Por José Vicente, Valdir Martins e Fabiano Silva dos Santos
Falar de ação afirmativa no Brasil é um grande desafio, sobretudo pelas polêmicas que esse conceito gera em uma parte da sociedade que não possui as informações suficientes ou não tem o menor interesse em ter uma sociedade mais equilibrada. Essa discussão remonta a um entendimento que visa uma simplificação da realidade social e desconsidera o processo de construção social vivenciado pelo País.
As ações afirmativas têm sua compreensão confusa devido à sua generalização e pseudônimo de política de cotas, o que remete a uma reserva de mercado inconcebível em uma economia de mercado, alicerçados pela liberdade de escolha, de consumo, de ir e vir e sobretudo baseado na concepção de meritocracia. Esses pilares de estruturação social remetem a uma suposta condição de igualdade e de reconhecimento ao esforço, premiação ao talento e a dedicação, pressupostos aceitos e considerados igualadores dos seres humanos.
Entretanto essa discussão ganhou atenção e grandes dimensões com a reivindicação das pessoas negras ao acesso a diversas esferas de cidadania plena. Podemos considerar o principal paradigma o acesso ao ensino superior público, que posteriormente foi expandido para outras esferas da vida social, como a magistratura, o serviço público e demais funções e carreiras de Estado. E esses pressupostos de cidadania plena amplia sua atuação para a iniciativa privada, balizados pelas exigências de responsabilidade empresarial preconizadas nos pilares da expressão do ESG (meio ambiente, social e governança) que tem sido reivindicada pelos stakeholders de mercado.
As polêmicas com as ações de Busca de equilíbrio social através do acesso das pessoas pertencentes aos grupos historicamente excluídos geram reações extremistas e infundadas, bem como reforçam os preconceitos de toda natureza. Essas manifestações de repúdio às políticas afirmativas são expressas sobretudo nas redes sociais e canais virtuais. Afinal, temos uma peculiaridade no Brasil, onde há racismo sem racistas, ou seja, as pessoas dizem existir racismo e discriminação, mas ninguém se considera racista ou discriminador, o que demonstra uma vergonha social conceitual, mas uma prática social desconectada com essa visão.
Entretanto, a política de reserva de mercado pode ser identificada nas altas estruturas organizacionais, nos altos escalões do poder e nas principais áreas de influência e prestígio da sociedade. Nesses territórios sociais a quase totalidade de pessoas é da cor branca e do gênero masculino. Dificilmente encontramos negros ou outras minorias que subvertam a lógica esperada de ocupação desse espaço.
A estruturação da sociedade obedece a regras acordadas no nosso pacto social, construído e aprovado por uma elite expressa nos representantes políticos da população e na elite econômica do País. Dessa forma podemos afirmar que a construção das regras define o local e papel social que será desempenhado por cada cidadão. E percebemos claramente que essas regras enviesadas permitem a homogeneidade das pessoas nos locais de maior prestígio e relevância social. Portanto, a política afirmativa atual ou de cotas privilegia e direciona quem serão os mandatários da nossa sociedade e cria barreiras invisíveis e intransponíveis para a maioria da população. Sob essa perspectiva, a política de cotas do privilégio se mantém como regras que supostamente dão uma conotação democrática ao acesso e serve como uma ação afirmativa às avessas.
Dessa forma o que precisamos combater, alterar e transformar, são as políticas e regras que reservam quase a totalidade de vagas nos espaços prestigiados da sociedade para uma minoria, e funciona como uma política de cotas elitizada, mas que não deve ser lembrada, discutida ou questionada.
Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.
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