Neste dia 8 de março, desejo que mais e mais mulheres advogadas se disponham a atuar no Terceiro Setor e fortalecer as organizações da sociedade civil e suas causas, especialmente na luta contra o machismo, o racismo, a homofobia e o capacitismo.
Quando comecei a atuar no campo do direito das organizações da sociedade civil no final da década de 90, início dos anos 2000, escutava que escolher trabalhar nessa área era uma loucura, típica de pessoas “abnegadas” e “altruístas”. Diziam que, como advogada, eu deveria buscar um caminho mais próspero economicamente, em alguma carreira pública ou buscar áreas do direito consideradas mais rentáveis. Mas eu resolvi desafiar essa lógica imposta e fui atrás do que queria. Entendi que mesmo não sendo considerado um “mercado” na advocacia eu queria trabalhar com propósito e o campo das organizações da sociedade civil era meu lugar.
Vocacionei minha carreira para atuar com pessoas jurídicas sem fins lucrativos, nos seus mais diversos formatos, sempre buscando apoiar os caminhos dos trabalhos que realizam. Comecei fazendo uma pesquisa de legislação sobre Terceiro Setor na Fundação Getúlio Vargas em 1999 que foi publicada no ano seguinte. Logo percebi que para prestar uma boa assessoria a gestão das organizações e usar o direito como fundamento dos projetos eu precisaria me debruçar sobre as peculiaridades da existência das associações, fundações, cooperativas, organizações religiosas, movimentos sociais e até das empresas – aquela época já estávamos de olho na experiência microcrédito e dos chamados hoje de “negócios de impacto” por conta do Grameen Bank em Bangladesh.
É muito comum me perguntarem o significa atuar como uma consultora jurídica especializada no Terceiro Setor. No mínimo, é preciso entender do Direito Societário, Tributário, Contratual, Trabalhista, Autorais e especialmente de Direito Público aplicados às organizações, para além da legislação setorial que afeta as suas atividades, notadamente o sistema internacional de direitos humanos, e a legislação nacional específica sobre cultura, meio ambiente, assistência social, saúde, educação, esporte, desenvolvimento local, tecnologia da informação, mulheres, raça, criança, adolescente, pessoa idosa e pessoas com deficiência. Engloba, na prática, o que hoje se chama de ESG – Environmental, Social, and Corporate Governance.
Nestes últimos 20 anos, a atuação no direito das organizações da sociedade civil segue sendo necessária e premente. Para além das questões positivas de atuar com pessoas que fazem projetos interessantes de modificação das realidades, complementando e criticando o Estado em diversas políticas públicas, promovendo e construindo direitos, a criminalização burocrática colocada exige das advogadas e dos advogados da área um trabalho minucioso e detalhado para proteger as organizações da sociedade civil e seus ativistas dos arbítrios do Estado.
Por conta disso, percebe-se um contencioso sendo cada vez mais necessário para resolução de questões, individuais ou coletivas. Compliance, litigância estratégica e advocacy passaram a ser serviços mais demandados pelas organizações respectivamente para dar conta da prevenção de problemas e de práticas anticorrupção, da judicialização da política na Suprema Corte e da representação do interesse público e legítimo dos direitos humanos e demais áreas de atuação das organizações nos diferentes espaços de tomada de decisão, especialmente no Congresso Nacional.
Em plena pandemia da covid-19, as organizações da sociedade civil se reuniram em diversas inciativas emergenciais para construir pontes de apoio às comunidades mais vulneráveis e pressionar o Congresso Nacional pelo auxílio emergencial, além de lutar pela vacinação imediata para todos e contra diversas políticas públicas de exclusão. Assessorá-las nesse universo a continuarem existindo e lutando, com segurança jurídica, garantindo o protagonismo das mulheres e clamando por democracia, dá sentido à profissão que escolhi.
Não é fácil empreender na advocacia, ainda mais sendo mulher. Constitui o meu próprio escritório em 2001 e por 10 anos só tive sócias mulheres. Com elas aprendi muito, especialmente a apoiar os tempos e as potencialidades de cada uma, buscando fazer coisas juntas, sem competição. Queria muito trabalhar nesta área, ainda que fosse um caminho difícil. Organizações passaram a se tornar parceiras como clientes remunerados e por meio das orientações, conteúdos e processos, eu estudava e me especializava. Aos poucos e com muito foco fui construindo essa atuação dedicada às especificidades do Terceiro Setor.
Me afastei da advocacia por 5 anos para atuar na Secretaria-Geral da Presidência da República na agenda de aperfeiçoamento do marco regulatório das organizações da sociedade civil. Contribui para a mudança da legislação e demarcação de um regime jurídico próprio do campo das organizações da sociedade civil e das parcerias com o Estado no Governo Dilma. A ideia de fazer parte do primeiro governo liderado por uma mulher, progressista, com mulheres ministras e em cargos de poder, com o tema da minha especialidade, me parecia incrível.
Mas a experiência demonstrou que não ficamos isentas do patriarcado arraigado nas estruturas, ainda que lideradas por mulheres. E era situação infinitamente melhor do que estamos hoje. A inversão dos avanços nas políticas públicas de direitos humanos e de garantia dos direitos das mulheres que estávamos alcançando, foi acelerada com o Golpe de 2016 e se acirrou com a entrada do novo Governo em 2019.
Resolvi escrever sobre isso nesse Dia Internacional da Mulher para reconhecer esse percurso como mulher, que trabalhou e aprendeu com mulheres a incentivar outras mulheres a nunca deixarem de acreditar que é possível influenciar as estruturas para o que importa. E que mesmo não conseguindo mudar o quadro de desigualdades e injustiças no geral, é possível de alguma forma contribuir para que essas transformações aconteçam. É preciso nominar essa força para que não nos esqueçamos dela.
Refletindo sobre os rumos profissionais na advocacia, vejo que é possível conciliar nossos distintos desejos e potenciais, ainda que em cenários adversos. Hoje sou sócia de um escritório de advocacia full service para organizações da sociedade civil que é resultado da fusão do antigo escritório, que eu construí com minhas sócias, com outro escritório, que já existia na área. Somos 24 pessoas que compõem o time, entre sócios e advogados, sendo que, dos 6 sócios, 1 é homem. Fazendo uma reflexão sobre a diferença de ter 75% de mulheres na equipe busco olhar para a gestão do negócio.
Temos a lógica do “cuidado” intrínseca em nossos corpos. Seguramente pela maioria feminina, ainda que com a concordância de todos, na gestão do escritório buscamos conciliar o trabalho com a vida das mulheres que são mães, das que desejam ser e das que não querem ser. As crianças precisam ter espaço real na vida das mães advogadas – em meio a pandemia elas muitas vezes fazem participações especiais em nossas reuniões de trabalho e isso não é um problema. Não fazemos diferença salarial entre homens e mulheres. Contratamos toda a equipe com a garantia de direitos trabalhistas. Ainda que não suficiente, praticamos a diversidade buscando representatividade na nossa pequena composição, incluindo além da perspectiva de gênero, pessoas com diferentes orientações sexuais, raça, deficiência e classe social. Conciliamos também os desejos de cada um de vida política, acadêmica e de tempo para projetos pessoais.
O exercício dos direitos humanos começa dentro de casa. E na nossa, ouso dizer, ele é fruto de um projeto coletivo que envolve essencialmente a dedicação de muitas mulheres maravilhosas e o reconhecimento desse protagonismo feminino também por parte dos homens. Então, respondendo à pergunta inicial, atuar no campo das organizações da sociedade civil e empreender na advocacia sendo mulher é um caminho profissional viável e necessário.
Tenho visto muitas mulheres abrindo seus próprios escritórios e quero dizer que isso muito é incrível e não tem nada de loucura neste ato. Não desistam. Somos maioria na profissão atualmente. Vocês podem e dá certo!
Neste dia 8 de março, desejo que mais e mais mulheres advogadas se disponham a atuar no Terceiro Setor e fortalecer as organizações da sociedade civil e suas causas, especialmente na luta contra o machismo, o racismo, a homofobia e o capacitismo. Temos muito a fazer. Estarei aqui para me somar a vocês nesse diálogo por uma regulação melhor e mais favorável a existência da sociedade civil organizada e dos direitos humanos, por uma advocacia com propósito e por um mundo mais saudável, solidário, justo e democrático.
Publicado no Migalhas.
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