O desaparecimento forçado não se confunde com o homicídio. Trata-se de outra forma de violação grave dos direitos humanos, caracterizada pela detenção, sequestro ou retenção de uma pessoa por agentes do Estado ou grupos que atuam sem seu consentimento, seguidos pela recusa em fornecer informações sobre seu paradeiro
O filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, é um dos grandes destaques do cinema nacional nos últimos anos e retrata uma das maiores tragédias que uma família pode enfrentar: o desaparecimento de um ente querido sem saber o que, de fato, aconteceu. A história é centrada no caso de Rubens Paiva, ex-deputado cassado e engenheiro, que foi levado por agentes do Estado para um suposto interrogatório e nunca mais foi visto. Mais de vinte anos depois, a família conseguiu, por meio de ação judicial, o reconhecimento de seu óbito. Infelizmente, o caso de Rubens Paiva não foi o único na história recente do país.
Receber a notícia do falecimento de um familiar é doloroso, mas perder o contato sem saber seu paradeiro é angustiante. Embora seja provável que o desaparecido esteja morto, a esperança de reencontro persiste. A morte faz parte do ciclo da vida e, por isso, devemos nos preparar para ela; o desaparecimento, por outro lado, é uma situação antinatural e de difícil superação. A gravidade do problema levou a ONU a instituir o Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados, em 30 de agosto. Os objetivos da data são fortalecer a luta por memória, verdade, justiça e reparação, ressaltando o direito das vítimas, de seus familiares e da sociedade como um todo, conhecer a realidade sobre as circunstâncias do desaparecimento forçado, o andamento e os resultados da investigação, assim como o destino ou paradeiro da pessoa desaparecida.
O desaparecimento forçado não se confunde com o homicídio. Trata-se de outra forma de violação grave dos direitos humanos, caracterizada pela detenção, sequestro ou retenção de uma pessoa por agentes do Estado ou grupos que atuam sem seu consentimento, seguidos pela recusa em fornecer informações sobre seu paradeiro. Essa prática é frequentemente usada como uma forma de repressão política, com o objetivo de silenciar opositores, ativistas e defensores dos direitos humanos. Ela causa não apenas dor e sofrimento às vítimas, mas também afeta suas famílias e comunidades, que ficam sem respostas, imersas em um estado de incerteza e angústia.
O impacto psicológico do desaparecimento forçado é profundo, afetando tanto os desaparecidos quanto seus entes queridos. Para as famílias, a falta de informações sobre o destino da vítima gera sofrimento contínuo, e a dúvida sobre o que realmente aconteceu se torna um fardo emocional permanente. Além disso, as vítimas que sobrevivem ao desaparecimento frequentemente carregam traumas físicos e psicológicos duradouros, muitas vezes sem acesso à justiça ou reparação. O desaparecimento forçado é uma prática destrutiva que fere os direitos fundamentais de liberdade e segurança, criando um clima de medo e insegurança nas sociedades afetadas.
No âmbito internacional, o desaparecimento forçado é considerado um crime contra a humanidade, conforme o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Diversas organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, têm se esforçado para chamar a atenção para essa violação e pressionar os governos a adotarem medidas para preveni-la e punir os responsáveis. A luta contra o desaparecimento forçado também envolve o direito das vítimas à verdade, à justiça e à reparação, com o objetivo de garantir que essas práticas não fiquem impunes e que as famílias possam finalmente obter respostas sobre o que aconteceu com seus entes queridos.
Recentemente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja jurisdição é reconhecida pelo Brasil, responsabilizou a Guatemala pelo desaparecimento forçado de quatro ativistas: Agapito Pérez Lucas, Nicolás Mateo, Macario Pú Chivalán e Luis Ruiz Luis. As vítimas foram ameaçadas e perseguidas por membros das forças de segurança do Estado guatemalteco devido às suas atividades em defesa dos direitos humanos. A Corte concluiu que as autoridades locais falharam em cumprir suas obrigações de investigar, julgar e, quando necessário, punir os responsáveis de maneira eficiente e dentro de um prazo razoável.
Em 2010, o Brasil ratificou a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados, comprometendo-se, perante a comunidade internacional, a adotar medidas de política criminal, incluindo a criação de um tipo penal específico. Na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 6.240/2013, de relatoria do Deputado Orlando Silva, visa criminalizar o “desaparecimento forçado de pessoa”, em conformidade com as diretrizes internacionais. No entanto, persiste uma resistência interna para colocá-lo em votação, tratando a questão como se fosse um problema ideológico, e não de humanidade.
O projeto conta com o apoio do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, que, em nota técnica, afirmou que “o desaparecimento forçado constitui uma grave violação dos direitos humanos, pois repercute na violação de vários direitos reconhecidos por instrumentos internacionais, incluindo: o direito ao reconhecimento como pessoa perante a lei; o direito à liberdade e segurança da pessoa; o direito de não ser submetido a tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; o direito à vida, quando a pessoa desaparecida é morta; o direito à identidade; o direito a um julgamento justo e às garantias judiciais; o direito a um recurso efetivo, incluindo reparação e compensação; o direito de saber a verdade sobre as circunstâncias de um desaparecimento.”
O PL 6.240/2013 representa um passo importante para o fortalecimento do sistema interno de proteção dos direitos humanos no Brasil, mas a resistência política ainda é um obstáculo. É fundamental que a sociedade brasileira e suas instituições se mobilizem para que essa questão seja tratada com a seriedade que merece, promovendo a verdade, a justiça e a reparação para as vítimas, e garantindo que tais atrocidades não se repitam no futuro.
Artigo publicado originalmente no O Estado de S. Paulo.
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