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Silvio de Almeida: ‘As pessoas descobriram que o racismo não é uma patologia. É o que organiza a vida delas’

Silvio de Almeida: ‘As pessoas descobriram que o racismo não é uma patologia. É o que organiza a vida delas’

Autor de ‘Racismo Estrutural’ afirma que a pandemia do novo coronavírus pode fazer o racismo tomar novas formas de modo a manter desigualdades. Para ele é preciso contruir uma nova economia dos afetos: ‘Precisamos de uma cultura que se oponha ao racismo, que coloque em seu centro produções em que a nossa humanidade caiba’

Os acontecimentos das últimas semanas nos EUA deixaram muita gente estarrecida – inclusive no Brasil. Um homem negro sufocado até a morte por um policial branco, protestos diários contra a violência policial, a resposta truculenta do presidente Donald Trump, a indignação crescente nas redes sociais. Será que finalmente as pessoas brancas entenderam a gravidade do racismo e o quanto ele pauta a política, a economia e as relações sociais? O que é preciso ser feito para desmontar a estrutura cruel e violenta que nega a uma parte da população, não apenas as condições materiais de vida, mas a possibilidade de sonhar?

Silvio Luiz de Almeida é um dos intelectuais brasileiros que têm articulado respostas para essas e tantas outras perguntas. Aos 43 anos, é advogado, doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP, professor na FGV-SP e na Universidade Presbiteriana Mackenzie. É presidente do Instituto Luiz Gama, associação civil que reúne juristas, acadêmicos e militantes dos movimentos sociais que trabalham em defesa das classes populares, e autor de “Racismo estrutural”, volume da coleção “Feminismos Plurais”, coordenada pela filósofa Djamila Ribeiro. Almeida concedeu essa entrevista por telefone dos EUA, onde é professor convidado da Universidade Duke. Ele alerta que a pandemia pode fazer o racismo criar novas formas de modo a manter as desigualdades e estruturas de dominação. E diz que sonha com um mundo emancipado: “É um mundo liberado de todas as forças que limitam as capacidades humanas. Um mundo em que não se esmaga as nossas possibilidades de ser, um mundo que não tem teto.”

CELINA: Gostaria de começar com uma provocação. Diante do que temos visto na última semana, as pessoas brancas, inclusive no Brasil, finalmente descobriram que o racismo existe e que ele mata?

Silvio Almeida: Um dos efeitos do racismo, e por isso ele funciona tão bem como uma forma de organizar a sociedade, é que ele é naturalizado. O racismo tem a capacidade de estar presente e se incorporar ao cotidiano das nossas vidas, está oculto. Ele é normal, faz parte da ordem. Todo dia um homem negro é morto, essa violência é cotidiana. Mas, agora, estamos em um momento de tensão, em meio a uma crise, um ato de brutalidade foi filmado, os ânimos estão inflamados. Quando o mundo está em desordem, a ordem pode nos chocar. Não há mais fumaça escondendo, o racismo aparece e se coloca em confronto aparente com as nossas convicções morais. As pessoas se perguntam: “Como eu não pude ver isso?”. Elas descobriram que o racismo não é um desajuste, não é uma patologia. É o que organiza a vida delas de todos os pontos de vista.

A pergunta que muitos têm se feito é por que a morte de George Floyd provocou tanta comoção entre brancos no Brasil, mas a morte de negros brasileiros não causa. Em fevereiro de 2019, Pedro Gonzaga, um negro de 19 anos, foi sufocado pelo segurança de um supermercado no Rio.

Essa não é uma resposta simples. Embora a questão racial tenha origem no processo de formação do Brasil e dos EUA, cada país tem um processo diferente de racialização, de organização do trabalho e de distribuição da riqueza. A construção da unidade nacional nos EUA se dá com a segregação racial. Houve a criação de um arcabouço jurídico para possibilitar a segregação, e isso originou uma dinâmica de luta. No Brasil, a estratégia de unidade é o apagamento das diferentes raças. Não se reconhece os condicionantes do racismo na estrutura da sociedade, as pessoas acham que o racismo não acontece no Brasil. Então, o movimento negro brasileiro tem que demonstrar que existe racismo. Além disso, do ponto de vista cultural, o Brasil tem sua orientação voltada para os EUA. O que acontece lá é parâmetro para as pessoas se orientarem, inclusive do ponto de vista emocional. Nesse contexto, não há a compreensão da dimensão da violência racista e da subalternidade brasileiros.

O Cornel West [filósofo e ativista afro-americano] disse que estamos no meio de uma tempestade perfeita. Pandemia, crise econômica, Trump, violência policial, e a alternativa oferecida é a repressão. As pessoas estão desesperançadas, cansadas, saturadas dessa falta de horizonte. Nem do ponto de vista cultural oferecemos um espaço para o sonho. Não há espaço para uma vida no meio desse horror. As pessoas têm que escolher entre morrer doentes, de tiro ou de fome. Por isso, saem às ruas em meio à pandemia. Sartre falava que a nossa única condenação é a liberdade.

Em sua obra cultural, Freud fala sobre o “ideal do eu”, diz que a saúde psíquica precisa de um projeto de futuro. Levando em conta as nossas desigualdades, agora aprofundadas pela pandemia, o Brasil está tirando o sonho de seus jovens?

A sociedade contemporânea construiu formas muito sofisticadas de dominação. A economia e a política estão ligadas à questão do desejo. A construção de um projeto parte da construção de um ideal de eu, mas há um ocultamento das condições materiais, da segurança para se projetar esse ideal. Os governantes apostam no apagamento do desejo. Antes de governos autoritários e fascistas ascenderem ao poder, o mundo já estava em processo avançado de decomposição. Eles são o resultado dessa falta de horizonte. O desejo se manifesta em pulsão de morte. Uma necropolítica só é possível se houver na sociedade um desejo de morte. Esses líderes são os catalisadores do ódio da sociedade. É preciso uma dinâmica social e política que possa estabelecer nossas formas de vida.

A dimensão criativa da pulsão de morte?

Sim, essa dimensão está nos protestos. As pessoas estão dizendo: “Não estou nem aí se vou morrer de Covid-19. Eu quero algo novo.” É um momento aberto da História, não dá para fazer previsões. Precisamos entender o que nos trouxe até aqui, esse processo de abandono das pessoas, inclusive do ponto de vista material.

Os negros são a maioria da população brasileira, 56%, e também são os mais vulneráveis sob diversos aspectos. Um país que tira a possibilidade de um projeto de futuro da maior parte de sua população está investindo em um projeto suicida, não é?

A primeira questão é se é possível um projeto nacional racista. É, e foi isso o que os projetos nacionais fizeram até agora, não só no Brasil. Aqui, existiu um pacto moral de todos contra os escravos. No século XIX, o racismo científico como ponto de vista teórico criou a ideia de que havia diferenças de raça, que isso era cultural. Era preciso criar estruturas para conter essa desordem. Nos anos 30, o projeto de modernização afirmou que a miscigenação é a nossa vantagem e criou a ideia de democracia racial. O Brasil é historicamente um país racista, mas hoje ocorre algo ainda mais grave. É a primeira vez na História em que ele incorpora de maneira ativa o discurso da supremacia branca. Sempre houve o discurso da superioridade branca, quanto mais branco for, mas superior você é. Mas, agora, temos um governo com vínculos com a supremacia branca. Pessoas que acham que são brancas, mas que, se saírem do Brasil, não são. É um projeto assassino e suicidário. Mata as possibilidades de futuro. Eu me pego pensando em quantos rapazes negros melhores do que eu poderiam estar contribuindo com o Brasil.

A pandemia pode intensificar o racismo no Brasil?

Primeiro é preciso deixar claro que o racismo é um fenômeno mundial. Não diria que ele pode se intensificar, mas que pode tomar novas formas para estabelecer outras maneiras de dominação. A primeira crise do capitalismo gerou o colonialismo, a segunda gerou o nazi-fascismo, a terceira, que foi a crise do estado de bem-estar social, gerou o racismo que vemos hoje, incorporado ao neoliberalismo. Poderá acontecer desde uma reorganização das restrições econômicas até das formas de lidar com o outro, como a criação de políticas preventivas contra doenças futuras e a proibição da circulação de estrangeiros, que é a xenofobia como vemos na Europa. O racismo contra asiáticos, que temos visto contra os chineses por causa da pandemia, não começa hoje. Agora, há uma disputa de hegemonia entre EUA e China, mas, na decisão que institucionalizou a segregação racial nos EUA, o resultado foi 7 a 1 a favor da segregação. O juiz que votou contra, o único, afirmou que as instituições deveriam ser daltônicas. E ele completou: “Os negros são como nós. Eles não são como os chineses”.

É preciso pegar a questão estrutural. O mundo se organiza sempre contra certos grupos sociais; a dinâmica do racismo é de exclusão. Ele é uma tecnologia para que o ódio seja articulado.

É o que Edward Said [intelectual palestino] descreve em “Orientalismo”, a construção da identidade de um grupo é espelhada na construção da identidade inferiorizada do outro?

É o Said, mas se você pegar autores como Frantz Fanon [psiquiatra e filósofo marxista] e Aimé Césaire [poeta, ensaísta e um dos criadores do conceito de negritude], eles questionam a centralidade cultural da Europa. É uma construção política que tem base na Modernidade: a ideia de que é necessário expandir as conquistas civilizatórias dos brancos europeus para outros povos. Essa ideia foi naturalizada, está na cabeça das pessoas.

A partir dessa ideia, e levando em conta a brutalidade da repressão – o Brasil tem um presidente que é declaradamente racista e o presidente da Fundação Palmares chamou uma mãe de santo de “filha da puta macumbeira” -, é possível afirmar que o Estado brasileiro construiu o negro como seu inimigo?

Michel Foucault [filósofo francês] escreveu que a dinâmica do Estado Moderno, que nasce no século XIX, é a criação de um inimigo, do radicalmente outro. O Achille Mbembe [filósofo camaronês] diz que a raça é uma criação muito sofisticada. A veiculação entre negro, África e escravidão é naturalizada. É tão natural que o sujeito acha que pode pisar em um homem negro. Ele fez isso com a mesma tranquilidade no rosto que podemos ver nas fotografias antigas de linchadores que enforcavam negros em árvores. É eliminada qualquer possibilidade de empatia.

Empatia é uma palavra que tem sido muito repetida em diversos contextos…

É legal que as pessoas usem a palavra, é um sinal de que elas estão pensando. Mas a palavra precisa se tornar uma determinação histórica e política. Quem tem empatia pelos negros não pode ser contra o SUS, não pode ser a favor da militarização da polícia, não pode ser a favor da austeridade. A empatia tem que se converter em solidariedade política. A ausência de solidariedade para os negros é mortal, para os brancos é viver uma meia humanidade. É preciso apoiar iniciativas de solidariedade para além daquilo que o Estado oferece; são ações práticas para desmontar as estruturas do mundo que nos separam.

Eu me pergunto se o fato de que há pessoas brancas nos protestos americanos é o que faz brancos brasileiros criarem empatia agora.

É mais uma empatia com os brancos de lá do que com os negros. Boa parte disso, e a gente está falando do inconsciente, é porque existe a ideia de que eles estão fazendo alguma coisa. Mas é bom que não se generalize. Isso é uma análise de um sentimento que tomou parte das pessoas, mas existem pessoas brancas que são aliadas fundamentais na luta contra o racismo.

É muito comum que o racismo brasileiro seja descrito como um resquício da escravidão. Mas houve um projeto de modernização construído em cima da ideia de democracia racial.

A escravidão faz parte da História. Mas o racismo que observamos hoje não é só um resquício dela. A escravidão conviveu com o capitalismo industrial, o café brasileiro servindo ao europeu. Mas o racismo que vemos hoje é parte do projeto de modernização da sociedade pós-escravidão. Houve uma reorganização para reproduzir as desigualdades, e o racismo faz parte. Os baixos salários são um novo parâmetro com base racial.

Enquanto sistema político, como acabar com o racismo?

Ele não é uma questão individual. É preciso haver as condições estruturais para que as práticas discriminatórias sejam tidas como naturais. Portanto, temos que mudar as estruturas sociais que tornam possível a existência da raça. É necessário uma reorganização das decisões políticas. Do ponto de vista econômico, para que os grupos racializados não sejam empurrados para a margem.

A gente precisa reorganizar o desejo das pessoas. Louis Althusser [filósofo argelino] disse que a ideologia não é só uma forma de consciência. É a forja dos afetos. Precisamos de uma nova economia dos afetos. Arte, literatura, cinema, teatro, enfim, precisamos de uma cultura que se oponha ao racismo, que coloque em seu centro produções em que a nossa humanidade caiba.

Nesse sentido, a produção de intelectuais negros é fundamental.

O movimento negro brasileiro teve como estratégia central a inserção de pessoas negras no ensino superior. Isso se deu porque as universidades sempre foram um espaço de unção das classe dominantes, incluindo, curiosamente, as universidade públicas. Intelectuais negros são fundamentais para entender o Brasil. Luiz Gama, Abdias Nascimento, Milton Santos, Lélia González, entre outros, são grandes pensadores. O que acontece hoje é que a juventude negra resolveu tomar assento e falar de si. Há uma demanda reprimida de se fazer ouvir, de falar que o racismo é uma questão central para se entender os rumos da sociedade contemporânea. Não é possível falar das questões econômicas sem falar de racismo. Mas a democracia liberal tem dificuldade com a questão da igualdade.

Fala-se constantemente em reformar a polícia, inclusive no Brasil. A cidade de Ferguson, palco de protestos nos EUA em 2014, tenta fazê-lo. Mas a reforma deve ser só da polícia ou do sistema de Justiça?

De todo o sistema de Justiça. O procurador de Minnesota chegou a dizer que é muito duro condenar a polícia. Depois de tudo isso, pode ser que o policial que matou George Floyd não seja condenado. O sistema de Justiça absorve o ajoelhamento. As polícias matam muito porque existe conivência do sistema de Justiça. A reforma deve ser da sociedade.

É simbólico que um homem negro morra sufocado em meio à pandemia de Covid-19, uma doença que mata dificultando a respiração. O nosso modo de vida está sufocando?

Estamos sufocando. Por isso as pessoas saem de casa para protestar. A forma como George Floyd morreu é devastadora. Ele morreu pedindo ao Estado opressor para respirar. E chamou pela mãe no meio disso. Um homem que precisava que o Estado oferecesse mais do que violência. Fez pessoas sentirem vergonha por terem permitido que isso acontecesse. Fez pessoas pensarem que poderia ter sido com elas. Perdemos o direito de respirar.

O senhor já disse que “a luta contra o racismo é a luta por um mundo emancipado”. Que mundo é esse?

É um mundo em que as pessoas não tenham que escolher entre comer e ter que se entregar a um trabalho indigno, em que as mulheres não tenham que se submeter às violências, em que não se naturalize a violência de Estado; um mundo em que as pessoas tenham saúde, em que elas possam se educar, possam ser mais do que são, possam sonhar. É um mundo liberado de todas as forças que limitam as capacidades humanas. Um mundo em que não se esmaga as nossas possibilidades de ser, um mundo que não tem teto.

O senhor é otimista?

Prefiro ser um analista. Estão abertas as possibilidades de fazer um mundo melhor. Estamos em uma esquina da História em que não sabemos o que vamos encontrar quando virarmos a rua. Mas eu sou resultado de pessoas que tiveram esperança. Enquanto eu estiver aqui, enquanto houver pessoas aliadas e a luta política, eu vou pavimentar caminhos para quem vem depois de mim.

Entrevista publicada originalmente em O Globo.

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