Por Flávia Nascimento e Paloma Lamego
No Natal da pandemia, amanhecemos com a notícia de mais uma vítima da violência machista. Inconformado com o fim do relacionamento e ignorando os gritos desesperados das três filhas do ex-casal que assistiam à manifestação de ódio e poder do agressor, o ex-marido concretiza a ameaça que fez poucos meses antes e mata a ex-mulher com 16 facadas, no momento da entrega das crianças para o Natal em sua companhia.
Embora tenhamos uma legislação da magnitude da Lei Maria da Penha, reconhecida pela ONU como a terceira melhor lei do mundo no combate à violência doméstica, o Brasil ainda ocupa o quinto lugar no ranking de mortes violentas de mulheres. Por que falhamos?
Diante dos fatos recentes que vitimaram uma juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro na frente de suas três filhas menores, impossível não lembrar as afirmações de um juiz de Vara de Família do Estado de São Paulo durante audiência que presidia: “Não tô nem aí para a Lei Maria da Penha. Ninguém agride ninguém de graça”; “Será que vale a pena levar esse negócio de medida protetiva para a frente?”.
Alguns elementos desse feminicídio merecem atenção: separação recente, visitação e faca. Dados da pesquisa realizada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, identificando o perfil das vítimas de feminicídio no Rio de Janeiro, confirmam que, na maioria das vezes, mulheres são mortas no contexto das relações íntimas e de afeto. O documento ainda revela que, em 72% dos casos, o crime ocorreu na residência da vítima e, na maioria das vezes, no turno da noite ou de madrugada (62% das ocorrências na residência da vítima), tendo como motivação a não aceitação do fim do relacionamento ou simplesmente “discussão”. Quanto ao meio empregado para a prática do crime, o mais frequente é a faca, utilizada em 44% dos casos, seguida da arma de fogo (17%).
Todos esses dados já são conhecidos pelo poder público, responsável pela elaboração e execução de políticas capazes de prevenir essa forma de violência. Pensar novas estratégias de enfrentamento à violência, que promovam a proteção integral de todas as mulheres, é medida urgente!
Desde o início da vigência da Lei Maria da Penha, o Poder Judiciário privilegia seu caráter penal, priorizando medidas destinadas à punição do agressor. Esse tratamento reduz a compreensão do complexo fenômeno social, que são a violência de gênero, as estratégias para sua prevenção e a proteção integral às mulheres, favorecendo a revitimização de mulheres, sobretudo nas varas de família.
Embora o Poder Judiciário seja uno e indivisível, as questões afetas à violência doméstica e familiar com frequência são desconsideradas nas varas de família, sob o argumento de serem de competência dos Juizados da Violência Doméstica e Familiar. Ou, como noticiado recentemente, a Lei Maria da Penha é desprezada.
De outro turno, juízos com competência para violência doméstica e familiar deixam de apreciar, em sede de medidas protetivas, pedidos como regulamentação da guarda, visitação e alimentos, sob o argumento de lhes faltar competência para a matéria.
Estabelece-se uma situação parodoxal, que inviabiliza a proteção integral às mulheres. Não é possível dissociar a violência doméstica contra a mulher dos conflitos de natureza familiar, uma vez que impactam na proteção integral tanto da mulher que sofre a violência, quanto dos filhos que as presenciam.
Passados 14 anos da vigência da Lei Maria da Penha, é urgente repensarmos esse modelo exclusivamente punitivo para o enfrentamento à violência contra a mulher, pois não se restringe a um problema de segurança pública. Para garantir a proteção integral expressamente prevista na Lei Maria da Penha, a implementação da competência híbrida nos juizados da violência doméstica e familiar contra a mulher é medida urgente!
Flávia Nascimento é coordenadora da Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ), e Paloma Lamego é segunda subdefensora pública-geral da DPRJ.
Publicado em O Globo.
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