728 x 90

Clamor público

Clamor público

Os vizinhos ficaram em polvorosa. O bairro pacato e de gente de bem não estava acostumado a incidentes como aquele. Logo que ouviram os tiros, chamaram a polícia, mas não puderam ver o momento em que o homem foi levado para a delegacia. A cena do crime foi isolada, e dela também ninguém pôde se aproximar. Nada disto, no entanto, arrefeceu o espírito cívico daquela gente, obcecada por justiça. As associações de bairro logo organizaram uma manifestação na frente do prédio. Vizinhos colocaram faixas na janela com dizeres: “Abaixo a impunidade”, “Chega de violência”, “10 medidas contra a corrupção, já”, “Moro presidente”. Os restaurantes enxergaram no incidente uma boa jogada de marketing. Garantiram descontos para quem viesse comer com a camiseta “Quero meu bairro de volta”.

No dia seguinte, algumas pessoas começaram a ser chamadas para depor. A polícia principiou pelo presidente da principal associação de moradores. Ele não havia presenciado o ocorrido, mas deu um testemunho valoroso e muito detalhado sobre o clamor público que o crime provocou.

Alguns vizinhos que também não viram nada, muito menos a cena do crime, prestaram seu compromisso cívico e compareceram espontaneamente na delegacia para contar aos policiais um pouco sobre a personalidade do acusado. Esquisito, estranho, ameaçador, foram alguns dos adjetivos usados. Um dos vizinhos, médico psiquiatra, ousou ir um pouco além. “Por trás daquele olhar manso, pacato e gentil, sempre desconfiei que havia um psicopata”.

A personalidade do réu e o clamor público atestado pelas testemunhas foram os principais fundamentos da prisão decretada no dia seguinte.

O advogado chamado para atender a ocorrência quase que não aceita o patrocínio da causa. Sua esposa estava revoltada, como toda gente. Conseguiu com ela um alvará pelo menos para examinar os autos. Foi ao fórum e conseguiu vista. O laudo necroscópico já estava anexado. Descrevia um roedor de 8,8 cm, cor parda acinzentada, pesando 19 g. A causa da morte: hemorragia interna causada por instrumento perfuro-contundente. A vítima era um rato. Fora morto cruelmente com um tiro no estômago. O advogado se desiludiu. Já havia precedente no STJ para caso idêntico. Era causa perdida.

*Este fictício conto foi inspirado em notícia publicada pelo jornal “O Estado de São Paulo”, no dia 25 de dezembro, “Ministro do STJ mantém preso homem que matou cachorro a tiros em Goiás”).

Publicado originalmente no Migalhas.

Compartilhe

Deixe um comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *

Mais do Prerrô

Compartilhe