Desde a chegada do surto do Coronavírus no Brasil expoentes da direita tradicional têm tentado assumir uma posição de destaque na agenda política nacional. Este grupo (PSDB/DEM) estava fora dos holofotes desde as eleições de 2018, quando viu seu candidato oficial, Geraldo Alckmin, ter um desempenho vexatório e precisou subordinar-se por completo ao bolsonarismo. Agora, tentam se diferenciar de Jair Bolsonaro, que viu parte do seu apoio político diminuir ao subestimar a doença e ignorar as recomendações da OMS para enfrentá-la.
A estratégia das elites do país passa hoje por isolar a esquerda. O campo popular — que polarizou as eleições presidenciais desde 89, vencendo quatro delas — defensor de políticas de fortalecimento do Estado e de distribuição de renda e riqueza, é seu principal inimigo. Contra ele e os direitos dos trabalhadores, vale uma aliança com o obscurantismo mais vil. Mas com um “antibolsonarismo” crescente pelo país cabe agora apostar em uma nova disputa: a ultradireita de Bolsonaro contra a direita liberal. Esta oposição dura apenas enquanto os partidos da esquerda não tiverem condições reais de se apresentar como alternativa de poder. Afinal, ela é pontual. Um discurso pró-forma em defesa da democracia e de preocupação com o avanço da pandemia, que exigiria mais ações governamentais. Mas a aparente preocupação com povo e com o investimento estatal é tão demagógica quanto passageira: passado o momento mais drástico e retornando os lucros dos grandes empresários, volta a agenda neoliberal.
O cálculo é simples: na comparação com Bolsonaro, o medíocre parece bom.
Os atos do presidente frente à pandemia beiram o escárnio (“não sou coveiro”) e seu ministro Ernesto Araújo chamou recentemente o Sars-Cov-2 de “Comunavírus”. Assim, o simples fato de não concordar com a ideia de termos apenas uma “gripezinha” pela frente e de não acreditar em uma conspiração chinesa tem sido suficiente para tornar uma liderança política respeitada hoje no país. Foi o que aconteceu com o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, recentemente alçado a herói nacional e gestor exemplar. Mas uma breve análise da sua trajetória é suficiente para vermos que ele e seu grupo político contribuíram para chegarmos ao atual estágio de caos social. Além de ter apoiado o rompimento democrático com o golpe parlamentar em 2016, o sul-mato-grossense sempre foi um representante fiel dos planos privados de saúde. Contribuiu para o desmonte do SUS ao apoiar a Emenda Constitucional 95, que congelou os investimentos sociais por 20 anos. Além de ter sido artífice do fim dos Mais Médicos e do desmantelamento do programa Farmácia Popular.
Em São Paulo, por sua vez, os principais representantes deste grupo são Bruno Covas e João Dória. O governador e o prefeito vêm ganhando grande espaço nos noticiários e nas redes sociais. A dupla tem dado as caras em entrevistas coletivas diárias.
O cenário no Palácio dos Bandeirantes é muito mais cuidadoso do que aquele mal preparado no Planalto. Não se veem ministros irresponsavelmente amontoados nem um põe-e-tira de máscaras, manuseadas de forma grotesca e cobrindo os olhos de desavisados. Dória age como “showman”, papel que sabe bem desempenhar, desde os tempos de “reality show”. Separa seus secretários por uma distância segura e lidera um bate-papo simpático com os jornalistas junto a Bruno Covas, seu fiel escudeiro.
Parecem estar por cima. Mas o cenário das coletivas tucanas é muito distinto daquele vivido pelos paulistanos. Em uma análise mais cuidadosa vemos que Bruno e Dória, a despeito de um discurso de responsabilidade, têm tido na prática uma postura omissa e irresponsável.
Mais uma vez nos deparamos com o principal problema que marca a capital paulista: a desigualdade. A preocupação e os cuidados são seletivos. E as ações de enfrentamento à doença também se dão de maneira desigual. O PSDB segue o seu script de governo voltado à classe média.
Depois de um domingo agitado com aglomerações na Praça do Pôr do Sol, no Alto de Pinheiros, Bruno Covas reagiu prontamente. Mostrando consternação, determinou que a praça fosse coberta por tapumes no dia seguinte.
A postura é bem distinta daquela que ignora as aglomerações existentes nos bairros periféricos da cidade, pelos quais tenho andado diariamente para organizar doações da nossa rede de solidariedade ( @spcontraocoronavirus ). A vida, infelizmente, segue o ritmo normal por ali. Com ainda mais dificuldades. Como alertamos há tempos, do modo como está estruturada, a quarentena não é uma opção viável para grande parte dos paulistanos.
Faltam ações na prática para evitar aglomerações e deslocamentos disseminadores do vírus pelos quatro cantos da cidade. Não se trata aqui de violência e truculência como já cogitou João Dória e como é praxe dos governos paulistas. Mas sim, é necessária fiscalização, precedida por orientação e, antes de mais nada, cuidado às famílias para possibilitar a quarentena.
Com o fechamento das escolas, muitas famílias que dependiam da merenda não têm tido condições de garantir alimentação adequada aos seus filhos. Em resposta, a Prefeitura e o Governo do Estado criaram um auxílio de R$55,00 por meio de um aplicativo para as famílias de estudantes inscritas no Cadastro Único dos Programas Sociais do Governo Federal. Esse método não atinge todos os que necessitam e é insuficiente. É urgente viabilizar a chegada a todas as famílias da contrapartida paga por conta da suspensão do oferecimento da merenda escolar. Há relatos de complicações para acessar o benefício por parte de famílias mais vulneráveis com dificuldades de acesso à internet e aplicativos. Faz-se necessária também a distribuição por parte do governo de botijões de gás, junto a uma política de fiscalização para inibir a venda por preços abusivos. Também é preciso aumentar urgentemente o auxílio aluguel, congelado há 5 anos no valor 400 reais. Para possibilitar o isolamento, deve-se apoio a micro e pequenas empresas, por exemplo com a isenção de IPTU de imóveis que abrigam pequenos comércios. Como tenho visto, muitos botecos e lojas seguem abertos por aí com medo quebrar.
Covas também precisa dar respostas à população em situação de rua, que cresceu durante o seu governo e sofre mais do que nunca, vez que muitos dependem da contribuição de transeuntes ou comércios para subsistência. É necessário reforçar serviços de assistência social e atendimentos de saúde para essa população. Dória precisa determinar a gratuidade no programa Bom Prato, pois se alimentar ao longo do mês no equipamento representa 75 reais, valor praticamente proibitivo para esta população. O que temos visto vai no sentido oposto dessas propostas: Covas fechou recentemente o Atende-2 na Região da Luz e são inúmeros os relatos da repressão policial cotidiana.
Outro ponto alarmante a ser combatido é a subnotificação. O maior culpado pode ser Bolsonaro, mas os governos estaduais e municipais também têm responsabilidade. Os números confirmados de infectados e mortos retratam outra vez mais a desigualdade. Comparando os dados da doença no centro expandido e na periferia, vemos que a proporção de mortos sobre casos da doença é muito maior nos extremos. Na periferia a testagem só chega para os mortos (e olhe lá!).
O cenário é trágico com a pressão sobre o sistema de saúde e hospitais públicos da zona leste como o Tide Setúbal, o Cidade Tiradentes, o Ermelino Matarazzo e o Doutor Inácio Proença de Gouveia já apresentam hoje 100% de ocupação. É urgente providenciar novos hospitais de campanha na periferia. Uma possibilidade na zona leste seria a Arena Corinthians.
Outra irresponsabilidade da dupla tucana é o descaso diante da situação do Hospital Sorocabana, na Lapa, que poderia ser centro de referência para a região na atual situação, com mais de 200 leitos, mas encontra-se há anos fechado, a despeito da árdua luta dos movimentos de saúde e dos moradores do bairro.
Enfim, os problemas ignorados pelo poder público são inúmeros, como a falta de equipamentos de proteção individual enfrentada pelas mais diversas categorias de servidores públicos que continuam a trabalhar por exercerem atividades essenciais. O número de mortos já tem superado os 200 por dia. As mortes triplicaram na cidade em 15 dias. Lembrando que são dados subnotificados.
E o discurso de Dória agora muda: passemos à “reabertura econômica”, já não tão diferente de Bolsonaro. Talvez diante da pressão daqueles a quem de fato ele representa. A classe média que seguiu à risca a quarentena pode estar cansada, a pressão nos hospitais privados de ponta pode estar diminuindo. Quando a explosão toma as periferias parece ser hora de relaxar. Infelizmente, a pandemia nos escancara a realidade: por aqui, as vidas de alguns valem mais do que de outros.
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