Por Bianca Santana
É urgente criar o novo. Agir. Mas, sem as distinções necessárias, repetiremos percursos sem criticidade, com o elevado risco de cometer os mesmos erros que nos trouxeram aqui
Nem toda campanha de combate à fome é igual. Há as que distribuem comida para manter subjugados os de baixo e enriquecer os intermediários. Há as que distribuem formação política insurgente junto com a cesta básica e a sacola de alimentos agroecológicos produzidos por quem desafia o agronegócio. Campanhas dos dois tipos dão de comer, mas o que intencionam construir a médio prazo é bastante diferente. Recomendo a leitura da agenda política da Coalizão Negra por Direitos, uma das promotoras da campanha “Tem gente com fome” para compreender melhor as campanhas emergenciais que estão a serviço da promoção da vida no hoje sem perder de vista a transformação política futura.
Então os movimentos nas favelas não são todos a mesma coisa? Não, não são.
Estamos no outono, um bom período para manejar espécies consideradas daninhas e proteger as sementes que queremos ver brotar na primavera. Aqui na Serra da Mantiqueira, de onde escrevo, é tempo do defeso do pinhão. Neste início de estação, a sementes da araucária começam a cair e é muito importante deixar que se misturem ao solo, gerando novas mudas. Não se pode, até a metade do mês de abril, coletar o pinhão para consumo, sob o risco de extinção das araucárias. É preciso discernir os tempos da vida e saber quando plantar e quando colher.
No acelerado dos dias e das redes, parece haver pouco tempo para as distinções necessárias. Sejam elas explícitas ou sutis
Mas no acelerado dos dias e das redes, parece haver pouco tempo para as distinções necessárias. Sejam elas explícitas ou sutis. Toda pessoa negra que se propõe a distribuir comida na favela parece ter a mesma credibilidade. Toda ação política de mulher negra, em qualquer tempo ou formulação teórica, parece caber na noção de feminismo negro, como bem explicou Cidinha da Silva, um entendimento contemporâneo aqui no Brasil, construído nas plataformas digitais.
Li o ensaio de Cidinha da Silva “Movimento de Mulheres Negras e Feminismo Negro no Brasil: Uma Memória”, publicado na série Pandemia da N-1 Edições, como uma ode às distinções. Dos escritos de Lélia Gonzalez da década de 1970, passando pelos históricos encontros nacionais, desde 1988, chegando à Marcha de 2015, há uma constante na escolha do nome “Mulheres Negras”, um sujeito político forjado coletivamente, a partir de Lélia, pelos coletivos, organizações, movimentos e ativistas-intelectuais como Luiza Bairros, Sueli Carneiro e Jurema Werneck. “Não se falava em feminismo negro, pelo menos eu não ouvi”, afirma Cidinha.
“Essa distinção era tensa. Parecia haver um entendimento de que a expressão Movimento de Mulheres Negras poderia abarcar mais mulheres de origem popular e camponesa, trabalhadoras domésticas e outras categorias profissionais de menor remuneração, nas quais as mulheres negras abundavam. A expressão Movimento Feminista, por sua vez, tinha cara e tom mais europeizados e intelectualizados. Havia também a distinção de Mulheres e Movimento Feminista”, nos conta Cidinha da Silva sobre as décadas de 1980 e 1990. Páginas adiante, ao lembrar os anos 2000 e 2010, Cidinha afirma: “Parece-me que o ingresso significativo de mulheres negras politicamente posicionadas nos programas de pós-graduação das universidades brasileiras — também como docentes — foi um fator significativo. Penso que nesse processo foi robustecida a ideia de um feminismo negro pela necessidade de produzir uma teoria feminista negra no Brasil, uma abordagem epistemológica que contemplasse essas intelectuais emergentes.”
Para inspirar as distinções necessárias, há o belíssimo “De Ialodês e Feministas: reflexões sobre a ação política das mulheres negras na América Latina e Caribe”, de Jurema Werneck. Jurema nos conta de Oxum, orixá feminino de origem nagô, que tem uma de suas expressões na ialodê: “representante das mulheres, a alguns tipos de mulheres emblemáticas, lideranças políticas femininas de ação fundamentalmente urbana”. Depois de narrar uma das histórias de Oxum, Jurema nos mostra quantas dimensões de luta, posições, agenciamentos, transformações, responsabilidades, riqueza, poder há na vivência de mulheres negras brasileiras. “Fala de Oxum, a ialodê primordial, segundo a tradição. A orixá marcada pela sensualidade, pela força de vontade e capacidade de realização. E celebra a figura das ialodês, mulheres que se colocam como agentes políticos de mudança, detentoras principais das riquezas conquistada.” A dimensão ativista de mulheres negras, portanto, vêm de muito longe. “O feminismo, como teoria, veio depois.”
É urgente criar o novo. Agir. Mas, sem as distinções necessárias, repetiremos percursos sem criticidade, com o elevado risco de cometer os mesmos erros que nos trouxeram aqui. Fica o conselho bem escrito por Cidinha da Silva: “Compreender, por meio do estudo, da pesquisa, do diálogo com as mais velhas, que muito pouco se inventa da roda. Ela já foi inventada há muito tempo. Podem existir novas formas de colocá-la para rodar”.
Artigo publicado originalmente na Revista Gama.
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