Fim do proibicionismo é a chance de não replicarmos o país andino amanhã
Na assimetria da guerra às drogas, o Norte Global fica com as drogas, e o Sul Global, com a guerra. O caos na segurança pública do Equador é mais um exemplo dessa realidade: militarização do combate ao tráfico, superencarceramento, fortalecimento de facções prisionais, corrupção e violência sem quartel são os ingredientes que retroalimentam o círculo vicioso que a proibição de algumas drogas postas na ilegalidade produz, especialmente na América Latina. A legalização evitaria a crise equatoriana, porque as máfias que lá atuam seriam desfinanciadas.
Em nenhum lugar o proibicionismo funcionou. Apesar de proscritas, as drogas nunca foram tão acessíveis, potentes e baratas como hoje. Estima-se que cerca de 296 milhões de pessoas experimentaram alguma droga no último ano, e os problemas relacionados ao uso atingiram 13% dos usuários.
A Lei Seca, que tornou ilegal o comércio de bebidas alcoólicas nos EUA entre 1919 e 1933, ensinou que legalizar e regular é mais eficiente que proibir. Experiências regulatórias no Uruguai, EUA, Canadá, Malta, Luxemburgo, Alemanha, África do Sul e Tailândia, na direção da legalização da produção de maconha para uso adulto, indicam a tendência global de mudança.
No Brasil, essa guerra segue matando e encarcerando a juventude negra, enquanto governo federal e oposição apoiam a legalização das apostas esportivas online, a despeito dos casos de corrupção e da ruína financeira decorrente da compulsão dos apostadores.
Dados da Plataforma Justa, com análise de 70% do orçamento dos estados, revelam um funil de investimentos que prioriza a porta de entrada do sistema prisional: a cada R$ 4.389 gastos com as polícias, R$ 1.050 vão para o sistema penitenciário e apenas R$ 1 é investido em políticas para egressos.
São Paulo, estado com maior número de presos, gasta R$ 4,6 bilhões por ano na manutenção do sistema prisional, valor superior à soma do investimento público em energia, assistência social, indústria, trabalho, cultura, desporto e lazer, comunicações e organização agrária.
Dos recursos destinados às polícias, 66,5% ficam com a PM. Isso explica o fato de o pilar central da segurança pública no Brasil ser a abordagem aleatória no patrulhamento preventivo e geograficamente definido, marcado pelo perfilamento racial. O subfinanciamento da Polícia Civil gera a má qualidade da investigação criminal: apenas 1 em cada 3 homicídios é esclarecido no Brasil (pesquisa “Onde mora a impunidade”, do Instituto Sou da Paz). A ausência de trabalho de inteligência explica o fato de 90% dos casos de tráfico terem origem em abordagens policiais aleatórias.
A militarização da segurança pública e o encarceramento em massa são políticas ineficazes, que fortalecem facções prisionais e degradam a segurança pública. Na contramão das evidências científicas, o governo Lula decretou GLO (Garantia da Lei e da Ordem) em portos e aeroportos, atribuindo às Forças Armadas a incumbência de enfrentar organizações criminosas; investiu dinheiro do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) na privatização de presídios; e editou decreto autorizando guardas-civis a realizar patrulhamento preventivo, em clara afronta a decisões do Superior Tribunal de Justiça, que vem anulando flagrantes de tráfico realizados por esta corporação, a quem a Constituição atribui a tarefa de proteção de bens, serviços e instalações dos municípios. A extrema direita não faria melhor.
O Brasil tem a chance de evitar o cenário equatoriano desenhando novos modelos regulatórios para drogas a partir da proteção da saúde, justiça social e reparação histórica, redução da criminalidade, proteção de crianças, adolescentes e pessoas vulneráveis e respeito aos direitos humanos. Do contrário, o Equador hoje é o Brasil amanhã.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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