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É a Constituição, estúpido!, diz Kakay

É a Constituição, estúpido!, diz Kakay

Autor comenta papel de advogados

Reclama de interpretação binária

Já vem o peso do mundo
com suas fortes sentenças.
Sobre a mentira e a verdade
desabam as mesmas penas.
Apodrecem nas masmorras,
juntas, a culpa e a inocência.

Romanceiro da Inconfidência – Cecília Meireles

Em um país onde o dia a dia parece um filme de realismo fantástico, é necessário ter muito cuidado para nós, advogados, não sermos confundidos com políticos militantes.

Se você é um advogado e tem a consciência, razoável que seja, da gravidade da crise institucional a que o país está submetido, da importância de se dedicar a contribuir para o Estado democrático de Direito, não existe a hipótese de ficar calado com os arbítrios e as arbitrariedades. Não são arbítrios tão somente contra o cidadão que normalmente já sofre a perseguição do Estado autoritário, contra as mulheres, o negro, o sem voz, o periférico, o invisível, o que já exigiria e demandaria uma pronta reação. São atitudes coordenadas e dirigidas a minar, a extinguir as garantias constitucionais e que colocam em permanente xeque a estabilidade democrática.

Quando você tem um grupo coordenado por um ex-juiz ungido à condição de herói nacional e composto por procuradores da República que instrumentalizam o Poder Judiciário e o Ministério Público Federal, com forte apoio midiático, que atenta deliberadamente contra a ordem constitucional ao pretender extinguir direitos e garantias, o único papel que resta ao advogado é fazer o contraponto, a resistência. E como este grupo tinha e tem um projeto de poder, ele se apoderou da narrativa política. Para nós, advogados, exercer a advocacia passou a ser também fazer o enfrentamento político. Não a política partidária, mas a defesa da Constituição.

A advocacia vive e sobrevive dentro do Estado democrático de Direito e dele depende, pois há de exercer seu papel indispensável à administração da Justiça sempre com fiel observância à lei e à Constituição. E não se trata de mera opção profissional! É um dever, que impõe ao advogado grande comprometimento com toda e qualquer luta contra arbitrariedades e violências às liberdades, aos Poderes da República, ao devido processo legal, ao direito de defesa.

Nunca fizemos nenhum ato com cunho partidário, nunca tivemos filiação política. Porém, a defesa das instituições exige um posicionamento que tem um componente político. Da tribuna do Supremo Tribunal Federal, ao fazermos a defesa da presunção de inocência, com amor e com veemência, pudemos perceber que, nesses dias estranhos de hoje, defender a Constituição passou a ser um ato revolucionário. Mas não deveria! Defender a Constituição é a 1ª obrigação do advogado e, claro, do cidadão.

Quem nos vê correr o país em debates, escrever artigos, participar de programas de televisão, dar entrevistas, ocupar as tribunas do Poder Judiciário para denunciar excessos e enfrentar arbitrariedades deve pensar que estamos ali, muitas vezes,  defendendo direitos dos nossos clientes particulares. Seria legítimo se fosse assim, mas não era e não é assim. Podemos nos recorrer de Helena Kolody:

“Perdeu-se em nada,
Caminhou sozinho,
a perseguir um grande
sonho louco.

E a felicidade
era aquele pouco
que desprezou
ao longo do caminho”

Ocupamos a tribuna da defesa da presunção de inocência ao lado de valiosos colegas sem termos nenhum cliente que se beneficiaria com a vitória da tese. Em todos os anos da Lava Jato, nosso escritório teve 3 clientes presos preventivamente e que lograram ser soltos, um deles em 24 horas, outro tido como o maior erro judiciário da operação. E não tivemos nenhum cliente condenado. Nenhum cliente do escritório foi condenado e cumpriu pena, tampouco foi vítima da execução após 2º Grau.

Todas as discussões, todo o enfrentamento do arbítrio que fizemos, que temos feito e continuaremos a fazer, foram em nome dos princípios que norteiam o Estado democrático, a segurança constitucional. Mas que, dada a violência autoritária do grupo que continua a tentar pautar a imprensa, o sentimento das pessoas e do país, inclusive tentando ditar as regras jurídicas dos últimos tempos, vimo-nos obrigados a fazer valer esse dever que alcança todo advogado, então nossa resistência passou a ter ares, infelizmente, de uma política além das defesas que naturalmente nos cabe fazer.

O grupo jurídico que enfeitiçou o país pegou musculatura e ajudou a construir, deu sustentação política a este governo autoritário e genocida que hoje, sem nem sequer ter uma política de enfrentamento à maior crise sanitária de todos os tempos, é o responsável por quase 100.000 mortos. É correto querer que nós advogados ficássemos somente fazendo petições nos autos, ocupando as tribunas em sustentações orais nos casos concretos? É isto que a sociedade quer de um advogado que jurou cumprir e manter a ordem constitucional?

Não é assim que vemos nossa passagem pelo mundo. Preferimos, sempre, fazer-nos acompanhados de Pessoa:

“Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.”

O compromisso que nos fez fazer Direito e especialmente Direito Penal, é o que nos leva a sempre e sempre nos posicionar. A possibilidade real de uma ruptura rondou e ronda o país. A tentativa de, usando vozes de ocasião, passar a subleitura do artigo 142 da Constituição Federal para pregar um “golpe constitucional” foi só uma das arremetidas deste grupo golpista.

E mesmo entre os que defendem a normalidade democrática as divergências afloram. Recentemente o grupo que deu sustentação jurídica e forte apoio ao governo eleito rompeu com seus parceiros. Briga de poder, de facção, pelo poder. E muitos dos que questionam os métodos não republicanos dos 2 grupos –o do ex juiz e o do capitão– passam a perder a noção de que eles continuam a ser uma mesma ideia a ser combatida. É importante lembrar A arte da Guerra, de Sun Tzu:

“Toda guerra se baseia em iludir.
Se seu inimigo for superior, evite-o.
Se estiver zangado,
Irrite-o.
Se forem iguais,
Combata-o.
E se não for,
divida-se em grupos.
Reavalie”

Relevante acompanhar o movimento em torno do procurador-geral da República. Ele resolveu enfrentar exatamente aquilo que parte significativa dos democratas já enfrentava: os evidentes abusos do chamado “grupo de Curitiba”. A força-tarefa de Curitiba, coordenada e dirigida pelo ex-juiz, organizou-se como uma entidade autônoma, uma instituição dentro da instituição, um poder independente, sem nenhum critério de controle e com uma definição política. O projeto de poder ficou evidenciado.

Na verdade, o PGR tenta, com coragem e independência, colocar nos trilhos constitucionais um Ministério Público que, mantendo a mais completa autonomia funcional de cada membro, requisito constitucional para manter forte e independente a instituição, possa, no entanto, ter a necessária transparência que exige o sistema republicano. Especialmente em um órgão tão poderoso. Parece evidente que, quanto mais poder, é necessário mais controle, mais transparência e mais prestação de contas.

Imediatamente os segmentos, inclusive da grande mídia que apoiam o projeto de poder do grupo do ex-juiz, começam grave campanha de desinformação. E esta campanha começa a ganhar eco mesmo entre aqueles que, tradicionalmente, colocam-se contra o abusivo e autoritário poder da República de Curitiba.

Parte da mídia vende –e vários incautos embarcam– um raciocínio primário, maniqueísta, binário: quem apoiar a postura do Dr. Aras de enfrentar os excessos dos membros da operação Lava Jato estará apoiando e dando sustentação ao governo Bolsonaro!! Parece incrível! Por conta de um hipotético “apoio” do PGR ao presidente da República, todos os que criticaram, enfrentaram e se posicionaram contra o grupo da Lava Jato têm a obrigação de apoiar a partir de agora o ex-juiz e seus companheiros!?! Seria trágico se não fosse cômico. Risível. O velho Nelson Rodrigues tinha razão:

“os idiotas perderam a modéstia”.

“Os idiotas vão tomar
conta do mundo;
Não pela capacidade,
mas pela quantidade.
Eles são muitos.”

Cruel um raciocínio tão raso! Como se de repente todos os fortes argumentos que levaram a um número considerável de democratas a fazer questionamentos aos métodos lavajatistas tivessem agora que perdoar os desmandos para impedir a continuação do projeto bolsonarista. Claro que esta tese foi criada e é financiada por aqueles fortes apoiadores que jogam pesado na eleição do ex-juiz e por parte da grande mídia, inclusive.

Mal sabem eles, estes maniqueístas ou mal intencionados, que nós temos que usar nossas forças para que eles se acabem, para que juntos sejam tragados por uma onda de democracia. E que se acabem juntos, abraçados. Mas nunca devemos nos desviar, um segundo sequer, da nossa postura de enfrentar os excessos e a manipulação que foi feita pela instrumentalização do Poder Judiciário e do Ministério Público Federal.

Não nos abalam, muito menos nos comovem, argumentos pueris e quase levianos no sentido de que ao concordarmos com uma política de enfrentamento do grupo transgressor, de alguma maneira, ainda que indireta, estaríamos apoiando este governo genocida. A cada dia sua agonia. É fácil ver que coerência nunca foi o forte destes críticos. Preferem acreditar em teses rasas e que, obviamente, servem ao interesse do grupo que tenta desesperadamente se proteger e chegar ao Poder.

A questão comporta certa simplicidade. Estamos onde sempre estivemos: na defesa da estabilidade democrática e das instituições. Se, neste momento, a defesa da Constituição –que sempre foi nosso norte– pode favorecer tal ou qual propósito, não nos cabe corrigir rumos. Ao contrário, não faremos uma subleitura malandra e oportunista das garantias para chegar a determinado propósito. Estaríamos nos igualando aos métodos da República de Curitiba, que está caindo exatamente pelos seus podres. Mais uma vez a poesia do Caeiro brasileiro, o nosso Manoel de Barros:

“Quem anda no trilho
é trem de ferro,
sou água que corre entre pedras;
liberdade caça jeito.”

Artigo publicado originalmente no Poder 360.

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