Não vou falar neste espaço sobre as recentes mentiras e os impropérios lançados pelo ministro Paulo Guedes que chamou os servidores públicos de parasitas.
O “Parasita” que menciono é o incrível filme coreano, ganhador de cerca de duas dezenas de prêmios, sendo o último o Óscar, de melhor filme, roteiro original, diretor e filme internacional, que a tantos impactou.
Há muitos gatilhos nesta obra que desencadeiam significantes e significados, que devem variar de pessoa para pessoa.
O que me fez retomar a memória, que sei que faz parte da vivência de toda pessoa que esteve em uma prisão ou em um ambiente que tenha presença de presos (como um fórum) foi o personagem invisível: o cheiro.
Fico me perguntando: qual seria o cheiro que o diretor Bong Joon Ho colocaria nas salas de cinema, se isto fosse factível, para que o público sentisse pelo olfato o que os personagens do filme experimentam?
Na primeira cena que esta questão vem à tona em “Parasita”, minha cabeça voou para o longínquo dia que fui pela primeira vez em uma penitenciária. Foi na década de 80, quando era estudante da Faculdade de Direito da PUC. Fui para um estágio voluntário, em razão de encaminhamento feito pelo professor José Gaspar Gonzaga Franceschini, que nos relatou em sala de aula os problemas da deficiência da assistência judiciária.
Portões abrindo e fechando atrás de mim e quanto mais adentrava ao presídio mais sentia o forte cheiro sufocante que nunca tinha vivido e que voltei a sentir em todas as oportunidades que estive em prisões.
Não sei bem descrever. Um cheiro que sufoca, incomoda, dá um pouco de náusea. Talvez venha da mistura de mofo, suor, cigarro, azedo da comida estragada, insalubridade, esgoto, falta de banho, banho rápido e gelado (a amiga Sonia Drigo, do Grupo “Mulheres Encarceradas”, me diz que em dia de visita o cheiro muda um pouco, pois mistura com a fragrância de shampoos).
É odor que fica impregnado nas pessoas para quem as promessas constitucionais nunca foram cumpridas. Cheiro de abandono.
Tive a sensação que este cheiro da prisão deve ser o mesmo cheiro sufocante do porão que uma das famílias do filme “Parasita” reside, onde não há sol, não há luz, não há direitos e que contrasta com a casa dos endinheirados, que é ampla, clara, iluminada, envidraçada, ainda que tenha um porão, cuja existência desconhecem .
O “cheiro” é o fio condutor que aparece em vários momentos chaves do filme e costura o mar de violência estrutural daquela sociedade. O patriarca endinheirado sente na pessoa de seu motorista; o patriarca pobre percebe, já que o patrão mostrou gestualmente o incômodo pelo odor; a mulher rica sente igualmente; a criança rica fala que os quatros pobres têm o mesmo cheiro; os empregados ouvem os patrões falando com repugnância do cheiro ruim; os pobres pensam em se livrar do cheiro; usam estratagemas para mudar os cheiros de cada qual, mas a filha tira as ilusões do pai: É o cheiro do porão e não há como escapar enquanto estiverem lá. E finalmente, num momento emblemático, é na cara nauseante, pelo cheiro exalado, que os últimos gatilhos disparam no filme.
Bem, mas o que o cheiro tem a ver com o Judiciário?
Simbolicamente, o cheiro tira a dignidade das pessoas.
É como se o cheiro fosse um não reconhecimento da qualidade do humano que existe no outro ser. Em relação ao sistema prisional, retira-se de circulação a pessoa que incomoda socialmente, que cheira, mas é certo que eles voltarão um dia .
Constata-se uma resistência por parte do Judiciário para que as pessoas retornem. Certamente muitos juízes gostariam que essas pessoas ficassem eternamente no porão, que os muros fossem eternos e que os cheiros não ocupassem os lugares que frequentam.
Talvez isto explique porque o Tribunal de Justiça de São Paulo negou, em 2019, 60% dos pedidos de prisão domiciliar para mulheres grávidas ou com filhos de até 12 anos, em que pese haver decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).
Artigo publicado originalmente no Justificando.
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