Não era crível que a um único brasileiro, isolado em uma sala da Superintendência da Polícia Federal de Curitiba, não se aplicava a Constituição Federal
Tive o prazer de ser testemunha ocular da primeira entrevista do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva após ter sido condenado ao silêncio por decisão judicial, desde 07 de abril e 2018. Estava ali, na sala improvisada da Superintendência Regional de Polícia Federal do Paraná, na condição de advogado do EL PAÍS e do jornalista Florestan Fernandes Júnior, autores da Reclamação Constitucional 31.965/PR, que ingressamos no Supremo Tribunal Federal (STF), em 21 de setembro de 2018, para que fosse respeitada a liberdade de imprensa no país e, simultaneamente, a liberdade de pensamento do cidadão que presidira o Brasil entre 1º de janeiro de 2003 a 1º de janeiro de 2011. A entrevista, concedida também à jornalista Mônica Bergamo, do jornal Folha de São Paulo, era aguardada por admiradores e adversários do entrevistado, certamente uma das mais importantes da imprensa brasileira.
Mas, antes de escrever sobre a entrevista em si, não posso deixar de registrar que me impressionou o tratamento aplicado ao cidadão de 73 anos, nascido no sertão pernambucano e que, inimagináveis anos depois, se tornou o primeiro retirante nordestino a presidir o Brasil. Confesso que, nos meus 34 anos de advocacia militante, não havia testemunhado um aprisionado ser tratado com tanta rigidez, insensibilidade e constrangimento. Da chegada até a saída do pequeno e cercado birô em que sentara —sempre escoltado por policiais armados— não fora permitido ao entrevistado qualquer interação com as pessoas que se encontravam na sala, desde um abraço amigo ou mesmo simples e educado aperto de mão. Nada, além do distanciamento compulsório.
A cena de isolamento testemunhada pelo Brasil quando da presença de Lula no sepultamento de seu neto Arthur —guardadas as devidas proporções— era também repetida na ambiência interna da superintendência curitibana. Deu-me a impressão de que tratavam o cidadão Luiz Inácio Lula da Silva como uma espécie de criminoso de altíssima periculosidade. O que acentuava a contradição da própria autoridade policial, pois no dia anterior, não fosse o firme posicionamento do ministro Ricardo Lewandowski, manobrara para encher a sala de entrevista com jornalistas por ele próprio escolhido, desrespeitando a decisão judicial e o direito constitucional de recusa do próprio entrevistado.
Ultrapassada esta fase, as câmaras passaram a registrar, depois, o que muitas outras fingiam não saber: que Lula —ainda com condenação não transitada em julgado e preso antes da formação definitiva da culpa— era o único brasileiro censurado previamente por decisão judicial, pelos próprios órgãos de imprensa, pelos contumazes defensores da liberdade de imprensa e até mesmo pelas associações que sempre repelem com veemência qualquer ataque a esta mesma e fundamental liberdade. Não era crível acreditar que a um único brasileiro, isolado fisicamente em uma sala da Superintendência da Polícia Federal de Curitiba, não se aplicava a Constituição Federal e todas as decisões judiciais que contavam.
Afinal, como destacado em grandes manchetes no recente episódio envolvendo o site O Antagonista e a revista Crusoé, a liberdade de imprensa é direito universal, fundamental para a preservação do Estado Democrático de Direito. Direito que, inclusive, já havia sido concedido a pessoas condenadas em decisões transitadas em julgado, alguns em presídios de segurança máxima, como atestam os diários programas de puro sensacionalismo policial e até mesmo as grandes empresas de comunicação em seus horários tidos como comercialmente nobres. Direito já exercido por Fernandinho Beira Mar, Marcola, o chamado Maníaco do Parque, Bruno do Flamengo, Guilherme de Pádua, Suzane Richthofen, Farah Jorge Farah, Hosmany Ramos, Alexandre Nardoni, Anna Carolina Jatobá, dentre tantos outros entrevistados, perigosos ou não.
Assim, quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ingressou, no dia 26 de abril de 2019, na pequena sala instalada na Superintendência Regional de Polícia Federal do Paraná, não apenas se quebrou o isolamento físico a ele imposto, inclusive no seu ato rebelde de cumprimentar os jornalistas que iriam exercer o seu trabalho por aproximada duas horas de entrevistas. Quando o entrevistado começou a falar diante das câmaras previamente instaladas, quedava-se parte da Bastilha que o fazia ser o mais desigual dos brasileiros. Naquele momento, não mais era ele o único cidadão, aprisionado ou não, judicialmente amordaçado e previamente impedido de exercer o constitucional direito de exprimir o seu pensamento. O silêncio compulsório imposto ao brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva estava rompido, reconhecendo-o —mesmo com injustificável retardo— como cidadão comum, detentor dos mesmos direitos e de idênticos deveres dos demais.
E quando Luiz Inácio começou a falar, compreendeu-se a razão do silêncio imposto ao ex-presidente Lula, do aparato policial que o isolava do mundo, da cumplicidade dos “notórios defensores da liberdade de imprensa” e do tratamento marginalizado. É que a sua maior arma nunca foi o conhecido instrumento bélico que mata corpos e assassina, diariamente, os excluídos de direitos e desprovidos de bens materiais. A sua arma sempre foi a palavra —goste-se ou não do seu conteúdo. A palavra que não pode ser negada a quem quer que seja, mesmo quando dela se diverge, pois assim exige a democracia brasileira. Afinal, como um dia falou Frei Caneca: Que liberdade é essa, se a língua é escrava?
Texto publicado originalmente no El País.
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