Negros em posição de poder incomodam porque sua liberdade nunca foi presumida
Uma peça em três atos. Primeiro ato: Presidência dos EUA emitiu um memorando no último sábado (4) determinando que todas as agências federais cancelem treinamentos sobre racismo; numa canetada apaga a expressão “privilégio branco” do vernáculo presidencial. Sai a expressão, permanece a prática que a sustenta.
Segundo ato: na sexta-feira (3), o Secretário de Cultura Mario Frias encena uma espécie de Malhação versão Goebbels sobre heróis nacionais, numa estética europeia oitocentista cafona. Imagino que Luiz Gama, Zumbi dos Palmares ou Zeferina não ocuparão o panteão heroico oficial. Nunca faltaram narradores para contar as histórias dos senhores de escravos, disse certa feita o abolicionista Frederick Douglass.
Terceiro ato: Demétrio Magnoli nos alertou neste jornal no último dia 4 sobre o “avanço da doutrina racialista” e sobre os “ressentimentos [com o qual cotas] nutrem o racismo”. Lamenta que negros veem a política “como profissão: meio de ganhar a vida e produzir patrimônio” e incluí-los na história política significaria “alçar ‘negros’ a empregos bem remunerados”.
Para efeitos de debate, o problema não é ser contra cotas raciais nas universidades ou na política (esta Folha ainda se opõe às primeiras). Vejo problemas em negar políticas afirmativas, mas deixemos este debate para outro dia.
O problema, aqui, é se incomodar em ver negros em posições de poder e escrever isso com todas as letras em um jornal que preza pela democracia. Se com racismo não há democracia, a cor da democracia não é só o amarelo: são todas as cores, ou não será democracia.
Apesar de serem três atos de distintas naturezas e localidades, a peça tem algo em comum: dificuldade de olhar na cara da História.
Raça não é importante porque nós, os ditos “racialistas” na expressão pejorativa, dizemos que é. Raça é constitutiva das nações do transatlântico negro, porque estas nações foram construídas sobre os ossos de pessoas negras escravizadas. Literalmente: basta ver o cemitério dos pretos novos no centro da capital do império.
No mundo de hoje, felizmente, não há monopólio sobre narrativas históricas. Concorde ou não com políticas de equidade racial, apagar o fator racial é ignorar parte da História que vai além dos heróis oficiais.
O texto de Magnoli é errado em muitos sentidos. Destaco dois. Primeiro, é ofensivo. Não sei se perdi algo no argumento, mas é errado negros “alçarem” a postos de poder? Se brancos, desde que puseram os pés nesta terra, fizeram da política sua carreira e do Estado seu patrimônio, e se a maioria do Congresso Nacional é composto estatisticamente de brancos milionários, por que incomoda tanto negros ascenderem ao poder?
Segundo, e principal, o texto ignora bibliotecas inteiras de estudos sérios. Prefere esconder-se no lugar de fala de um certo racialismo ressentido e, portanto, cancelar o bom debate sobre o tema. O que não deixa de ser, ao menos, engraçado, considerando que Magnoli escreveu há duas semanas que o “lado bom do cancelamento” é que, com ele, “adultos podem debater sem ruídos incômodos, enquanto as crianças brincam com seus pares”, numa espécie de “separate but equal” informacional.
Já que o autor também falava de racismo nesse outro texto, pergunto-me quem seriam os adultos e quem seriam as crianças na metáfora proposta.
Sou contra o cancelamento, prefiro que argumentos –sejam a favor, sejam contra – sejam postos à mesa, porque assim podemos ver quão esquelético é um argumento quando tiramos dele a poeira do ressentimento. Este é o caso.
Se por ruído incômodo entendermos dados empíricos, aí não há cancelamento de ruído que apague a realidade.
Vejamo: políticas de cotas apenas sociais não foram capazes de promover a inserção de estudantes negros no Brasil tanto quanto as cotas raciais combinadas com sociais (ver estudo “Affirmative action in Brazilian universities” de dezembro de 2019 na Economics of Education Review).
Opor cotas sociais a raciais é ignorar que a lei federal combina as duas. Ressaltar a transitoriedade das cotas raciais é desconsiderar que, embora a política de cotas tenha prazo, este prazo presume estudos sérios sobre sua eficácia, o que o Estado brasileiro tem ignorado.
Ademais, o texto de Magnoli lamenta que se advogue perante o TSE por 30% de candidaturas negras em cada partido, esquecendo que na realidade candidatos negros nos principais partidos já somam 34,2% das candidaturas em 2018, mas apenas 23,9% daquelas com mais recursos.
Para quem quer ter um debate racional sobre o tema, há de se lembrar estudos sérios, ambos de 2015, como “A cor dos eleitos” de Campos e Machado, e o livro “Inclusion Without Representation” de Htun, publicado por Cambridge, que trata de reservas por gênero e raça na América Latina. Não é uma jabuticaba brasileira da cabeça dos ministros racialistas do TSE, como faz crer o texto.
O autor, ademais, compara setor privado a setor público. Ignora a parcela expressiva de negros no serviço público por concurso, que conta com menos vieses raciais na contratação do que o setor privado. Vieses esses provados estatisticamente no estudo “Assortative Matching or Exclusionary Hiring”, publicado na National Bureau of Economic Research em 2018, sobre empresas brasileiras.
Já que é 7 de Setembro, lembro que, na descolonização, a retórica da escravidão era comum, como nos ensina João José Reis no belo texto “Nos achamos em campo a tratar da liberdade”, sobre a resistência negra no Brasil oitocentista. À época era comum escutar que o Brasil era “escravo” de Portugal, e que “a independência nos ‘libertaria’ dos ‘grilhões’ portugueses”. Alguns escravizados escutaram esta retórica e presumiram que se falava de sua própria liberdade da escravidão. Muitos pagaram com a vida por isso.
Até hoje negros pagam caro por presumir-se livres.
Negro, o violoncelista Luiz Carlos Justino, preso na última quarta-feira por ter sido confundido com um assaltante, somente foi liberado no domingo, apesar de haver provas de que estava tocando no momento e hora do crime ao qual é acusado.
Não deixemos que o estrondoso ruído incômodo da branquitude ressentida ofusque o som do violoncelo dos 20 músicos que tocaram no sábado por uma hora na frente do presídio onde estava Justino.
Que este seja o ato final desta peça chamada Brasil, o ato de liberdade.
Artigo publicado na Folha de S.Paulo.
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