Por Sérgio Rodas e Tiago Angelo
Numa conversa de 2015, o então juiz federal Sergio Moro se mostrou irritado após procuradores do Ministério Público Federal recorrerem de uma condenação. O caso envolvia o engenheiro Mário Góes, apontado como operador de propinas em um esquema de corrupção na Petrobras; Pedro Barusco, ex-gerente executivo da estatal; e o empresário Augusto Ribeiro de Mendonça Neto.
As mensagens se tornaram públicas nesta segunda-feira (1º/2), depois que o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, retirou o sigilo da reclamação que deu à defesa do ex-presidente Lula acesso às mensagens apreendidas na chamada “operação spoofing”.
Parte das 49 páginas contendo diálogos já tinha se tornado pública na semana passada, quando o site da revista Veja revelou conversas em que Moro aparece orientando os procuradores do Paraná. Trechos divulgados pelo site The Intercept Brasil também estão no documento.
As mensagens demonstram mais uma vez que Moro orientava a acusação em diversos processos que corriam na 13ª Vara Federal de Curitiba, onde era o titular. A ConJur manteve as abreviações e eventuais erros de escrita nas conversas.
“Olha está um pouco dificil de entender umas coisas. Por que o mpf recorreu das condenacoes dos colaboradores augusto, barusco emario goes na acao penal 5012331-04? O efeito pratico é impedir a execução da pena. E julio camargo tb. E nao da para entender no recurso se querem ou nao alteracao das penas do acordo?”, diz Moro a Deltan Dallagnol, então chefe da autointitulada “força-tarefa da lava jato”. A conversa é de 17 de novembro de 2015.
Dallagnol tenta explicar, mas Moro retruca. “Sinceramente não vi nenhum sentido nos recursos que já que não se pretende a alteração das penas finais dos colaboradores. O mp está recorrendo da fundamentação, sem qualquer efeeito prático. Basta recorrer so das penas dos nao colaboradores a meu ver. Na minha opinião estão provocando confusão.”
O MPF no Paraná respondeu à ConJur que não irá se pronunciar sobre as mensagens.
Adiantando trâmites
Em outro momento, dessa vez em 10 de novembro de 2016, Dallagnol adianta a Moro que irá protocolar uma denúncia contra o ex-presidente Lula e outra contra o ex-governador Sérgio Cabral (MDB-RJ).
“Denúncia do Lula sendo protocolada em breve. Denúncia do Cabral será protocolada amanhã”, diz o procurador. Moro responde com um emoticon de sorriso e diz: “Um bom dia, afinal”. Um dia depois da mensagem Lula foi de fato denunciado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
As conversas também registram um momento em que Moro adianta o trâmite de um processo. “Na segunda acho que vou levantar o sigilo de todos os depoimentos do FB. Nao vieram com sigilo, não vejo facilmente riscos a investigação e já estao vazando mesmo. Devo segurar apenas um que é sobre negócio da argentina e que é novo. Algum problema para vcs?”, pergunta a Dallagnol.
“FB” é Fernando Baiano, lobista apontado pelo MPF como um dos operadores do PMDB no esquema de desvio de recursos da Petrobras.
Intimidade com Moro
O ex-presidente Lula foi condenado pela primeira vez por Sergio Moro em 12 de julho de 2017. Na ocasião, o juiz o sentenciou a nove anos e meio de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do triplex do Guarujá (SP). Em 1º de julho, Deltan demonstrou que já sabia da condenação.
“Mas um ponto a ser considerado..no meu jeito de ver… Com a troca de PGR, soltura de Loures, retorno de Aécio ao Senado, e sentença de Moro contra Lula prestes a sair, já estão usando e vão reforçar imagem que vcs só perseguem o PT… Vide nota oficial do partido divulgada ontem… É uma série de situações perfeitas que caminham para que voltem a acusar vcs de perseguição. Por isso qualquer declaração fora de hora pode gerar mais ruído…”.
Em diversas mensagens os procuradores da República afirmam que iriam se reunir com Sergio Moro ou que o consultaram ou precisavam ouvir a opinião do juiz sobre algum ponto.
Em 2 de junho de 2016, o procurador Roberson Pozzobon diz ao colega Antônio Carlos Welter que, se ele não tiver outras tarefas, “a reunião será às 11:00 com o Moro”. Mais tarde, a procuradora Laura Tessler pede a Andrey Borges de Mendonça:
“CF [Mendonça], vc poderia conversar com o Moro sobre a decisão de suspender o processo com base na assinatura do termo de confidencialidade? Desse jeito, todos vão querer o mesmo benefício…e com isso fica difícil sustentar a manutenção das prisões durante a avaliação da proposta do acordo.” E requer que ele também converse com o juiz sobre o processo envolvendo o escritório de advocacia panamenho Mossack Fonseca. Em seguida, Welter informa que “já falamos com Moro”.
No dia 7 de junho, ao discutirem uma questão envolvendo o ex-presidente da Câmara dos Deputados Henrique Eduardo Alves (MDB-RN), Deltan Dallagnol cita a opinião do juiz federal sobre o caso. “Moro diz que PF não deve fazer mas isso pode ter limite pq ele acha que a melhor solução é fazermos o acordo”.
O procurador Orlando Martello, em outro trecho, repassa ao grupo mensagens sobre o uso de provas contra o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (MDB-RJ). Nelas, integrantes do MPF não identificados comentam que irão protocolar ação de improbidade administrativa contra Cunha. O processo é baseado em documentos recebidos da Suíça. Surge uma dúvida quanto à necessidade de compartilhamento de documentos, e eles apontam que Moro entende que a medida não é necessária.
“Pellela, Precisa falar. É sobre o Cunha. Estamos com uma ação de improbidade pronta para protocolar na segunda-feira. A base da ação são os DOCs recebidos da Suíça (via stf). Não há compartilhamento para o cível. Entendemos q não precisa compartilhamento. São documentos em q não há restrição de uso. Tb são DOCs q não podem ser produzidos exclusivamente para fins penais, q demandaria o compartilhamento para o cível. Este é o nosso entendimento aqui. Conversei agora com vlad, q estava com Daniel e Danilo. Eles tb não vêm problema, embora Danilo/Daniel pediria o compartilhamento por cautela. Pedimos ao moro, mas ele não quer compartilhar pq ele acha q o stf deveria fazê-lo. Pediu q pedíssemos ao stf.”
Mendonça, no início de julho de 2016, disse que estava em São Paulo para falar sobre delações premiadas e acordos de leniência, “bem como ver as questões sobre as novas operações”. “Nada muito especial, mas cumprindo uma rotina de manter o russo [Sergio Moro] informado, bem como atento aos humores dele.”
O procurador conta que estava tentando voltar a Curitiba “para a reunião com o russo”, mas o avião retornou para a capital paulista. “Não sei que horas vou conseguir retornar. Ou vocês tratam dos assuntos com o russo ou avisam que a reunião foi cancelada.” Dallagnol então afirma que irá avisar o juiz e relata que ele também tem algo a falar com os membros do MPF.
O chefe da força-tarefa da “lava jato” pergunta a Pozzobon, em 16 de agosto de 2016, se “o pedido do Pace do [ex-ministro da Fazenda e da Casa Civil Antônio] Palocci já foi protocolado”. Isso “para que o russo possa analisar se usa ou não”.
Antes disso, Dallagnol já contava aos colegas que “Russo vai sair fim do ano mesmo, contando que já tenhamos processado o 9 [Lula] e o Cunha. Pode reavaliar conforme venha o Renan [Calheiros, ex-presidente do Senado] ou a depender da Ode [Brecht, empreiteira]. Acho difícil segurar ele”. Moro ainda atuou mais de dois anos na 13ª Vara Federal de Curitiba, só deixando a magistratura ao assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública do governo Jair Bolsonaro.
“Cavalo de Tróia”
Já em 26 de junho, Dallagnol, ao discutir o repasse de valores pagos em acordos de leniência para a força-tarefa da “lava jato”, sugere a Mendonça uma forma de disfarçar a entrada dos recursos no MPF.
“Vc precisa se inteirar a respeito do que falta para que o dinheiro possa entrar no MPF. Parece que havia uma possibilidade de dar certo sem nada, e outra que seria encaminhar a criação de uma rubrica contábil dentro de algo orçamentário, silenciosamente, como cavalo de tróia que permitiria depois o crédito. Tem que articular a estratégia com a SG. Se Vc não for resolver, precisamos de alguém que se voluntarie para dar conta disso e fazer um report de status numa próxima reunião.”
Contudo, Deltan ressalta a importância de “sondar o Moro na próxima reunião para ver se e como ele ficaria confortável em destinar”. O chefe da força-tarefa também aponta caminhos para convencer a Petrobras a concordar com a proposta.
“Talvez dependamos de fazer um acordo com a vítima, a Petrobras. Vc [Mendonça] podia marcar reunião com Petro pra isso tb. A justificativa é que sem investigação e sistemas etc nunca ela seria ressarcida. 10% é algo razoável a perder para ganhar muito mais. Conseguindo fazer a Petro concordar, cai o argumento do Teori. O que está faltando nisso é alguém assumir e priorizar isso. Ate a decisão do Teori, não tínhamos pressa. Agora, precisamos priorizar isso enquanto temos alguma vantagem para negociar com Petrobras.
Mendonça diz não concordar com a abordagem. “Não vejo como resolver isso com a vítima. Certamente iria aparecer na imprensa”, diz, ao defender uma regulamentação da destinação do dinheiro de acordos de leniência.
Deltan Dallagnol sustenta que o problema não é regulamentação. “Não adianta o que regulamentar, o fato é que dinheiro lavado saiu dos cofres de vítimas e enquanto nao receberem tudo a Petrobras, alavancada por Teori, conseguirá levar. É como se alguém roubasse minha bicicleta e lavasse o dinheiro. Não há santo no mundo que dissesse que o dinheiro não tinha que vir para me ressarcir a bicicleta roubada, ainda que a lavagem tenha lesado outros bens jcos”.
Não convencido, Mendonça declara que não fará uma reunião com a Petrobras sobre o tema. E lembra que, antes de oferecer um caminho ao juiz, os procuradores precisam chegar a uma conclusão sobre o assunto.
Em março de 2019, foi divulgado acordo assinado pela Petrobras e pelos procuradores da “lava jato” prevendo a criação de um fundo administrado pelo MPF. A intenção era investir no que o consórcio de Curitiba chama de “projetos de combate à corrupção”. O acordo previa que R$ 2,5 bilhões da Petrobras seriam depositados em uma conta vinculada à 13ª Vara Federal de Curitiba e seriam geridos por uma fundação controlada pelo MPF, embora eles aleguem que iriam apenas participar do fundo.
Outra cláusula absurda do acordo previa que a “lava jato” se tornasse um canal para o governo dos Estados Unidos ter acesso a informações estratégicas de negócios da Petrobras, como cláusula para que o dinheiro não ficasse nos EUA, mas viesse para o fundo de Deltan Dallagnol. A própria Procuradoria-Geral da República recorreu ao Supremo Tribunal Federal pedindo que a corte declarasse a nulidade do acordo, no mesmo dia em que o MPF anunciou a suspensão da criação do fundo. Em setembro, ficou decidido que o dinheiro que seria usado na criação do fundo iria para a Amazônia (que sofreu com aumento de queimadas) e para a educação. O processo no Supremo ainda corre, sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes.
“Filigrana jurídica”
Em 16 de março de 2016, Sergio Moro divulgou conversas telefônicas de Lula, recém-empossado ministro da Casa Civil, com a então presidente Dilma Rousseff. Na semana seguinte, o ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavaski – que morreu em acidente aéreo em 2017 – afirmou que o fim do sigilo dos grampos foi ilegal e inconstitucional. Primeiro porque foi o resultado de uma decisão de primeiro grau a respeito de fatos envolvendo réus com prerrogativa de foro no Supremo. Depois porque, ao divulgar o conteúdo dos grampos, Moro violou o direito constitucional à garantia de sigilo dos envolvidos nas conversas.
No dia da divulgação dos áudios, os procuradores discutiram se o ato de Moro era legal ou não. Afinal, o diálogo entre Lula e Dilma foi captado após o juiz federal ter enviado comunicados às operadoras de telecomunicações pedindo a suspensão dos grampos. O procurador Januário Paulo classifica a medida como “filigrana”. “Quem decide o que vai para os autos e o juiz. Se ele podia interromper também pode mandar juntar aos autos e validar”.
Andrey Mendonça discorda. “Januario, desculpe, eu nao vejo assim. Isso esta longe de ser filigrama na minha visão. Se ele suspendeu a interc[eptação], juridicamente nada vale dps. Eu espero q vcs estejam certos, mas nao eh tao tranquilo assim”.
Deltan Dallagol então intervém: “Andrey No mundo jurídico concordo com Vc, é relevante. Mas a questão jurídica é filigrana dentro do contexto maior que é político”. “Concordo Deltan. Isso tera q ser enfrentado muito em breve no mundo juridico. O estrago porem esta feito. E mto bem feito”, responde Mendonça.
Dois dias depois, em 18 de março, o ministro do STF Gilmar Mendes cassou a nomeação de Lula como chefe da Casa Civil. No embalo da decisão, os procuradores discutem se é hora de pedir a prisão de Lula e apresentar denúncia contra ele. Para Roberson Pozzobon, não faz diferença se a captação da conversa foi ilegal ou não. Afinal, a própria Dilma admitiu o diálogo.
Dallagnol sugere “retomar a tática das múltiplas frentes para aumentar o peso da peça”. Orlando Martello opina que a prisão de Lula em primeira instância seria “loucura”, salvo se aparecesse motivo novo.
O procurador Júlio Noronha, por sua vez, cita que alguns integrantes do MPF entendem que não era o momento de pedir a prisão preventiva do ex-presidente, sob risco de se criar um “mártir”. Citando conversa com membros da “lava jato” em Brasília, Dallagnol destaca a idéia de os procuradores da capital federal pedirem, simultaneamente aos de Curitiba, a detenção de Lula, de forma a “ficar bonito”.
De qualquer forma, Pozzobon urge os colegas a não apressarem a apresentação da denúncia contra Lula, “ainda mais sem combinar com o PGR [Rodrigo Janot] e o Russo”.
Formal ou informal?
Em outro trecho, Moro indica como ocorre a cooperação internacional entre a “lava jato” e autoridades dos Estados Unidos. “Vc viu a decisão do evento 16 no processo 5048739-91? A diligencia merece um contato direto com as autoridades do US. Colocar US attorneys [procuradores norte-americanos] para trabalhar pois até agora niente [nada] rs”, diz o ex-juiz.
“Hoje falei com eles sobre as contas lá da Ode [Odebrecht] pra ver se fazem algo rs”, responde Dallagnol. O processo citado aparece na “lava jato” como a quebra de sigilo fiscal do engenheiro e depois delator Zwi Skornicki. A conversa ocorreu em novembro de 2015.
O Decreto 3.810/01, que internaliza o Acordo de Assistência Judiciária em Material Penal entre os governos do Brasil e dos EUA, prevê que que a cooperação internacional passe pelas autoridades centrais designadas pelos dois países — no caso do Brasil, o Ministério da Justiça; no caso dos EUA, o Departamento de Justiça (DoJ) — e que todos os documentos recebidos possuam um comprovante de entrega.
As declarações de Moro e Dallagnol reforçam que havia cooperação internacional com os EUA e que, portanto, os procuradores atuaram de forma ilegal, passando por cima do Ministério da Justiça.
Medo de trocas
A declaração do então ministro da Justiça, Eugênio Aragão, de que afastaria os policiais federais responsáveis pelas investigações da operação “lava jato” se houvesse qualquer indício de vazamento ilegal de informações foi discutida pelos procuradores em 19 de março de 2016. Para tentar evitar a medida, Dallagnol sugere agir judicialmente.
“Caros, o MJ vai mudar a equipe da PF, mais cedo ou mais tarde. Sugiro minutarmos uma medida judicial para manter a equipe. Podemos distribuir para o Moro, dentro do poder geral de cautela, e na manga fica a possibilidade de oferecê-la na área cível tambem. Quem pode minutar isso ASAP?”.
Na conversa, Júlio Noronha, citando “aquela história do telefone do CONJUR” compartilha nota do colunista Lauro Jardim, do jornal O Globo, afirmando que o telefone da empresa de eventos de Lula estava em nome de Roberto Teixeira, seu advogado.
A ConJur revelou que Sergio Moro não quebrou o sigilo telefônico apenas de Roberto Teixeira, mas também do telefone central da sede do escritório dele, o Teixeira, Martins e Advogados, que fica em São Paulo. Com isso, conversas de todos os 25 advogados da banca com pelo menos 300 clientes foram grampeadas, além de telefonemas de empregados e estagiários da banca.
A inviolabilidade da comunicação entre advogado e cliente está prevista no artigo 7º do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994). Segundo a norma, é um direito do advogado “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.
Em ofício ao STF, Moro afirmou que só soube do grampo no escritório após notícia da ConJur. Após ser repreendido pelo ministro Teori Zavascki, o então juiz prometeu destruir os áudios. Só que isso não foi feito na época, disse a sócia da banca Valeska Teixeira Zanin Martins.
“Fomos surpreendidos por uma decisão em que Moro disponibilizou todos os mais de 400 áudios nossos que foram gravados. Chegando lá, havia um ‘organograma da defesa’, desenhando a estratégia dos advogados do Lula. Ele foi baseado em conversas dos integrantes do escritório com outros advogados, como o Nilo Batista. Não há nenhum precedente de uma atitude tão violenta, tão antidemocrática como essa em países democráticos”, contou a defensora de Lula, lembrando que as gravações só foram destruídas há pouco.
Rcl 43.007
Publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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