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CPFs negros importam? Racismo estrutural e políticas públicas no contexto da COVID-19

Os dados do boletim epidemiológico quinzenal sobre a Pandemia de COVID-19, da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, publicado em 30 de abril, apontam que as taxas de mortalidade associadas ao diagnóstico de COVID-19 na capital apresentam uma distribuição racial desigual na população. Na população branca, essa taxa é de 9,67%; na população parda, a taxa sobe para 11,88% e, na população preta, a taxa alcança escandalosos 15,64%. Traduzindo de modo mais explícito, a chance de uma pessoa preta morrer em consequência da COVID-19, na cidade de São Paulo, é 62% maior do que a chance de uma pessoa branca morrer por essa mesma razão.

Frente a esses dados, somos obrigados a considerar que os efeitos e impactos da Pandemia de COVID-19 estão sendo experienciados e produzindo devastação de modos diferentes considerando os grupos raciais que compõem a sociedade brasileira. Também somos forçados a assumir que o próprio Estado tem consciência desse fenômeno, dado que suas estatísticas oficiais comprovam sua regularidade. Partindo desse pressuposto, importa perguntar: quais fatores poderiam explicar essa realidade e o que o estado brasileiro (não) tem feito para orientar suas políticas públicas em favor dos que mais precisam?

Michel Foucault, em seus estudos sobre a biopolítica e o filósofo jamaicano Charles Wade Mills, com sua análise crítica sobre o conceito de contrato social, nos ajudam a enxergar parte da explicação desse fenômeno. Para eles, a relação do Estado e o contrato social de cidadania estabelecido na modernidade são radicalmente atravessados pelo racismo e pela ideologia patriarcal. Em outras palavras, ambos os filósofos denunciam que o status de cidadania e a proteção da vida pactuados pelo estado moderno são substancialmente diferentes entre negros e não negros e entre mulheres e homens, apesar da igualdade formal prevista nas normas jurídicas. Essa desigualdade substantiva alcança, inclusive, a própria manutenção da vida, já que o Estado, no exercício da sua soberania, decide (1) como atuará para proteger determinados corpos, garantindo-lhes a vida; e (2) em quais situações ele optará por não agir ou ainda por usar sua força contra determinados corpos, permitindo e até mesmo incentivando o extermínio destes.

Deste modo, o processo de produção e implementação das políticas públicas está condicionado por essas estruturas, e somente os tensionamentos sobre elas permitem corrigir parte dos seus efeitos. No 6° Encontro sobre os impactos da COVID-19 conduzido pelo NEB – Núcleo de Estudos da Burocracia, tratamos do atravessamento do racismo na produção e implementação das políticas públicas e das consequências da interação dos efeitos da Pandemia com a desigualdade racial no Brasil.

Na escuta de lideranças dos movimentos sociais negros e dos profissionais da linha de frente, evidenciamos que os corpos que o Estado escolhe cuidar menos e, em consequência, deixar morrer, têm raça e classe social. Identificamos que a entrega de serviços públicos, como a saúde e a proteção social está distribuída de modo desigual (tanto em quantidade, quanto em qualidade) para brancos e negros, em desfavor desses últimos. Como afirmou a médica Rita Borret, da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade, à reportagem da Agência Pública, os dados mostram que “o problema não é raça, mas o racismo, que dificulta o acesso de negros à saúde”.

Identificamos também que as profundas conexões do racismo com as nossas políticas de segurança pública têm imposto aos jovens pretos. Esses corpos já enfrentavam restrições diferentes de circulação no espaço público no cenário pré-pandemia e, agora, os riscos que enfrentam são ainda maiores. Se, no cenário pré-pandemia, meninos e homens negros precisavam escolher com cuidado a roupa para sair de casa ou o corte de cabelo que assumiriam, agora, a própria recomendação de utilizar máscaras para proteção do contágio, para os nossos corpos-alvo, pode significar sua classificação como criminoso e acionar o gatilho policial contra sua vida.

Outro campo complexo é a relação entre as condições de habitação e moradia das populações pobres e, sobretudo, pretas, e as recomendações de isolamento social e higiene. É justamente entre os negros que o percentual de habitações precárias e de exclusão de políticas de saneamento básico é maior. Manter-se dentro de casa, respeitando as justas recomendações dos especialistas é uma experiência radicalmente diferente para negros e pobres em comparação com os segmentos brancos e de classe média. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD de 2018 revelou que, 11,5% da população branca reside em domicílio sem abastecimento de água por rede lógica, mas que entre negros (pretos e pardos) esse percentual é de 17,9%. Revelou também que 26,5% da população branca vive em residências sem esgotamento sanitário, mas que entre negros, esse percentual é muito superior: 42,8%. E, por fim, revelou que, entre brancos, 44,8% dos domicílios possuem máquina de lavar, enquanto entre negros, esse percentual é de apenas 21%.

O cenário de pandemia também explicitou outro traço desse arranjo de desigualdade: a perda de posições de trabalho e de renda afeta, com maior velocidade e com maior peso, a população preta e, em seguida, a população parda. E, para aqueles que conseguiram manter seus empregos, a distribuição social e racial do trabalho presente na sociedade brasileira coloca os mais pobres e a população negra nos postos de maior exposição aos riscos de contaminação, como em serviços de limpeza, cuidado privado de idosos e serviços de delivery. Da população empregada que trabalha com asseio, conservação e limpeza, por exemplo, 74% se identifica como negra (SIEMACO, 2011) e, na categoria de trabalhadoras/os domésticos, 64,7% são negros (IPEA,2015). Além disso, a cidade tem um forte apartheid urbano e, para uma parte relevante dessas trabalhadoras e trabalhadores que vivem nos bairros periféricos, o deslocamento casa-trabalho impõe a necessidade de enfrentar o transporte público em longos trajetos.

Se é verdade que o mover do estado brasileiro não foi capaz – ainda – de se desvencilhar de seu pacto de morte em relação à população negra, então, os efeitos danosos do atravessamento do racismo não se restringem aos usuários dos serviços públicos. Afetam também sua burocracia. A divisão hierárquica dos postos no serviço público – apesar de ser mais racialmente democrática do que aquela verificada na iniciativa privada – não deixa dúvidas quanto à cor/raça dos servidores públicos que estão mais expostos e vulneráveis nos protocolos de atendimento à COVID-19: coveiros, auxiliares de limpeza, enfermeiras, assistentes sociais, agentes de coleta de lixo, entre outros quadros da burocracia direta ou indireta das prefeituras e governos de estado são, em sua esmagadora maioria, negros (pretos e pardos), enquanto seus colegas de trabalho em posições mais privilegiadas (médicos, engenheiros, arquitetos, auditores, técnicos legislativos, técnicos judiciários, entre outros) são, em maioria, brancos. Na prefeitura de São Paulo, o Sindisep, sindicato que congrega boa parte das categorias de servidores públicos, assinala que a quantidade, qualidade e disponibilidade dos equipamentos de proteção individual, por exemplo, é desigual e está mais longe de acolher os servidores em posições de menor especialização e remuneração (por consequência, negros) causando, entre eles, número superior de contaminados e mortos.

Um último traço que identificamos e que revela o caráter perverso da ideologia racista tem a ver com a responsabilização dos mais pobres e das populações negras pelo alastramento da pandemia em seus territórios. Parte dos agentes da mídia e das próprias autoridades públicas contam essa história pela metade: ocultam que os regimes de vida experimentados por essa população (e impostos por padrões de desigualdade racial avassaladores desta sociedade) explicam, em grande medida, os comportamentos ‘de risco’ que são lidos e nomeados como responsabilidade individual. Como afirma Dennis de Oliveira (ECA-USP e Rede Antirracista Quilombação), é preciso denunciar que essa narrativa mostra pessoas negras e pobres como culpadas pelas mazelas de que, na verdade, são vítimas.

Nos resta questionar se o direcionamento das políticas públicas na pós-pandemia finalmente terá como base  o conhecimento adquirido a partir do imenso volume de dados coletados ao longo da crise e que explicitam as implicações da combinação de racismo e desigualdade social na base da exclusão da população negra ao acesso a atendimento e tratamento dignos em toda cadeia da das políticas sociais. As práticas de Estado que ignoram, reproduzem ou, até mesmo, ampliam a precarização da vida da população negra têm um longo histórico no Brasil, em contraposição às tentativas mais recentes de reverter esse processo. O pacto social nacional, mais uma vez, precisa decidir se as vidas negras e dos mais pobres importam e se esses grupos farão ou não farão parte do contrato básico de cidadania, com a mesma garantia do direito à vida, à saúde e à proteção social do que seus compatriotas brancos.

Este artigo foi produzido a partir dos debates do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB-FGV EAESP) coordenado pela professora Gabriela Lotta.


ALEXSANDRO SANTOS, pós-doutorando em Administração Pública e Governo (FGV EAESP), Diretor-Presidente da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo e Coordenador do curso de Pedagogia da FEDUC. Pesquisador do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB)

ANA CAROLINA NUNES, doutoranda em Administração Pública e Governo (FGV EAESP). Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB)

EDNEIA GONÇALVES, socióloga (FESP-SP), e coordenadora executiva da Ação Educativa

MORGANA G. Martins Krieger. Doutora em Administração Pública e Governo (FGV EAESP)

Texto publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.

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