Uma das grandes conquistas históricas da ciência do direito penal é o reconhecimento de que sua função é subsidiária em relação aos outros meios de controle social. Quer dizer, para a solução de um conflito, o Estado deve fazer uso de todos os instrumentos possíveis antes de fazer uso do direito penal, que consiste na ultima ratio do ordenamento jurídico. Também é de se ressaltar o princípio da lesividade, segundo o qual uma conduta só pode ser criminosa se representar perigo efetivo ou lesão a um bem jurídico penalmente relevante.
Para que os princípios do direito penal não sejam discurso vazio, é necessário aplicá-los nos casos concretos com o fim de evitar sua banalização e o uso abusivo do poder punitivo do Estado. Assim, interpretando-se os ideais de um Estado humanista, comportamentos de pouca ofensividade não devem estar na seara do direito penal, considerado o ramo mais repressivo do direito. Pode-se afirmar que o princípio da insignificância é vetor fundamental para o direito penal desempenhar seu papel de proteção de bens jurídicos contra os ataques mais graves e, por isso, merece uma atenção maior da jurisprudência.
Não existem parâmetros precisos que delimitem aquilo que é significativo para o direito penal, sendo praticamente impossível listar taxativamente o que merece e o que deve ficar fora da tutela penal. Sendo assim, pode-se levantar dois problemas relacionados ao princípio da insignificância: (1) qual o parâmetro para decidir se algo é insignificante? Seria o valor do bem em relação à vítima? Ou seria o custo total do processo? (2) Chegando à conclusão de que um comportamento é ínfimo, qual a função dogmática da insignificância? Há exclusão de tipicidade, antijuridicidade ou culpabilidade?
A primeira questão deve ser resolvida considerando não a situação da vítima, e sim os altos custos de um processo criminal. Quando nos referimos aos custos, não são apenas os de ordem econômica, em especial as despesas do Estado para conduzir o trabalho policial e o processo, do oferecimento da denúncia ao esgotamento dos recursos. A estes custos somam-se os de caráter pessoal dos participantes da relação conflituosa. Isto é, além dos gastos econômicos que, não raramente, ultrapassam em muito o valor da lesão, há o desgaste do autor e da vítima.
Sobre o autor do crime pesa o status de acusado de prática delitiva, cujas proporções podem ser incalculáveis. A repercussão pode interferir na vida familiar, no círculo profissional, na obtenção de créditos, enfim, o sujeito fica estigmatizado e, seja qual for o desfecho do processo, a marca poderá nunca ser apagada. À vítima, apesar do provável desejo de punição, cabe o ônus de comparecer aos atos de investigação e processuais. Nesses momentos deverá relembrar o fato, expor os detalhes e encarar o suposto criminoso. Ao juiz a ao promotor resta utilizar parte do seu tempo, que seria mais útil em casos graves, nas situações de pouca monta e que poderiam ser resolvidos de forma menos repressiva.
Considerar o valor da lesão e os custos totais do processo criminal parece atender aos anseios do Estado democrático de direito, uma vez que deixar de usar a máquina repressiva, sempre que possível, significa sua racionalização e restrições ao poder punitivo. Estigmatizar é um preço alto que deve ser compensado com uma lesão relevante ao bem jurídico protegido. O prejuízo de um furto de pequeno valor, por exemplo, e a imposição de alguém na condição de réu são duas medidas muito diferentes e isso pode gerar o desperdício da força do Estado. Enfim, parece ser inevitável considerar, acima da condição da vítima, o custo total da estigmatização.
Isso não significa liberar a prática de crimes de pequeno valor. Deve-se pensar em meios alternativos de resolução de conflitos quando estes forem insignificantes ao direito penal. Retirar o tratamento penal permitiria fazer uso dos outros ramos do direito, como o civil ou o administrativo. Métodos de composição de danos ou aplicação de multas podem ser mais eficientes e menos gravosos ao Estado e aos envolvidos no conflito. Evitar-se-iam casos absurdos como a prisão em flagrante por tentativa de furto de sabonetes, latas de óleo, pacotes de macarrão, entre outros. Muitos desses flagrantes não são relaxados e a liberdade provisória geralmente é negada, restando ao “perigoso delinquente” aguardar preso o desfecho do caso.
Resta, por fim, definir qual a posição dogmática do princípio da insignificância na teoria do delito. Parece não haver outra resposta que não seja a tipicidade. Quer dizer, sendo a lesão insignificante, o fato será atípico. Talvez o mais forte argumento esteja na insuficiência para a tipicidade material. Apesar de formalmente um fato ser típico, é necessário que o bem jurídico tutelado seja efetivamente lesado ou fique exposto a perigo relevante, o que preencheria o juízo da tipicidade material. O comportamento típico, portanto, implica atingir significativamente o bem jurídico que a norma quer proteger, num grau que mereça a reprimenda penal.
Excludente de antijuridicidade não pode ser, uma vez que não há norma autorizadora, no ordenamento, para delitos leves. Também não pode ser excludente de culpabilidade porque o fato não chega a formar o injusto penal reprovável. Quer dizer, não há que se falar em reprovabilidade se não há lesão relevante ao bem jurídico. Portanto, sendo insignificante a lesão, o fato será atípico e a questão deve ser resolvida em outra esfera do direito. Não é permitido, assim, deixar de aplicar o princípio por causa da reincidência, uma vez que esta é problema de aplicação da pena, não de tipificação.
Não é a pretensão deste trabalho delimitar o que seja ou não insignificante – principalmente pelo curto espaço. Deve o intérprete usar o bom senso e a prudência antes de considerar um fato criminoso. Evitar a aplicação da lei penal é fundamental para preservar a própria legitimidade do direito penal. O Estado não pode furtar-se da responsabilidade de resolver conflitos na sua causa, por meio de políticas públicas, apoiando-se sempre no direito penal. Usar a lei penal como principal instrumento de prevenção ao crime é o maior sinal de falência que o Estado poderia demonstrar.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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