Por Amália Roeder
O Dia da Consciência Negra, que tem como marco o 20 de novembro, dia dedicado à memória do líder negro Zumbi dos Palmares traz, em pleno século XXI, várias reflexões não somente sobre as relações interétnicas, mas também sobre direitos. Nesse ano de 2019, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, de 1969, faz 50 anos. Faz quatro anos que a Assembleia Geral da ONU proclamou o período entre 2015 e 2024 como a Década Internacional de Afrodescendentes (resolução 68/237), dedicada aos povos de ascendência africana. Ao declarar esta Década, a comunidade internacional reconhece que os povos afrodescendentes representam um grupo distinto cujos direitos humanos precisam ser promovidos e protegidos em três campos: reconhecimento, justiça e desenvolvimento.
O advogado Ilzver de Matos Oliveira, professor do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da Universidade Tiradentes-Unit, presidente da Comissão da Verdade Sobre a Escravidão Negra, da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Sergipe (OAB/SE), Diretor da Associação Brasileira de Pesquisadoras e Pesquisadores pela Justiça Social (ABRAPPS) e militante do movimento negro e afroreligioso em Sergipe, fala sobre as distâncias entre os movimentos negros e afroreligiosos, a sociedade, o Estado e o direito e as consequências que reverberam em uma elite racista brasileira que, segundo ele, precisa reconhecer que é ignorante, cínica, apática, escravista e exterminadora.
SÓ SERGIPE -O senhor afirma que a sociedade racista brasileira, o Estado e o direito têm interferido diretamente, e quase sempre perversamente, em cinco importantes campos da luta dos movimentos sociais negros e afroreligiosos. De que forma?
IO – No campo do ser, quando, historicamente, tem pautado a definição do que é e do que não é o ser negro, quilombola, do que é e do que não é religião, a exemplo de concepções sociais, decisões judiciais ou administrativas que estabelecem critérios de caracterização do pertencimento étnico-racial ou refutam autodeclarações raciais em políticas públicas de ação afirmativa e que negam o status de religião ao candomblé e à umbanda, por exemplo. No campo do ter, têm sido o direito, o Estado e a sociedade distribuidores de direitos e bens, através de critérios raciais e religiosos desde a época da colonização. Num pacto narcísico branco, como conceitua Maria Aparecida Bento na sua tese de doutora da USP, mantêm seus privilégios à custa da negação do direito a ter direitos da população negra. No campo do fazer, com normas de controle das populações negras e dos afroreligiosos que sempre permearam o campo jurídico, especialmente o penal, representação maior de uma concepção de Estado e de sociedade racistas. Os modos de fazer relacionados à herança africana, tais como cultos religiosos (criminalização do curandeirismo e da feitiçaria atingiam diretamente as práticas mágicas negras e indígenas) e manifestações culturais (como, por exemplo, a capoeira) ou até mesmo o não-fazer (criminalização da vadiagem) tiveram lugar nos principais códigos penais brasileiros, inclusive na República. No campo do estar, além da amplitude do estar neste ou naquele lugar, quando se refere à população negra e afroreligiosa, o direito tem interferido no estar bem ou mal, ou seja, o direito, o Estado e a sociedade tem gerência sobre os corpos e as condições de sobrevivência dessa parcela da população brasileira que é descendente dos africanos e brasileiros escravizados até 1888. A título de exemplo, considera-se a situação de criminalização dos trabalhadores em situação de uso de drogas ou de tráfico que vivem nas periferias das cidades brasileiras, enquanto o mesmo não se vê comumente em zonas não-periféricas ou com populações não-negras, como as das zonas nobres das cidades, onde há igualmente uso ou tráfico de drogas. Essa diferença de tratamento impacta diretamente na garantia do direito à vida de milhões de jovens negros, assim como a situação em que hoje se encontram templos de religiões de matriz africana, cuja localização está ameaçada por normas de postura municipais sobre perturbação de sossego e licenciamento ambiental, que sobrevalorizam os direitos de vizinhança ou uma suposta violação à saúde coletiva, em detrimento da proteção e preservação do patrimônio histórico e cultural dos povos e comunidades tradicionais de terreiro. E finalmente, no campo do permanecer. Algumas das conceituações possíveis para o verbo permanecer é o de manter-se, sem alteração, num dado estado ou num mesmo lugar; insistir com determinação; persistir. Tomando essa definição, vê-se, exemplificativamente, a presença marcante do direito, do Estado e da sociedade racista, no campo das lutas das comunidades remanescentes de quilombos, cuja permanência nas suas terras é assegurada pela Constituição de 1988, mas que esteve ameaçada pela impetração de ação de inconstitucionalidade que questiona o decreto regulamentador desse direito e ainda sofre com a ausência de efetividade na titulação de suas terras e os conflitos mortais no meio urbano e rural. O mesmo se tem no campo das lutas dos povos de terreiros pela manutenção dos seus traços históricos caracterizadores, como, por exemplo, o uso de animais nas suas cerimônias religiosas, que esteve em pauta no Supremo Tribunal Federal, sem falar na extrema dificuldade em se garantir direitos iguais e mesma consideração para religiosos e religiões de matriz africana e de matriz cristã, no que diz respeito às garantias constitucionais e legais criadas a partir da ideia de que o Brasil, apesar de laico, considera a religião como um componente importante na formação do seu povo (imunidade tributária, aposentadoria, regularização fundiária, etc). Tudo isso impacta no permanecer de negros e afroreligiosos enquanto ato de manter-se no seu lugar, num dado estado construído histórica e culturalmente, a partir da sua determinação e persistência e dos seus processos de luta.
SS – Há de fato um distanciamento entre o direito, o Estado, a sociedade e os movimentos negros e afrorreligiosos e essa seria a causa dessas interferências?
IO – Essas interferências, como dito antes, quase nunca são benéficas, ocorrem justamente por causa da existência de cinco distâncias recíprocas. A distância cognitiva, quando o direito, o Estado, a sociedade racista brasileira e os movimentos sociais negros e afroreligiosos não se conhecem a si mesmos nem um ao outro; mutuamente, há um déficit cognitivo recíproco. Os movimentos não conhecem a si nem àqueles outros e o direito, o Estado e a sociedade não conhece a si nem aos movimentos. Seus líderes, sua história, funções sociais e importância não são mutuamente conhecidos. Crê-se que, para superar essa primeira distância, é preciso conhecer. A segunda, é a territorial. O território do direito, do Estado e da sociedade racista brasileira, não é ocupado pelos movimentos e o território dos movimentos não é ocupado por aqueles. Eles não se visitam, não compartilham espaços comuns e, quando isso ocorre, é em lados opostos, normalmente um como acusador e outro como acusado. Para romper com essa segunda distância, é preciso interagir. A terceira é a distância epistemológica ou teórica. Considerando a epistemologia como o estudo dos postulados, conclusões e métodos dos diferentes ramos do saber científico ou das teorias e práticas em geral, avaliadas em sua validade cognitiva ou descritas em suas trajetórias evolutivas, seus paradigmas estruturais ou suas relações com a sociedade e a história, percebe-se que nem o direito, o Estado e a sociedade racista brasileira conhecem os paradigmas estruturais dos movimentos negros e afroreligiosos nem os movimentos conhecem os postulados, conclusões e métodos daqueles. Para contornar essa distância, é preciso compreender. Na capacidade de sentir o que sentiria outra pessoa, caso estivesse na mesma situação vivenciada por ela reside a distância de empatia. Consiste em tentar compreender sentimentos e emoções, procurando experimentar de forma objetiva e racional o que sente outro indivíduo. Empatia teria como sua opositora a apatia, nesse nosso ensaio. A reunião das distâncias anteriormente citadas converge na distância de empatia entre Estado, direito e sociedade racista e movimentos sociais negros e afroreligiosos; afinal, eles não se conhecem, não interagem e não se compreendem. Daí a situação de apatia mútua que os permeia, quando o sistema de justiça não reage diante das violações que acometem os grupos negros e afroreligiosos e quando os movimentos rejeitam ser empáticos com seus algozes. Superar a distância da empatia exige desenvolver o sentir. E por fim, a distância racial. Cerca de 76% dos promotores públicos do nosso país são brancos. No judiciário, temos aproximadamente 85% de magistrados brancos. As universidades recentemente ampliaram a representatividade de negros nos seus bancos discentes, sendo longo o caminho ainda para inserir docentes negros nas instituições superiores. A sociedade ainda é segregacionista, sabemos bem onde estão os negros e negras nas cidades. Por sua vez, os movimentos sociais, que historicamente reúnem os que lutam contra as desigualdades e a exclusão, reúnem os grupos populacionais historicamente excluídos, negros e pobres. Diante desse quadro, emergem algumas políticas de inclusão racial no serviço público e no sistema de justiça, encabeçados pelo Governo Federal, pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo Conselho Nacional do Ministério Público, nas universidades, na saúde, na educação básica e etc. Porém, tais medidas ainda são vistas pela sociedade, contaminada com os ranços da colonização e do sistema meritocrático brasileiro, como benefícios injustos e, por isso, sofrem todo tipo de fraude e contestação, dificultando as medidas que buscam suplantar essa distância. Para superar a distância racial entre movimentos e o sistema de justiça, é preciso incluir.
SS – Professor, por que o senhor reitera que a elite racista brasileira precisa reconhecer que é ignorante, cínica, apática, escravista e exterminadora?
IO – Cerca de 200 milhões de pessoas auto identificadas como afrodescendentes vivem nas Américas. Muitos outros milhões vivem em outras partes do mundo, fora do continente africano. Por tudo isso, trazemos aqui uma proposta de diálogo com a elite racista brasileira sobre cinco benefícios acumulados por ela historicamente que precisam ser apontados para lhes gerar, ao menos alguma espécie de constrangimento, técnica empregada pelos movimentos negros norte-americanos como forma de enfrentamento aos racismos cotidianos e persistentes. O primeiro é o benefício da ignorância que envolve o não saber, o não querer saber e o não se importar em não saber. Mesmo com as imensas possibilidades de romper com a ignorância, os beneficiários dela preferem ignorá-las, muitas vezes, preferindo exercê-la a plenos pulmões e por vezes coletivamente, as formas mais perigosas de expressão da ignorância. Por que ser intolerante contra religiões de matriz africana? Por que ser contra cotas raciais em universidades e concursos? Por que concordar com um perfil ao cidadão matável? Por que usar termos politicamente incorretos (a coisa está preta, denegrir, preto de alma branca, negra linda…) ou conceitos impossíveis (racismo reverso, autodiscriminar…). Por que tão poucos professores negros nas universidades? Por que eles não estão em cargos de chefia? A elite racista brasileira precisa reconhecer que é ignorante. O segundo é o do cinismo, da desfaçatez, descaramento e falsidade. É o oposto de ter pudor, de ter candura, decência, caráter. O cinismo não só é uma imoralidade, mas também uma gigantesca máquina portadora de injustiças e de perigos. Por que voltar a metralhadora do ódio para os cultos de matriz africana e não para os grandes frigoríficos das propagandas da Fátima Bernardes, do Tony Ramos e do Marco Luque, louvada pelas autoridades econômicas com grandiosa geração de moedas fortes para o bem do Brasil? Por que o uso de animais em outras religiões está fora desse debate? Por que debater liturgias se a constituição garante tal liberdade? Por que reivindicações por direitos são mimimi? Por que reivindicar reconhecimento em todos os espaços (no sentido hegeliano de consideração) virou querer confusão? Isso é cinismo. A elite racista brasileira precisa reconhecer que é cínica. Estado de alma não suscetível de comoção ou interesse; insensibilidade, indiferença. Como cobrar empatia? Como provar a apatia? Este seria o terceiro benefício. A filosofia experimental nos aponta que os mecanismos que operam nas decisões tomadas nesse campo são baseados em julgamentos morais. Por quem você é mais empático: uma pessoa com câncer ou uma pessoa com HIV/AIDS? Um adolescente infrator ou um acusado branco ou um negro? É possível que a pessoa com câncer receba mais sensibilizados, afinal o julgamento moral, feito em nível mental, pressupõe que a pessoa que vive com HIV/AIDS é promíscua. Do mesmo modo é possível que o infrator ou acusado branco, simplesmente por só ser branco, agregue maior plateia de empáticos. Um cheiro, uma cor, além de identificações múltiplas (classe, raça, cor/etnia, procedência nacional…) disparam no cérebro reações que definem decisões. A mesma sensibilidade e empatia destinada a um animal por alguns parlamentares sergipanos é a mesma ofertada a uma yalorixá negra de terreiro, por exemplo? Talvez a última seja vista como algoz da primeira. Pasmem, a Yalorixá na legislação brasileira é uma ministra de confissão religiosa, reconhecida como crucial para o aconselhamento espiritual dos cidadãos brasileiros. E os terreiros são espaços de proteção social das comunidades ao seu redor, muitas das vezes distantes dos aparelhos sociais públicos, como por exemplo dos serviços de saúde, buscados no terreiro, para o corpo e para a alma. Florestan Fernandes dizia que o Brasil não seria uma democracia enquanto não resolvesse o problema do racismo contra a população negra. Você se importa com isso? Ser empático não é ser sentimental. “O sentimentalismo”, diz o psiquiatra britânico Theodore Dalrymple, em Podres de Mimados (É Realizações), “é a expressão da emoção sem julgamento. Talvez ele seja pior do que isso: é a expressão da emoção sem um reconhecimento de que o julgamento deveria fazer parte de como devemos reagir ao que vemos e ouvimos […] O sentimentalismo é, portanto, infantil (porque são as crianças que vivem em um mundo tão facilmente dicotomizável) e redutor da nossa humanidade”. Nesse caso, a elite racista brasileira precisa entender que é apática. O quarto benefício é o da escravidão. Ouvimos cotidianamente relatos de famílias da elite sobre suas empregadas domésticas; inclusive sobre aquelas que cuidaram deles por várias gerações, inclusive de filhos e netos na atualidade. O desvelar da história dessas famílias mostra que elas fincam raízes na escravidão negra colonial e que de lá não conseguem – ou não querem – se desenraizar. E é esse apego aos resquícios da escravidão e dos seus benefícios que justificam a postura dessa elite diante, por exemplo, das manifestações religiosas afrobrasileiras, criminalizando-as e expurgando-as para o campo do folclore e do entretenimento, negando-lhe a possibilidade de reconhecimento enquanto religião, ou, no máximo, de religião de segunda ordem. Sem falar de outras pautas raciais importantes que são alvo de esperneio da elite ainda hoje tais como: cotas raciais nas universidades, cotas raciais no serviço público, políticas de distribuição de renda, espaço na televisão, dentre outras. A elite racista brasileira precisa reconhecer que é escravista. E por fim, o benefício do extermínio. O ápice dos sistemas de exclusão é o extermínio. A cultura, o conhecimento, a língua, a religião dessa elite se beneficiou – e se beneficia – do extermínio de outras culturas, conhecimentos, línguas e religiões, entre outros aspectos da vida social. Várias estratégias foram utilizadas para esse processo perverso de extermínio, mas as mais recorrentes foram as relações de parceria entre o direito e a religião predominante. A conivência do Direito penal, a apatia do Direito Constitucional, a perversidade do Direito Civil e agora, o cinismo do Direito Ambiental, verdadeiro lobo em pele de cordeiro. Avoca-se pós-moderno, diante do tipo de bem que estampa sua luta, o meio ambiente, mas na verdade é para nós a nova arma de perseguição às religiões de matriz Africana, utilizada pelo estado racista em conluio com denominações religiosas que, em vez de estarem ao lado dos mais necessitados, têm projetos de poder e domínio do estado. A elite racista brasileira precisa reconhecer que é exterminadora.
Entrevista publicado originalmente no Só Sergipe.
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