vez de 430, a admiração pelo homem que enfiava ratos e baratas na vagina de mulheres. Como isso foi possível? A resposta está na compreensão do fascismo. Do que é a sua essência. Bolsonaro jamais escondeu o que era e o que pretendia, tal como Hitler e Mussolini. Hitler cumpriu rigorosamente o programa do Mein Kampf, publicado anos antes de sua ascensão ao poder. Bolsonaro cumpriu seu programa com a contingência da pandemia. A fala do fascista é essencial para levá-lo ao poder. Não se trata de bravatas ou palavras ao léu como costumeira e ingenuamente se interpreta.”
Mas nós continuamos a tratar a situação como um “momento de polarização”, um presidente indelicado, dentro de uma democracia que é forte e tem as suas próprias defesas.
Na pandemia, vimos a tragédia acontecer diante de nossos olhos incrédulos: desprezo pela gravidade da doença, desrespeito com os mortos, luta incessante contra as medidas de isolamento, críticas mentirosas à funcionalidade das máscaras, propaganda de um remédio que sabidamente não funciona, e um atraso proposital na aquisição de vacinas, porque, afinal de contas, a pandemia é seu principal mecanismo de defesa. Ninguém melhor que seu desafeto Rodrigo Maia conseguiu expor isso ao fundamentar por que ignorava os pedidos de impeachment: “Temos de focar na pandemia”. Com foco na pandemia, meio milhão de brasileiros já morreram e o país que patina na marca de 10% da população adulta vacinada oferece um espetáculo diário tragicômico no Senado para “discutir a cloroquina”.
O que as instituições funcionando não perceberam é que o governo é a sua própria sombra; ele funciona no paralelo porque ele é o negativo das instituições. Ele não tem um “gabinete do ódio”; ele é um gabinete de ódio, porque o ódio é essencial para a política de destruição a qual nunca escondeu.
Dizem que eles são negacionistas, mas não é verdade. Negacionistas são os que se recusam a ver. Ou veem e se recusam a aceitar o que veem. Em States of denial (Polity Press, 2008), o sociólogo Stanley Cohen discute os estados de negação que levam as pessoas ao paradoxo de saber e ao mesmo tempo não saber. Para ele, mesmo as vítimas potenciais repletas de sinais de alerta costumam minimizar seus riscos, não acreditando que o impensável pode acontecer com elas. Veja o que diz Cohen sobre a situação dos judeus alemães às vésperas do Holocausto:
“O desdobramento da percepção da Solução Final pelos próprios judeus europeus tornou-se um protótipo de negação coletiva. Nos anos trinta, poucas pessoas levaram a retórica de Hitler a sério. O nazismo era visto como um fenômeno temporário, um retrocesso a ser suportado até que passasse. Na Alemanha, cada nova medida antijudaica, cada escalada da perseguição, era vista como a última. Mesmo quando os massacres começaram, os rumores, depois relatos confirmados e histórias de sobreviventes, eram todos descrentes. Laqueur enumera as negativas familiares: ‘são como pogroms tradicionais … apenas incidentes isolados, o trabalho de um comandante local … não pode ficar pior do que isso … Os alemães são cultos, isto é a Europa, não uma selva … isso não pode acontecer com pessoas inocentes …”
Os negacionistas somos nós.
Artigo publicado originalmente na Revista Cult.
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