Por Rosana Pinheiro Machado
ENQUANTO UMA PARTE significativa do mundo discute trabalho remoto e isolamento, a senhora que trabalha como caixa do supermercado permanece parte do dia sentada, encarando cada consumidor que compra papel higiênico para estocar. O supermercado fecha, e as funcionárias terceirizadas da faxina chegam para limpar o chão. Elas vão e voltam do trabalho de metrô e ônibus, de pé, segurando-se na barra do veículo lotado. Essas pessoas não podem parar.
A gente olha para a comitiva de viagem de Jair Bolsonaro, que voltou dos Estados Unidos infectada ou em quarentena, e pensa que nada é nada mais “democrático” do que uma pandemia em escala global. Os grandes cruzeiros também seriam prova disso. O vírus, em princípio, não escolhe classe, raça e gênero. Ele simplesmente se espalha, entre partículas e superfícies, de um corpo para o outro. Mas sabemos que a maneira como corpos, partículas e superfícies estão dispostas no mundo variam de acordo com marcadores sociais de desigualdade. O sistema que permite que pessoas passeiem de navio é o mesmo que isolará essas mesmas pessoas enquanto as oferece um sistema de saúde de luxo.
Na última semana, assistimos muitos vídeos de como lavar as mãos em 20 segundos. Aprendemos a abrir a porta com o cotovelo e realinhamos nossa distância física nos afetos e cumprimentos da vida. Enquanto passamos o sabonete no pulso, palma da mão e punho muitas vezes ao dia, as consequências extremadas de um mundo distópico pandêmico seguem seu curso, demarcando um apartheid sanitário. Bilionários pegam seus jatinhos particulares e vão para bunkers de luxo isolados em países não infectados. Enquanto isso, 736 milhões de pessoas vivem em extrema pobreza no mundo e consideram o sabonete um objeto de luxo.
Como apontou uma reportagem do Valor, o vírus chega no Brasil em recessão econômica e com alto índice de desemprego e informalidade. Para grande parte dos trabalhadores brasileiros desprotegidos – entre trabalhadores informais, freelancers e empreendedores –, o isolamento não é uma possibilidade. Ou se fica vulnerável ao vírus, ou não se paga as contas. Parar significa uma tragédia em uma população já super-endividada.
Em época de epidemia e esvaziamento dos espaços públicos, entregadores e motoristas de aplicativos precisam trabalhar em dobro para compensar. O ciclo vicioso só piora. Ao não dormirem bem, a imunidade cai. Muitos desses sujeitos encarnam a lógica neoliberal que atribui ao próprio indivíduo a responsabilidade do sucesso ou fracasso. Por sujeição ou falta de opção, eles se colocam em um regime vigilante intenso de autodestruição.
Outra vítima em potencial do coronavírus são os setores terceirizados das grandes empresas, que não têm limite na ganância e na superexploração. Na semana passada, prestadores de serviço do Facebook denunciaram ser obrigados a ter que trabalhar em algumas sedes da empresa, enquanto os funcionários formais foram liberados para trabalhar remotamente. Terceirizados da sede de Mountain View dizem que as pessoas vão trabalhar tossindo e doentes. Outra empresa de marca “descolada”, o supermercado Whole Foods, em vez de garantir folga remunerada para seus empregados, enviou uma nota sugerindo que os trabalhadores doem seus dias pagos para seus colegas que precisam.
Olhando para a história das mortes das grandes epidemias do mundo, como destacou o escritor e ativista Mike Davis, é possível prever como alguns farão de tudo para se salvar, enquanto milhares morrerão em massa nas favelas da África do Sul, por exemplo. Epidemias são casos bem acabados daquilo que o médico e antropólogo Paul Farmer chamou de “violência estrutural”: a forma como estruturas políticas e econômicas afetam, infectam e matam populações que vivem em condições precárias.
“O pânico coletivo precisa se transmutar em ação ética e solidariedade comunitária.”
HIV, tuberculose, ebola, dengue, zika e, agora possivelmente, o coronavírus são exemplos disso. A literatura é extensa sobre o tema e o chama de biopolítica, patologias do poder, sofrimento social ou, como recentemente escreveu Debora Diniz, a necropolítica das epidemias. Em todos essas perspectivas, chama-se a atenção para como alguns corpos são escolhidos para vencer a batalha da sobrevivência, enquanto outros são jogados à própria sorte. Como para algumas pessoas a vida é permitida e a outras, não? Essas são questões tanto de saúde pública quanto de política econômica – e só podem ser pensadas juntas.
Precisamos urgentemente tratar a pandemia do coronavírus como uma questão relacionada à opressão social. O vírus escolhe, sim, classe, raça e gênero.
Conversando com Mariana Varella, editora-chefe do Portal Drauzio Varella, ela demonstrava profunda preocupação com o potencial catastrófico que a epidemia pode ter no Brasil entre os mais pobres, entre aqueles que moram em comunidades cujas casas são aglomeradas e sem ventilação. Ela também teme a falta de leitos em localidades onde não há UTI.
Em nosso apartheid sanitário, podemos falar em racismo epidêmico? Creio que sim. A grande maioria dos mais vulneráveis é negra. Como mostra a reportagem do UOL, com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento em 2018, são quase 35 milhões de pessoas vivendo sem acesso à água tratada e 100 milhões sem esgoto. Somente em São Paulo, são 7 mil pessoas em situação de rua. Soma-se à falta de moradia e à má nutrição, o fato que pessoas em situação de pobreza extrema estão mais vulneráveis a transtornos mentais, o que também baixa a imunidade.
O vírus também escolhe gênero. A ONU Mulheres tem feito diversos alertas sobre como a epidemia afeta mulheres de diferentes maneiras. Na China, há apelos de ativistas para dar importância ao fato de que a violência doméstica cresceu durante a quarentena, que coloca as pessoas em pressão psicológica extrema. Segundo a Organização Mundial da Saúde, as mulheres representam 70% dos profissionais na linha de frente de combate ao vírus, sendo vulneráveis à infecção e ao estresse.
Precisamos, por causa desse cenário, voltar a debater políticas de proteção social. A Alemanha, por exemplo, já estuda oferecer benefício social para quem não tem direito a folga remunerada. Isso nos leva à antiga discussão levantada por Eduardo Suplicy sobre renda mínima, atualmente encabeçada também pela professora da UFRJ, Tatiana Roque, que tem defendido a importância de se ampliar a proteção social dos trabalhadores informais e por conta própria. Além, é claro, da importância de se defender o SUS e lutar contra projeto de seu sucateamento.
Bernie Sanders tem usado a crise pandêmica para reafirmar a necessidade de um sistema de saúde gratuito e universal. Se há alguma lição que podemos tomar desse processo que beira à catástrofe é a necessidade de radicalizar na contramão do neoliberalismo, discutindo acesso aos direitos fundamentais à educação, à saúde e à moradia.
Como bem disse o filósofo Slavoj Zizek, muito tem se falado nos últimos tempos sobre o poder subversivo do vírus. Ou seja, a possibilidade de se pensar formas alternativas de se viver neste mundo. A ironia é que talvez a crise sanitária atual seja a forma limite para perceber que a vida humana neste planeta está se tornando insustentável de maneira crônica e acelerada.
Não é possível postergar a sociedade alternativa que Zizek menciona para o futuro, é preciso praticá-la, no meio da crise, no aqui e agora. O pânico coletivo precisa se transmutar em ação ética e solidariedade comunitária: pagando diaristas pelos dias que não foram trabalhar, ajudando vizinhos idosos a fazer compras, pressionando empresas para proteger seus funcionários. Enfim, para reverter a crise de imaginação coletiva que nos afeta, é fundamental reinventar a solidariedade local e global no nosso cotidiano. No meio da catástrofe, existe a possibilidade de se repensar radicalmente o que queremos como humanidade e projeto político.
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Artigo publicado originalmente no The Intercept Brasil.
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