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A flor e a náusea

Nas últimas semanas, veio a público a blitzkrieg imposta à Defensoria Pública pelas instâncias maiores de poder. De uma só vez, o Supremo Tribunal Federal pautou para julgamento ações que relativizam os limites estabelecidos à assistência jurídica pública segundo a Constituição (ADPF 279), que colocam em xeque a participação popular na fiscalização das atividades da Defensoria Pública (ADI 4608) e que visam alijar a instituição de prerrogativas essenciais ao exercício de suas funções (ADI 6852 e correlatas).

Impactados com o julgamento da ADPF 279 – especialmente com as razões de decidir então externadasi – e já alertas diante do que se anunciava na ADI nº 6865ii, defensores e defensoras se engajaram em um trabalho de conscientização e mobilização pública diante dessa articulação pelo sufocamento institucional que se dá em avanço ao desmonte das proteções públicas previstas pela Constituição à parcela vulnerável da população deste país.

Desde a nota lançada pelo Grupo Prerrogativas no dia 09 de novembro – ante a iminência do julgamento da ADI 6852iii –, foram inúmeras e abalizadíssimas as manifestações de apoio à constitucionalidade da prerrogativa de requisição da Defensoria Pública que, não obstante prevista em Lei Complementar datada de 94 (art. 128, X, da LC 80), somente agora é questionada pelo Ministério Público federal em proteção à advocacia privada (!).

As manifestações, por vídeo ou por escrito, reuniram juristas e personalidades públicas com destaque nas mais variadas áreas, da academia aos movimentos sociais, todas concordes quanto à insuficiência dos argumentos apresentados para sustentar a pretensão de inconstitucionalidade deduzida pelo Ministério Público, mal disfarçada em sua essência. Noutras palavras, a defesa à advocacia privada colocada em primeiro plano pelo subscritor da ADI 6852 – e de outras correlatas – não foi capaz de escamotear a peleia entre instituições e, mais além, em termos foucaultianos, uma luta em que os dominantes pretendem perpetuar a opressão a seus dominados.

Pelo contrário, os argumentos apresentados pelo Ministério Público em defesa da advocacia privada foram eficazes em expor que intenções desviadas já nem precisam de bons argumentos para serem contrabandeadas. Afinal, sabe-se – mais ainda a partir da lava-jato – que, em verdade, é o Ministério Público a instituição que de fato rivaliza com a advocacia privada em desigualdade aberta e em dimensões muito mais sensíveis que aquelas em que a oposição de interesses eventualmente pode se dar em relação à Defensoria.

Na prática, são excepcionais as situações de oposição entre Defensoria Pública e advocacia privada em que não se verificam vulnerabilidades a reclamarem instrumentos de igualação material. A título de exemplo, dentre outras hipóteses, tal oposição se observa nas contendas entre vizinhos maiores e capazes, em indenizatórias ordinárias ou nos divórcios em que direitos de crianças ou adolescentes não estejam em jogo, tudo isso no mundo prático dos pobres e miseráveis. Essas relações de equivalência entre partes, contudo e como dito, estão longe de constituir a regra no quotidiano da Defensoria Pública, em que, para além da vulnerabilidade econômica e suas mazelas associadas, hipossuficiências outras se afirmam, todas contando com especial tutela constitucional, muitas vezes estruturada em microssistemas de proteção – como se dá em relação a crianças e adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, mulheres em situação de violência doméstica, consumidores, réus e condenados em processo penal, dentre tantas outras situações.

Isso não passou despercebido para aqueles que emprestaram sua voz e história em defesa da prerrogativa de requisição da Defensoria Pública diante da ofensiva que lhe foi imposta pela Procuradoria-Geral da República, muitos tocando em um ponto essencial: houvesse quebra de isonomia na relação entre a Defensoria e a advocacia privada, por que motivo, após quase trinta anos de vigência da Lei Complementar 80/94, o questionamento à constitucionalidade da prerrogativa de requisição não foi antes sustentado pela OAB, mas é somente agora objeto de arroubo igualitário por parte do Procurador-Geral da República?

Foram muitos os advogados que destacaram essa situação, no mínimo curiosa, concluindo que o instrumento de requisição atribuído à Defensoria Pública tem uma importância que transcende os limites de uma relação processual concreta, afirmando-se como meio imprescindível ao melhor exercício das funções institucionais em sustentação à democracia deste país, que não prescinde do acesso igualitário à justiça. E aos advogados uniram-se juízes, ex-integrantes do Ministério Público, professores, lideranças sociais, artistas, políticos, jornalistas e tantas outras personalidades públicas, que sintonizaram suas vozes em um coro pela defesa dos historicamente oprimidos deste país e pela instituição constitucionalmente projetada para abrir-lhes as portas da justiça.

Todos contribuíram para expor o absurdo da pretensão de inconstitucionalidade que, ao argumento de remediar uma doença específica e suposta em diagnóstico apressado, pode comprometer mortalmente a integridade do corpo vivo. Todos, enfim, contribuíram para bem demonstrar que a desconsideração ao direito e à lógica que o rege só se presta a expor a crueza das relações de poder.

Algo de primavera fez-se anunciar em meio ao inverno rigoroso e árido vivido pelo Brasil. Algo de utopia pôde vencer a distopia em que estamos instalados.

E bem nos servirão de conclusão a esta exortação à resistência coletiva em nome da justiça os versos finais do poema de Drummond, cujo título tomamos emprestado para nomear este texto:

“Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”

É a flor do povo, do espírito da história, do clamor por justiça.
………………………..
Domingos Barroso da Costa
Defensor Público no Rio Grande do Sul.

Pedro Carriello
Defensor Público no Rio de Janeiro.

Rodrigo Pacheco
Defensor Público-Geral do Rio de Janeiro.

Rafson Ximenes
Defensor Público-Geral da Bahia.

Marcus Edson de Lima
Defensor Público em Rondônia. Presidente do Conselho Nacional de Corregedores-Gerais dos Estados, do Distrito Federal e da União.

Arion Escorsin de Godoy
Defensor Público no Rio Grande do Sul.

Rafael Raphaelli
Defensor Público no Rio Grande do Sul.

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