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Chega de praças e homenagens às vítimas de acidentes

O incêndio da boate Kiss em Santa Maria mobilizou a opinião pública. Uma desgraça completa. Irreparável. Mas, é possível tirar uma lição do massacre. As autoridades, que vivem o mundinho oficial mas seguem ao sabor da mídia, agora querem dar exemplo. Não tardará e todos relaxarão, salvo no “dia da memória”.

É hora de rapidamente transformar, então, o sofrimento de tantas famílias em energia para fazer o Brasil avançar. Não precisamos de praças, como a das vítimas do último grande acidente aéreo em Congonhas. Precisamos de ações sérias para a melhora da vida em sociedade, para prevenir os acidentes cujas condições potencializadoras denunciam tanta precariedade, que chamá-los de acidentes parece mais eufemismo barato do que boa semântica.

Na minha restrita seara, que é a do direito do seguro, ocorreu chamar a atenção para o fato de que, se tivéssemos seguros obrigatórios de verdade — não porcarias como o Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores (DPVAT), uma roubalheira oficializada, mas seguros que realmente garantissem os interesses dos cidadãos —, com coberturas indisputáveis, valores relevantes e regras de proteção, então aí poderíamos contar com um instrumento capaz de ajudar a reduzir os acidentes e, quando fossem merecidamente denominados “acidentes”, amenizar as perdas.

O governo nunca cuidou de zelar por políticas públicas nessa área. Só interessam os movimentos acionários do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), as concentrações de seguradoras, a formação de campeões dos grandes números que fazem inveja até para chineses. Os microsseguros que interessam são aqueles que fingem ser seguros de vida para os pobres consumidores superindividados, mas são verdadeiros seguros de crédito em favor dos credores desses, perdõem-me, “coitados”.

O atual Ministro da Justiça, o jurista José Eduardo Cardozo, já foi deputado e nessa qualidade foi sensível para o problema. Apresentou um projeto de lei de contrato de seguro que está no “engaveta-não engaveta” desde 2004, há oito anos! Muitos países, de lá para cá, editaram suas primeiras ou segundas ou undécimas leis de contrato de seguro, como Alemanha, Portugal e Cuba.

O projeto brasileiro é estudado mundo afora e a comunidade jurídica local e estrangeira o aplaudem como um dos principais modelos de lei de seguro do planeta. Na versão original, o Projeto 3.555/2004 tem um “Título IV” dedicado aos “Seguros obrigatórios”. Além de tornar o seguro obrigatório um seguro de verdade, exigindo indenizações elevadas, coberturas indiscutíveis, responsabilizando não apenas os indivíduos e as empresas, mas também os administradores e investidores que deixassem de contratar, e evitando que os fundos fossem distribuídos no baile da Ilha Fiscal. O Projeto prevê, no inciso III do artigo 138, a obrigatoriedade de contratação, “pelos administradores e empreendedores ou responsáveis a qualquer título por atividades, lucrativas ou não, que envolvam a concentração de público, dos seguros destinados à indenização das vítimas de danos relacionados com a existência e utilização dos bens empregados.”

Não há dúvida de que um seguro desse tipo, com cobertura e importâncias seguradas adequadas, somente seria aceito pelas seguradoras quando os contratantes pudessem deixar evidenciado que as medidas preventivas de sinistros foram tomadas, tanto para evitá-los, quanto para atenuar os efeitos daqueles que, por acidente, acontecessem. Mas ninguém gosta do seguro obrigatório de verdade, que funcione, só as ratazanas devoram os teratológicos já existentes. E o estado, governo após governo, não percebe que pode utilizar o seguro para criar uma atividade empresarial saudável e capaz de ajudar a reduzir a tristeza dos que perdem os filhos dançando, atravessando a rua, debaixo dos escombros de casa, indo passear de barco, fazendo ressonância magnética…

Chega de hipocrisia. Um dia teremos orgulho justificado de sermos brasileiros.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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