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Silvio Almeida: “Quem quer civilizar o Brasil não pode temer o poder. Temos de nos livrar dessa alma de senhor de escravo”

Silvio Almeida: “Quem quer civilizar o Brasil não pode temer o poder. Temos de nos livrar dessa alma de senhor de escravo”

Por Felipe Betim

Advogado e filósofo opina que a alternativa ao bolsonarismo precisa ter a vida como valor. Defende que sentença da juíza que cita “raça” para justificar condenação de réu negro deve ser anulada

Silvio Luiz de Almeida (São Paulo, 1976) é um dos principais pensadores brasileiros da atualidade. Além de filósofo, advogado tributarista e professor universitário, com especializações em Direito Político e Econômico e Teoria Geral do Direito, Almeida estuda as relações raciais no Brasil e publicou, no ano passado, o livro Racismo estrutural (Editora Polén). Em entrevista ao EL PAÍS, opina que o presidente Jair Bolsonaro é um “sintoma da derrota do Brasil”, um país que ficou “apático em torno de 100.000 mortes” pelo novo coronavírus porque “já se acostumou com a morte, principalmente de trabalhadores e de pessoas negras”.

Apesar de ter assinado o pedido de impeachment apresentado pela Coalizão Negra por Direitos na última semana, vê poucas chances da iniciativa prosperar. “Qualquer projeto político que queira mudar esse cenário vai ter que pensar na valorização da vida e necessariamente entrar em conflito com as pessoas que desvalorizam a vida”, argumenta. Questionado sobre a sentença da juíza do Paraná que fala em “raça” para justificar a condenação de um réu negro, diz que seu pedido de desculpas é irrelevante. O importante, afirma, é que a decisão seja anulada. “É absolutamente inaceitável do ponto vista técnico jurídico que uma decisão venha sustentada na condição racial do sentenciado”.

Pergunta. Como você reagiu à sentença de uma juíza do Paraná que usou a raça do réu negro como justificativa para sua condenação?

Resposta. Desta maneira eu não tinha visto ainda, mas não ando muito surpreso com algumas coisas, que têm só servido para reforçar alguns aspectos que eu já vinha observando, seja porque sou um homem negro seja porque sou pesquisador, tanto do campo do Direito como também do campo das relações raciais. Não me abriu novos horizontes para pensar nas possibilidades do que o ser humano é capaz de fazer ou do que as instituições são capazes de fazer, até porque são capazes de fazer coisas piores. Mas fiquei no mínimo curioso como isso seria tratado diante do contexto em que vivemos hoje. Mas, eu te digo, não há novidades, porque é isso que acontece independentemente das manifestações.

P. Como o sistema penal brasileiro, e o Direito como um todo, atuam para a perpetuação das estruturas sociais e raciais no Brasil?

R. Temos um sistema de Justiça que funciona a partir do que chamamos de seletividade. Ele é parte de uma estrutura social que precisa funcionar reproduzindo uma lógica socioeconômica de desigualdades, uma lógica de separação que precisa o tempo todo ser alimentada e que vai organizar tanto a economia como também as próprias instituições políticas. O que a gente já chama de desigualdade racial e de desigualdade econômica é naturalizada e é tecnicamente construída a partir da atuação do sistema de Justiça. Ele não produz apenas efeitos políticos, mas também no imaginário. Por exemplo, ao insistir na associação de pessoas negras com criminalidade e com pobreza. Funciona como confirmação de um imaginário social racista, que também é o mesmo imaginário que alimenta a conivência ou nossa indiferença em relação às mortes que ocorrem nas periferias do mundo. É ingenuidade achar que o sistema de Justiça e o próprio Direito, tanto como teoria como também tecnologia, não estão imbricados com o funcionamento da economia e com o funcionamento também da lógica das hierarquias políticas.

P. A juíza pediu desculpas. É o suficiente? Como esse pedido de desculpas deveria se materializar?

R. O pedido de desculpas é também um sintoma terrível dos nossos tempos em que a gente reduz discussões políticas a discussões de caráter moral. A gente quer moralizar os problemas. Até mesmo o racismo se tornou um problema moral. Isso tem um propósito político muito forte e uma relação direta também com o atravessamento das nossas subjetividades pela organização política do mundo neoliberal, em que todos os assuntos se tornam muito pessoais, muito individuais. Pedir desculpas, do ponto de vista particular, ótimo. Aceite quem quiser. Não é uma questão que interessa fundamentalmente à construção de uma esfera pública. A questão é a seguinte: a sentença dela é uma decisão jurídica. E, para isso, é necessário que sejam preenchidos certos requisitos que estão objetivamente descritos na lei. Está no Código de Processo Penal, está na Constituição Federal. Portanto, a única forma de lidar com isso institucionalmente é anulando a sentença, uma vez que as razões que ela levanta são justificativas ilegais para concluir pela culpabilidade do réu. A justificativa é algo essencial, se não a gente vai entrar no campo da barbárie, e no campo da barbárie não precisa ter juiz. Uma decisão só tem poder de manifestar as consequências que dela se espera se ela for feita a partir da legalidade. É absolutamente inaceitável do ponto vista técnico-jurídico que uma decisão venha sustentada na condição racial do sentenciado.

P. Alguns podem argumentar que há outros fatores e provas que incriminam o réu. Que resposta daria a elas?

R. O que a sentença quis dizer não importa, o que importa é o que ela efetivamente disse. E se existem dúvidas sobre o que a sentença, mais um motivo para seja anulada porque para condenar alguém, para tirar a liberdade de alguém, o patrimônio de alguém, é necessário que haja clareza, que haja objetividade. Essa diferença entre viver na Idade Média e viver o mundo no mundo moderno-contemporâneo. As decisões tomadas pelo Estado têm que vir envoltas numa justificativa racional, e racional não é fazer sentido lógico. É o estabelecimento de uma relação entre aquilo que foi decidido e um sentido racional técnico-jurídico. O que dá racionalidade para a sentença é a sua vinculação com a legalidade. A sentença tem que ser anulada e o estado processual das pessoas sentenciados precisa ser restabelecido. Muitos autores vão dizer que nulidade é o preço que se paga por quem não faz o trabalho direito. E não só isso, tem que ficar apontado que a juíza agiu como não juíza, o que faz com que ela incorra em tese nas infrações previstas pelo Código da Magistratura. Ela vai ter que responder também e pode ser responsabilizada pelo que falou na sentença.

P. Para além dessa sentença, há levantamentos que mostram casos de violência policial sendo arquivados com base no lugar e contexto social em que a vítima se encontrava, sem levar em consideração os fatos concretos. Quer dizer, parece existir um padrão da Justiça de agir na ilegalidade…

R. As relações sociais no Brasil e no mundo são atravessadas pela naturalização do racismo. Só que essa naturalização só é possível se você tiver instituições que reproduzam do ponto de vista ideológico e do ponto de vista político essas relações permeadas pelo racismo. Não é só a juíza. O Judiciário e o Ministério Público como um todo são coniventes com a violência policial e com o desrespeito à Constituição. Trata-se de uma subversão do sistema. Existe aquilo que o Supremo falou em outra ocasião sobre um estado de coisas inconstitucional, todo um funcionamento do sistema de Justiça para reproduzir práticas que são inconstitucionais. É mandado de busca e apreensão coletivo, é policial entrando nas favelas e metendo o pé na porta sem mandado… Auto de resistência não existe do ponto vista jurídico, é inconstitucional. Precisamos falar sobre a polícia e como a violência policial só atinge os atuais parâmetros porque existe uma concatenação entre a ação da polícia, o Ministério Público, que fecha os olhos ou dá amparo para que os agentes ajam de maneira violenta, e o Judiciário, que depois confirma [essas ações]… Precisamos também falar sobre os meios de comunicação, que ou silenciam, ou se limitam a falar de questões muito rumorosas, ou ficam no plano do moralismo individual e da fala da juíza.

P. O Brasil acaba de ultrapassar as 100.000 mortes, mas parece existir uma apatia geral, com pessoas saindo nas ruas como se a pandemia de coronavírus tivesse acabado. Existe uma banalização da morte no Brasil?

R. Esse é um país em que morrem em média 50.000 pessoas por ano assassinadas. É uma coisa absurda. É um país em que pessoas morrem de fome. Um país só pode ficar tão apático em torno de 100.000 mortes quando é um país que já se acostumou com a morte, principalmente de trabalhadores e de pessoas negras. É um país que não se livrou da alma da escravidão. Ela não existe mais como sistema econômico e político, mas deixou marcas nas quais o Brasil se reconhece muito. Acho que 100.000 mortes é tido como algo absolutamente corriqueiro.

P. Paralelamente a popularidade de Bolsonaro nunca esteve tão alta. O que isso representa?

R. Bolsonaro é o sintoma da derrota do Brasil. O país já estava derrotado, Bolsonaro só coroa todas as suas mazelas. O presidente da República é uma figura a quem cabe orientar o país num momento de crise. E o presidente desorienta o país, coloca as coisas em dúvida e essa é sua forma de governar. Ele não tem condição de governar sem ser causando confusão, causando conflito… Ele não tem como governar na normalidade, então acho que a morte lhe é propícia. Essas mortes permitem, paradoxalmente, construir um discurso que provoca mais confusão, mais conflito, e consegue também ocultar a sua incapacidade de gestão. E ele consegue transformar as próprias derrotas em vitórias, como é o caso do auxílio emergencial. Ele propôs 200 reais, a oposição brigou e conseguiu 600 reais. E agora, nessa confusão, com o suspiro que as pessoas têm diante do cenário de tanta miséria, ele consegue dar uma volta nisto.

P. Como lidar com esse estado de coisas?

R. Qualquer projeto político que queira mudar esse cenário vai ter que pensar na valorização da vida. O segundo ponto é que a gente vai ter que necessariamente entrar em conflito e confrontar as pessoas que desvalorizam a vida. As pessoas que querem civilizar o país, com todas as objeções que esse conceito possa ter, não podem ter medo de ter o poder. Vão ter que chamar para si a responsabilidade de tomar as decisões e de confrontar certos interesses, de estabelecer um novo cenário para que novas possibilidades e novas vozes surjam no país. A gente precisa se livrar dessa alma bandeirante, de senhor de escravo.

P. No imaginário nacional e também internacional, o brasileiro é aquela pessoa que valoriza a vida apesar de todas as mazelas, ou até como forma de resistência…

R. É que o Brasil vende o que tem de melhor, que é a cultura popular brasileira. A nossa música, quando politizada, é uma forma de resistência. É o samba, são as estratégias de sobrevivência, são os rincões do país onde a vida só é possível porque existe solidariedade mínima entre as pessoas… Existe uma imaginação de sobrevivência. E o Brasil é isso também. O Brasil é Lélia González, é Ariano Suassuna, é Dona Ivone Lara, é Tia Ciata, é Adoniran Barbosa, é Luiz Gonzaga, é Jackson do Pandeiro… E o Brasil é Florestan Fernandes, é Celso Furtado, é Clovis Moura, é Machado de Assis… É o que diz meu amigo [o historiador] Luiz Antonio Simas: a dinâmica institucional é um horror, mas a brasilidade é uma coisa linda, porque é o que conseguimos fazer para sobreviver. Tem algumas coisas que vamos ter que resgatar para parar esse ciclo de morte. Tem uma vida que pulsa.

P. Você assinou o pedido de impeachment apresentado pela Coalizão Negra por Direitos. Para você, quais são os principais crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro desde que assumiu o cargo? Vê as chances de prosperar esse pedido?

R. Não tem a menor chance de prosperar, principalmente agora que ele se ajeitou com o Centrão e resolveu fazer a política como ela é no Brasil. A pesquisa mostra que ele ainda tem um apoio importante de quem tem dinheiro e quem poderia fazer alguma coisa neste momento. E que não vai fazer por conveniência e por interesses próprios. Acho os vários pedidos de impeachment vão desde a interferência dele nas ações relacionadas às investigações que envolvem a família dele, passando também, e principalmente, pelas ações e omissões na pandemia. Pegando a atuação do presidente no contexto da pandemia temos aí uma série de condutas que poderiam ser enquadradas como crime de responsabilidade. Essa coisa da cloroquina, a forma como as medidas fundamentais estão sendo manejadas, tudo isso é vergonhoso.

P. Acredita então que sua narrativa negacionista sobre os efeitos da pandemia acabou vencendo?

R. Fico muito receoso de dizer que ele ganhou alguma coisa. A gente está num mundo em que tudo é possível. O que para mim parece muito evidente é que nós estamos nos aproximando mais e mais e mais de um conflito de proporções imprevisíveis. A economia do Brasil está em franco processo de degradação, e isso vai ter efeitos bastantes importantes. Essa crise vai intensificar uma guerra pelo orçamento público. Começa a discussão pela conveniência do teto de gastos, sobre como lidar com vários interesses populares, de frações empresariado, de frações da burocracia estatal, com promotores e juízes entrando em guerra entre si. Daqui a pouco começa também uma insatisfação das entidades de classe de trabalhadores com relação ao desemprego e ao empobrecimento. Tudo isso vai criando caldo de insatisfação no país. Neste momento, não vejo horizonte de impeachment, mas está tudo muito aberto e não dá para fazer previsões.

P. Você escreveu um livro tratando sobre o racismo estrutural, um conceito que permeia as discussões atuais. Algumas pessoas vêm usando esse conceito para justificar determinados atos racistas que venham a cometer. Sabendo que o racismo forma parte de uma estrutura, qual é a responsabilidade individual de cada um?

R. Se eu entendo o racismo como algo estrutural, então eu sei que existem mecanismos que, para além de mim, funcionam reproduzindo a desigualdade racial. Então tenho que olhar para esses mecanismos, inclusive os que me constituem enquanto sujeito. Vou precisar, por exemplo, olhar para as questões econômicas. Afinal, eu tenho responsabilidade agora, né? Não adianta só pedir desculpas, que não houve intenção. A questão é que somos produzidos por essa condição e nós reproduzimos essas condições que nos atravessam. Precisamos olhar quais são os mecanismos que permitem que a desigualdade econômica continue e quem são as pessoas atingidas. O que eu posso fazer, vendo os meus limites enquanto indivíduo, para tratar dessa questão, para discutir isso, estudar cada vez mais e conversar com pessoas que estejam dispostas a compreender? Tem que olhar para política e como a questão racial também implica numa falta de propostas alternativas ao que está aí e no fato de a gente desperdiçar energias que podem nos ajudar a pensar outras possibilidades. A falta de representatividade também vai naturalizando o lugar e o não lugar de pessoas negras e de outros grupos historicamente discriminados. Também preciso olhar para aquilo que me entretém, o que me faz rir, chorar… E ver como muitas vezes minha empatia, minhas emoções e aquilo que eu desejo estão muito imbricados também com a reprodução do racismo. Em outras palavras, precisamos também constituir um desejo pela igualdade, um desejo pelo outro, um desejo pela vida. Nós estamos alimentando e sendo alimentados por um desejo de morte. Poder estar na rua, andar sem máscara, xingar o governador, o prefeito, o policial, fazer escândalo na farmácia, tossir na cara do outro sem máscara… É um poder doentio que as pessoas adquiriram e estão reivindicando. Precisamos reorientar o desejo, acabar com essa relação entre ter poder e ser alguma coisa. As pessoas identificaram o poder como a possibilidade de tirar a vida do outro, e não como forma de construir alguma coisa nova junto com o outro.

Entrevista publicada originalmente no El País.

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