Por Alexandre Morais da Rosa, Aury Lopes Jr. e Daniel Kessler de Oliveira
A polarização voltou a se acentuar nos debates rotineiros após a decisão do STF no dia 07 de novembro de 2019 e com a soltura do ex-presidente Lula no dia seguinte. Disso resultou a ocupação das redes sociais com “debates” acerca do julgamento da Suprema Corte. De um lado, em sua grande parte formada por juristas, a celebração sobre o acerto da decisão, corrigindo um equívoco que estes mesmos criticavam havia mais de 3 anos. De outro, alguns juristas que entendiam pela possibilidade da execução antecipada da pena e uma grande parcela de pessoas sem conhecimentos jurídicos que externava a indignação com a corrupção e bradava contra a decisão que, entendem, visa assegurar a impunidade.
Não nos ocuparemos hoje de discutir as razões que levaram o STF a decidir pela constitucionalidade do Art. 283 do CPP e fazer valer a constitucional exigência do trânsito em julgado para a execução da pena. Não o faremos, não por não enxergar importância, mas por já ter sido muito bem analisado por nós mesmos e por tantos outros autores em outras oportunidades.
A discussão que propomos hoje é a análise acerca da forma como os anseios sociais, como a chamada “voz das ruas”, influenciou nos votos dos Ministros, como a exposição midiática de julgamentos acaba por depositar expectativas na decisão a ser tomada e como estas expectativas condicionam algumas posições e decisões em matéria penal.
O debate nas redes sociais mostra como há um acompanhamento próximo por parte de grande parcela da população acerca da prestação jurisdicional, mormente do Supremo Tribunal Federal e, mais especificamente, em matéria penal.
O Supremo, que já fora um “outro desconhecido”[1], hoje tem Ministros celebridades, reconhecidos nas ruas e vigiados de perto por uma atuante vigília digital. Por óbvio que isso não é de um todo ruim, tem seu lado positivo o interesse social e a fiscalização dos atos de um poder público. Entretanto, isso simplifica e banaliza o debate, o que é maléfico não somente ao Supremo como ao Direito como um todo, que é relegado a um debate opinativo e tem seus preceitos alterados ao sabor do intérprete e a percepção de seus efeitos variando de acordo com os destinatários destes. Isto é, importa mais quem é atingido pela decisão do que os fundamentos que a justificaram.
A TV Justiça, com a transmissão de julgamentos ao vivo tornou os Ministros personagens do espetáculo que se tornou o judiciário. A partir daí, como bom espetáculo, cede a técnica, padecem os centenários conceitos e princípios jurídicos em nome do melhor apreço do público, pois o espetáculo não serve a nada que não seja ele mesmo.[2]
Salta aos olhos que alguns ministros, em casos assim, não proferem mais votos, mas discursos, dirigidos muito mais a corresponder as expectativas populares criadas, do que propriamente às expectativas jurídicas e constitucionais legitimamente estabelecidas e que exigem resposta. Até a duração dos votos acabou se prolongando em nome do ritual espetacularizado do julgamento transmitido. Ora, sejamos honestos: não é preciso mais do que 15 minutos para um ministro dizer qual é o núcleo argumentativo do seu voto e proferir a sua decisão, remetendo a musculatura teórica empregada para o voto escrito, que será disponibilizado a continuação. Nenhum julgamento colegiado, em nenhum tribunal, deveria exigir mais do que isso.
O processo penal espetacularizado pode ser consequência ou causador de uma atuação que se pretenda guiar por supostas expectativas sociais. Quando os processos passaram a ser vivenciados pelas pessoas através de divulgações em tempo real de prisões, depoimentos, julgamentos e etc., os atores judiciais tornaram-se celebridades e flertaram perigosamente com as consequências da fama, sendo odiados e amados por suas decisões.
A publicidade das decisões judiciais e dos atos judiciais em maneira geral é uma conquista civilizatória, visa a transparência e o controle. No entanto, hoje, a publicidade se impõe com a ajuda de uma secreta política dos interesses: ela consegue prestígio público para uma pessoa ou questão e, através disso, torna-se altamente aclamável.[3]
Criticar a espetacularização não significa uma pretensão de retorno às penumbras do sigilo. O problema são as consequências dessa publicidade excessiva e espetacularizada.
Vale salientar que não há uma relação direta e necessária entre publicidade (enquanto garantia indispensável) e opinião pública. A vagueza conceitual deste termo desautoriza que que possa servir de critério para aferição da legitimidade das decisões judiciais. Estas não se legitimam pela possível concordância de maiorias contingentes, mas pela potencial aceitação de todas as pessoas que, sem coação de qualquer espécie, analisassem racionalmente o caso.[4]
Ademais, como sustenta Popper: quando a opinião pública é considerada como expressão de uma sociedade em seu conjunto, converte-se numa espécie de mito político a que se pode recorrer como justificação das medidas adotadas por quem a invoca.[5]
Inúmeros foram os argumentos dos ministros que tangenciaram sobre a necessidade de se ouvir os anseios sociais, muitas foram as críticas pela grande mídia, no sentido de que a “população não foi ouvida”, olvidando-se que não é este o papel de um juiz de direito, nem de um ministro do Supremo Tribunal Federal.
A prestação jurisdicional não pode se transformar em algo semelhante a um produto comercial que deve se ocupar de “conquistar” o jurisdicionado com as mesmas técnicas de propaganda pela qual as marcas de margarina fidelizam seus consumidores. Sendo a função judicante racional, não se pode perder essa racionalidade de vista na divulgação do trabalho do juiz.[6]
Não é agradável para ninguém ver sua foto estampada em cartazes e vulgarizada em centenas de milhares de “memes” como inimigo da pátria por conta de uma decisão judicial que, no caso referido, representa a observância literal aos dispositivos legais e constitucionais em vigor. Quantos será que vão seguir decidindo desta maneira e enfrentarão a exposição sua e de suas famílias para fazer valer o fundamental papel contramajoritário do julgador ao invés de ceder ao “canto da sereia” e sucumbir a conformação pública de suas decisões?
Em recente pesquisa da AMB, 66,6% dos Ministros dos Tribunais superiores concordaram que No caso limite de temas sensíveis para a sociedade, sobre os quais não se constitui uma maioria parlamentar, o Poder Judiciário pode exercer um papel criativo na produção de normas, a fim de atender aos anseios da coletividade.[7]
Soma-se a isso uma tradição autoritária do processo penal, em uma sociedade etnocêntrica[8], que percebe sempre os crimes do “outro” e deseja para este “outro” toda a violência estatal, ao passo que, na menor tensão verificada, já clama pelos “seus” direitos. Isso demonstra que há uma clara e evidente percepção da existência de direitos e de limites a atuação estatal, mas que é influenciada por uma visão egoísta de enxergar que os direitos que pertencem a si e ao seu grupo não pertencem aos outros.
Dessa forma, se fala em “opinião pública” em matéria penal sempre para incidir na restrição de direitos. A “justiça” penal é sempre associada a uma condenação com elevadas penas, a prisões imediatas e, se possível, sem qualquer ato processual, que acabam sempre sendo vistos como entraves à realização da justiça.
O agrado ao público vem com o herói que dribla esses entraves para vencer o mal, personificado na figura do réu, o “bom” juiz é aquele que consegue superar as “filigranas” e as burocracias de um sistema vendido como gerador de impunidade mas que, paradoxalmente, prende mais de 800.000 pessoas, grande parcela destes sem julgamento nenhum, quiçá em segunda em instância.
A midiatização do julgamento potencializou a influência da famigerada opinião pública e condiciona a atuação jurisdicional a partir de seus interesses, o que influencia sobremaneira na decisão dos ministros, por mais que tentem lutar contra isso, é humanamente impossível passar incólume por tamanha pressão.[9]
Todo esse cenário é terreno fértil para o surgimento do populista judicial, que age guiado pelo desejo de agradar ao maior número de pessoas através das decisões judiciais, como uma forma de democratizar a justiça, mesmo que para isso seja preciso afastar direitos e garantias previstos no ordenamento jurídico.[10] Que o Supremo Tribunal Federal não lave suas mãos e deixe o povo decidir: todos sabemos o resultado que advém disto.
[1] BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal, Esse Outro Desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968.
[2] CASARA, Rubens. Processo Pena do Espetáculo. Florianópolis; Empório do Direito, 2016; DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. P: 17.
[3] HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. . 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,2003, p. 241
[4] TROIS NETO, Paulo Mário Canabarro. Judiciário e Opinião Pública: Os Limites do Marketing Judicial. In PENTEADO, L. F.; PONCIANO, V. F. (organizadores) Curso Modular de Administração da Justiça . São Paulo: Conceito Editorial, 2012. P:. 439-64
[5] POPPER, Karl. Public Opinion and Liberal Principles. Em Conjectures and Refutations . 2ª edição.Londres: Routlege & Kegan Paul, 1965. P. 347.
[6] TROIS NETO, Paulo Mário Canabarro. Judiciário e Opinião Pública: Os Limites do Marketing Judicial. In PENTEADO, L. F.; PONCIANO, V. F. (organizadores) Curso Modular de Administração da Justiça . São Paulo: Conceito Editorial, 2012. P:. 439-64
[7] Pesquisa AMB – Perfil da Magistratura Brasileira. P: 123. Disponível em https://www.amb.com.br/pesquisa-da-amb-revela-pensamento-da-magistratura-brasileira/?doing_wp_cron=1573525630.3509879112243652343750
[8] Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc. in GUIMARÃES ROCHA. Everardo P. O Que é Etnocentrismo? 5ª ed. Brasília: Editora Braziliense, 1988. P: 05.
[9] Sobre o tema, indispensável a leitura de RECONDO, Felipe e WEBER, Luiz. S Onze: O STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[10] CASARA, Rubens R. R. Processo penal do espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. 1ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. P: 127.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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