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Sabem a diferença entre rescisória, revisional e recurso especial?

Sabem a diferença entre rescisória, revisional e recurso especial?

Crônica de uma tragédia anunciada. Aí vem uma PEC lulocentrista, mas que tem jeito de terraplanismo jurídico. Vou explicar.

A PEC nº 199/2019 quer eliminar os recursos especiais e extraordinários. No lugar deles, querem colocar ação rescisória (na verdade, chamam de revisional). Qual é o busílis?

Hoje, para interpor REsp, tem de haver algum destes requisitos: contrariedade de tratado ou lei federal ou negativa de vigência desses, julgar valido ato de governo local contestado em face de lei federal e controvérsia jurisprudencial, tudo conforme a CF, artigo 105.

Para um RE, tem de haver algum destes requisitos: quando a decisão contraria a CF, declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, julgar válida lei de governo local contestado em face da CF e julgar valida lei local contestada em face de lei federal.

E o que é rescisória? Bom, esta já existe. Vê-se, de pronto, que estamos em face de ovos e caixa de ovos. Coisas muito diferentes. Enquanto no Resp ou RE se busca erros de interpretação, nulidades e inconstitucionalidades, na rescisória se busca, transitada em julgado a decisão, enfrentar-encontrar vícios, como prevaricação ou corrupção do juiz, impedimento ou incompetência desse, coação de quem venceu sobre quem perdeu, ofensa à coisa julgada, violação manifesta de norma jurídica, falsidade já declarada ou possibilidade de provar falsidade no bojo da própria rescisória (como isso seria feito em matéria criminal no STJ e STF?), prova nova de cuja existência o autor ignorava e que por si só possibilitava decisão em contrário (essa é fácil, não?)… Também cabe rescisória se a decisão rescindenda for fundada em erro de fato (mole também, não?) e quando a decisão estiver baseada em sumula ou acordão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado um distinguishing. Achou longa a lista de requisitos? Pois é. Alguém já tentou fazer uma rescisória? Vejam a jurisprudência.

Ah, opa. Não é rescisória. É “revisional”. Aí pode? Bem, calma lá, leitor. Esse é o problema da pressa – a pressa que têm os deputados lulocentristas. O texto da PEC coloca como requisitos da revisional não os da rescisória, mas os dos atuais recursos extraordinário e especial. Certo. O obstáculo é menor. Apenas troca o nome das coisas? Mas, como demonstrar repercussão geral? E como provar o interesse geral? Em matéria criminal – que é o foco principal?

E o conceito de trânsito em julgado? Ora, coisa julgada é cláusula pétrea. A PEC extermina com a coisa julgada e cria um ornitorrinco no lugar, com requisitos semelhantes ao do atual RES e RE. Durma-se com isso…

Mas vejam lá: nem só de 103 e 105 se faz uma Constituição. Além de uma decisão (vinculante) do STF sobre a presunção de inocência – volto a isso depois – temos um inciso pequeninho de um pequeno parágrafo: o IV do £ 4º do art. 60, que impossibilita PEC tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Cláusula pétrea. Sacralização no texto constitucional do princípio básico de vedação ao retrocesso. _O recurso é um direito, uma garantia individual_ . A vontade do constituinte originário foi a de estabelece que as Cortes superiores são acessíveis mediante recurso, e a de que, em havendo a possibilidade de recurso, presume-se a inocência do réu. Esse é o busílis.

Difícil, não? Como passar de um sistema para outro? Mais: a PEC que extermina o REsp e RE será abrangente para os demais ramos, como tributário, cível e quejandos? Ou será só para penal? O patrimônio — do poder público — vale mais que a liberdade — do cidadão? Ora, ora: “liberais” (sic) que não gostam da Constituição e, entre Estado e indivíduo, ficam com o Estado… Mais uma jabuticaba. Liberais fanqueiros. Liberais de fritar bolinhos. Bem, onde se acha que REsp pode virar revisional, isso é “fichinha”.

Bom, se for para todas as áreas, ficará bem interessante uma decisão de segundo grau terminativa em matéria tributária, que só poderá ser modificada por revisional. E em matéria trabalhista? Paga logo? O governo pagará? Ou não vale para os governos?

E se for só para a área criminal? Condenação e, pronto: prisão na segunda instância. Assim, direto? Como funcionará a revisional? Aí está. Se a revisional é uma cópia do RES e RE, a resposta é simples: a PEC só serve para dar o drible na coisa julgada. Intriga o fato de os requisitos para a revisional serem os mesmos dos recursos especial e extraordinário. Claro, sabemos o objetivo. Prender automaticamente e o condenado é que terá que provar o contrário? Como uma espécie de ordália, porque já estará cumprindo a pena?

A admissibilidade será feita pelo Tribunal a quo. OK. E caberá agravo para o STJ ou STF? E se couber agravo, no STJ ou STF esse será examinado monocraticamente como no caso do REsp e RE, hoje? Imagino o leque de “precedentes” defensivos que serão opostos pelos Tribunais Superiores. (“Precedentes”, leia-se, teses abstratas e prospectivas.)

No caso da matéria cível, o valor decidido no acordão em favor de uma parte já terá que ser pago logo? Haverá caução?

De novo: De que modo essas revisionais serão julgadas no STJ e STF? Com os mesmos requisitos do RESP? Ou do RE?

Problema grave: como fica o controle difuso? O STF fará controle difuso no bojo da revisional?

É a crônica de um caos anunciado. Vão atirar for a água suja com a criança junto. Tudo por uma narrativa. Uma legal fake news. Venderam a ideia de que a decisão nas ADCs proibiu a prisão que eles tanto desejam: a decorrente de decisão de segunda instância.

Já falei aqui e aqui e aqui e aqui e aqui (ufa!) que isso não é assim. Mas não adianta. Para quem acredita que a terra é plana não adianta mostrar a fotografia da terra. As sombras são sombras, denunciava Platão à plebe ignara que estava imersa na caverna.

Hoje a caverna é a rede social. Enfim, a terra é plana. E, pelas fake news, está assentado que o STF proibiu a prisão em segunda instância. Eles acreditam tanto nisso que querem trocar REsp e RE por ação revisional. Quero ver como vai ficar.

Aliás: qual será a opinião da senadora Selma Arruda — chamada de o “Moro de saia” — sobre a possibilidade de recorrer? Acaba de ser cassada pelo TSE por 6 a 1. Mas vai recorrer…ao STF. Não é bom ter recursos? Deltan tentou fazer prescrever seu processo no CNMP usando de todos os recursos possíveis e imagináveis. Pau que lanha as espaldas de Chico, lanhará as espaldas de Francisco?

Aguardemos. Senadores histriônicos e deputados gritões não sabem o que estão fazendo. Mas, será que serão perdoados? Porque o ponto é: dá para perdoar minha tia que manda notícias falsas no whatsapp e não entende nada sobre nada e xinga tudo sobre tudo. Mas dá para perdoar juristas e juízes, e representantes do povo, parlamentares, legisladores, que cedem ao punitivismo e rasgam a CF, rasgam conceitos que a lei e a boa dogmática já sacralizaram na autêntica tradição do Direito? Alô senadora Selma, diz aí! Alô dono das Lojas Havan, quem conhece melhor do que ninguém o valor da presunção da inocência depois de ser condenado a uma pena de mais de 10 anos no TRF4, por lavagem de dinheiro e evasão de divisas (ler aqui)? Todos sabem o modo como o dono da Havan fala das Instituições, o “apreço” que tem pelo STF, etc. E, graças a muitos recursos (desses recursos tão criticados por senadores como Lasier, Telma, Major Olimpio, etc,) a ação penal contra Hang prescreveu no STJ. C’est la vie! Ou: “ “Fouet qui frappe le dos de Chico, frappe le dos de Francisco” — versão tupiniquim-francesa do fator “costas lanhadas”.

Sempre disse e repito o que Dworkin já dizia em seus escritos sobre desobediência civil. É um disparate a ideia de que o Direito é o que o Judiciário diz que é. O ponto é que legisladores também não podem dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa.

Ora, o Direito não é um amontoado de leis e precedentes aleatórios. O Direito é um todo coerente. Há um ordenamento, há uma tradição, há princípios que sustentam tudo isso. Tudo isso deve ser respeitado. O legislador tem um importante papel a cumprir; mas não pode dizer que ovos são caixas de ovos.

Última forma: Afora a PEC da qual falei acima, surgiu o projeto aprovado no senado dia 11.12.2019 no Senado — Várias violações! Vejamos.

Nem passou pelo plenário. Drible da vaca na CF e no STF. Porque vejam: o STF decidiu que o artigo 283 é constitucional (ADC 44). À luz da presunção da inocência. Essa decisão vincula. Vincula o Judiciário e vincula o Parlamento, porque a CF e suas cláusulas pétreas são a autoridade a quem respondemos todos que compomos a prática jurídica. Esse é o ponto.

Rasga-se a tradição, rasga-se a CF, rasga-se os conceitos da tradição do Direito, tudo isso a toque de caixa porque “tem que prender o Lula”. Uau. Com inimigos que lhe dão toda essa grandeza de presente, o ex-Presidente nem precisa de muitos amigos.

É incrível isso. Todo esse drible da vaca na CF corre o risco de não passar porque podem não querer mexer no patrimônio. Genial. Para prender o Lula (e a patuleia), vale tudo. Até essa trampa epistêmica. Agora, num país em que “liberais” não gostam de limitação do poder do Estado, é mesmo de se esperar que o patrimônio tenha mais valor que a liberdade.

Como isso vai ser? A ver. Mas que saibam bem o que estão fazendo. E que não se esqueçam:

– O STF nunca proibiu a prisão sequer em primeiro grau (prisões cautelares eram, são, serão possíveis).

– A declaração de constitucionalidade do art. 283 à luz da presunção de inocência vincula.

– Se a CF vincula, e se ela diz o que diz, qualquer tentativa de burlar o sistema tem de ser assim chamada.

Simples assim. By the way: Desculpem-me a insistência garantista: O que pensará a senadora Selma sobre o valor dos recursos? Atenção: Sou a favor da presunção da inocência da ilustre senadora. Presunção para todos. Quem me conhece — e não são poucos — sabe que estou sendo absolutamente sincero (ver aqui minha posição sobre aplicação de garantias)!

Resta saber se o fator “costas lanhadas” de Chicos e Francisco vai servir de lição.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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