Por Jéssica Marques e Vera Araújo
Em entrevista ao GLOBO, a lendária porta-bandeira, hoje com 85 anos, relembra outro caso de discriminação racial sofrido há 58 anos
Numa noite de março de 1965, logo após o carnaval, um grupo de sambistas foi convidado para participar de uma confraternização pelo aniversário do Rio. A festa ocorreu num prédio de luxo num bairro da Zona Sul. Uma jovem de 27 anos se preparava para entrar no elevador social quando o porteiro informou que o equipamento se encontrava com defeito, indicando que ela deveria subir pelo de serviço. Enquanto aguardava, a mulher foi surpreendida com a chegada de outro convidado, vestido de terno, entrando no elevador social. A diferença entre os dois, além do gênero, estava no tom da pele: ele, branco; ela, negra.
A mulher era a porta-bandeira Vilma do Nascimento, que sentiu o drama do racismo:
— Eu questionei o porteiro: “Para ele, a porta não está quebrada, né?”. Fiz um escândalo. Ele (o funcionário) ficou calado. Algumas pessoas que viram a cena justificaram dizendo que o porteiro era um pobre coitado.
Até terça-feira passada, a lendária porta-bandeira, hoje com 85 anos, conhecida pelos seus rodopios com o estandarte da Portela, classificava o episódio de 58 anos atrás como o pior caso de discriminação racial que sofrera. Mas a abordagem racista da segurança de uma loja no Aeroporto de Brasília, que ordenou que ela mostrasse o interior de sua bolsa, superou tudo que já passou por ser preta.
— É que tem certos tipos de dores que só quem é preto vai entender. Me senti humilhada. Muito mesmo — disse a baluarte, com a voz embargada.
‘Mal dormir esses dias’
Em entrevista ao GLOBO, Vilma relembrou a cena no aeroporto. As imagens ficaram em sua memória: no meio da loja, sob o olhar de quem passava pelo local, a porta-bandeira, que estava acompanhada da filha Danielle Nascimento, tirou cada objeto que estava na bolsa para mostrar à funcionária do estabelecimento. Por pouco, ela não perdeu o avião de volta ao Rio. A sambista havia ido à capital federal para receber uma homenagem na Câmara dos Deputados, justamente pelo Dia da Consciência Negra. A filha filmou a abordagem na loja e postou o vídeo nas redes sociais.
Vilma desabafa:
— Mal dormi esses dias. Fiquei muito nervosa. Estou suportando tudo isso graças ao apoio da minha família e amigos. Foi uma vergonha. Todo mundo estava olhando. Nunca me senti tão desrespeitada.
Considerada uma mulher vaidosa, ostentando com frequência colares, pulseiras e brincos, Vilma não teve ânimo nem de se arrumar para a entrevista. Além de uma leve maquiagem, usou um simples brinco. Abalada, ela segurava um lenço de papel, no qual enxugava suas lágrimas ao relatar o racismo que sofrera.
Neta de avô escravo e de avó indígena, como faz questão de se apresentar, ressaltando sua ancestralidade, a matriarca do samba contou que precisou aprender cedo a lidar com o racismo:
— Minha mãe era uma mulher muito gentil. Tive uma criação muito boa. Pobre, mas boa. Naquela época, a gente não falava de racismo como hoje. Mas o que a gente não falava, sentia na pele.
No mundo do samba, principalmente no bairro de Madureira, onde viveu boa parte da sua vida, Vilma se sentia segura. Mas bastava se afastar do seu porto seguro para surgirem as cruéis histórias de preconceito. A porta-bandeira se recorda de uma passagem de sua juventude, numa apresentação da Portela, no Fluminense Futebol Clube, em Laranjeiras, em que estava com o então presidente da escola, Nelson Andrade:
— A demora do garçom em nos servir irritou Nelson, que perguntou: “O senhor não vai nos servir?”. O garçom respondeu: “Desculpe-me, senhor, mas aqui não servimos pessoas de cor”.
A Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes de Discriminação Racial, do Distrito Federal, instaurou um inquérito para investigar se houve racismo e o crime de calúnia no episódio do aeroporto.
A advogada especialista em crimes de gênero Fayda Belo ressaltou a importância de crimes de racismo não ficarem impunes:
— Todos os ambientes embranquecidos e elitizados não veem que um corpo negro pode consumir produtos como um branco. As empresas têm que treinar seu pessoal para que fatos como o que ocorreu com a nossa Vilma não se repitam. Todos somos iguais.
— O que aconteceu com a Vilma é algo recorrente para pessoas pretas. Entrar numa loja é algo obsceno, atentatório à moral e aos bons costumes e, sobretudo, à integridade moral da loja. Portanto, não há desculpas a serem pedidas como foram feitas pela loja. Houve uma brutal agressão à vítima. Era uma senhora de 85 anos, que foi submetida a uma ação de humilhação, de degradação e de racismo. Isso é o que chamamos de racismo estrutural. Não precisa de evidências, basta ser preto para que você seja suspeito. O preto é suspeito por ser preto — disse o sociólogo, cientista político e professor da UFRJ Paulo Baía.
O economista e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), Alexandre Marinho, co-autor da pesquisa “A Luta Negra e o 13 de Maio: entre a Escravidão e o Racismo”, também comentou sobre o preconceito sofrido pela porta-bandeira:
— Vilma é um ícone do carnaval, da cultura popular. No caso específico dela, provavelmente, a segurança da loja não a reconheceu. Os vigilantes já devem estar acostumados a fazer isso, inclusive. O racismo adoece as pessoas que sofrem essa agressão. Estudos revelam que a vítima pode ficar hipertensa, sofrer um ataque cardíaco e até há casos de depressão e suicídio — alerta.
Entrevista publicada originalmente em O Globo.
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