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Engana-se que ‘ninguém tem nada a ver com isso’ se eu me exponho a risco, alerta Freiria

Por Thiago Turbay Freiria¹ e Catarina Buzzi²

Direito penal permite culpabilidade Covid-19 pôs tema na pauta do dia

Está em curso no país uma ação natural e normativa³, o distanciamento obrigatório e o isolamento social, visando o enfrentamento da covid-19, que nos convocam para investigação de um relevante tema da seara penal: a causalidade[4].

O isolamento social e o distanciamento são responsáveis por impedir o contágio e, consequentemente, o óbito de pacientes[5] ou a disseminação descontrolada[6] da doença contagiosa[7] que provoca a morte de uma fatia relevante da população ou, simplesmente, agravos na saúde. Essa é a conclusão das agências de saúde[8] e sanitárias em todo o mundo. O descumprimento da ordem de isolamento facilita a ocorrência do resultado morte[9], o que conduz à invariável percepção de que quebrar o protocolo de isolamento integra o curso causal de ação que poderá culminar em morte ou lesão à saúde, ainda que essa ação integre um feixe de causas relacionais.

Para localizar o problema dentro de um quadrante teórico é necessário visitar, ainda que superficialmente, a teoria da causalidade. Vale dizer, o conector da ação consciente[10] por meio de uma relação condicional lógica[11] com o resultado previsto em uma norma penal e que contraria o direito: o injusto penal. O resumo: a conduta[12] é a causa do resultado.

A causalidade, majoritariamente, é reconhecida pela fórmula da condicio sine qua non, que se traduz a partir da asserção: uma ação é causal para um resultado quando este não ocorrer se a subtrairmos mentalmente, considerando a exata configuração do resultado. Há, todavia, duas expressões teóricas subjacentes: a condição e a equivalência. A teoria da condição requer uma ação que não pode ser subtraída mentalmente para ser tida como causa, o que supõe a possibilidade de interrupção do curso causal, a sua substituição interruptiva ou aquela ação que reforça ou acelera a ocorrência do resultado, por exemplo: o “tiro de misericórdia”[13], que se conecta à ação preestabelecida.

Exemplo, um caso hipotético em que o indivíduo “1” que sabe ou tem informações suficientes para crer que esteja contaminado com a covid-19 não cumpre o isolamento e entra em contato com a pessoa “2” portadora de comorbidades preexistentes de saúde. Se, posteriormente, a pessoa morre em decorrência do agravamento da doença, o primeiro indivíduo “1” poderia ser responsabilizado por aquela morte[14].

A dificuldade teórica, todavia, está nas variações dos eventos causais. Se o indivíduo “2” já está doente em estado grave, sem chance de reversão do quadro morte? Haveria causação do resultado ao indivíduo “1”, que poderia transmitir a doença, mas que não foi relevante para o resultado morte? E pode-se dizer que o mesmo ocorre nos casos em que a covid-19 por si só não é a única causa a dar ensejo à morte, sendo necessária a cumulação de variantes, como as doenças preexistentes?

Se a conduta do individuo “1” não puder ser dissociada mentalmente do resultado morte, haverá punição, dado o curso causal estabelecido. Todavia, se a conduta de “1” exige circunstância necessária para provocar o resultado, sendo sua conduta dissociada naturalmente do resultado, não poderia haver uma punição por homicídio consumado de “1”, todavia, pode haver responsabilização por lesão ou tentativa.

Merece destaque a asserção de que uma sequência de eventos que não aumentam o risco ao bem jurídico tutelado, considerando sua configuração concreta, apresenta uma “causa reserva insignificante[15]”.

Já a teoria da equivalência prescreve que todas as causas têm o mesmo valor, até aqueles eventos mais distantes, não prevendo, portanto, circunstâncias empíricas em que há causas cumulativas, concorrentes ou suplementares, e as causalidades múltiplas.

Há causas, todavia, que não exigem interação com outras para resultar na ocorrência do comando proibitivo contido na norma, a qual se relaciona uma sanção. Ou seja, se for possível imputar ao indivíduo “1” uma conduta relacional condicionante lógica e autônoma, mesmo que haja empiricamente outras causas adjacentes, por exemplo, a comorbidade preexistente, é possível responsabilizá-lo pela morte.

Vejamos o seguinte exemplo: um indivíduo contaminado usa em seu tratamento um medicamento que não é comprovadamente eficaz na sua cura, mas mesmo assim se recupera da doença. Crendo que foi o medicamento o responsável pela cura, recomenda-o como tratamento para um 2º indivíduo, que ao usá-lo, tem uma reação que resulta em morte ou lesão grave. Nesse caso, o indivíduo “1” deverá ser responsabilizado.

É possível, ainda, falar sobre a teoria da evitabilidade. Vale dizer, nos casos em que há conduta ou a omissão de arrependimento ou com fins a evitar, no curso causal, o resultado, sabendo-se seguramente que poderia fazê-lo. Todavia, ela não foi capaz de evitar a lesão ao bem jurídico, ou alterando uma posição inicial por meio do incremento de risco a bem jurídico inicialmente reversível. Não há uma ação impeditiva. Ainda, a ação reforça o nexo causal entre o comportamento e o resultado que tem repercussão penal, quando poderia interrompê-lo.

De outro lado, há a teoria da diminuição do risco, que se relaciona a uma ação de salvamento. Não havendo uma ação de salvamento eficaz, portanto, poderia ser responsabilizado o autor da conduta proibida, que agiu contrariando uma norma de proteção. A explicação é que há causação do resultado quando há ação que não salva a vítima, havendo seguramente condição de salvar. Por exemplo, se posso evitar o resultado morte, ou diminui-lo, e não fiz, posso ser responsabilizado, no plano hipotético. Na nossa classe de exemplos, se eu poderia e deveria –obedecendo à ordem de isolamento– evitar o contágio e posteriormente o resultado morte e não o fiz, excluindo-se, óbvio, as causas de justificação da conduta, por exemplo, caso eu tenha precisado ir ao médico.

Sem pretender esgotar o tema, e fiel à brevidade desses comentários, recorro, restritivamente, a mais uma reflexão: a interrupção dos processos causais salvadores. Trata-se de “o sujeito pratica uma ação quando interfere fisicamente com o curso expectável (sic) dos acontecimentos, restabelecendo um perigo que estava na iminência de ser removido por terceiro[16]”. É necessário, porém, que haja uma probabilidade segura acerca da capacidade salvadora da conduta. O raciocínio pode ser exportado aos casos em que a conduta de terceiro prejudique a autoproteção realizada pela vítima, ou aqueles casos em que se “impede o decurso de acontecimentos fortuitos potencialmente suficientes para remover o perigo”.

Por exemplo, constitui conduta hipoteticamente punível aquela que produz a exposição de pessoas ao contágio da covid-19 com resultado morte ou outros delitos, ainda, aquela que evita dar ferramentas necessárias e obrigatórias de proteção, que resultariam na diminuição do risco de morte ou que a evitariam o resultado, ou que estimulam ações que visam interromper ou dificultar a autoproteção do cidadão que possui comorbidade e está intensamente exposto ao risco de morte, seguindo a ordem de exemplos: quem recomenda não fazer o isolamento social.

As reflexões lançadas, por óbvio, não pretendem lançar acusações, quiçá, soluções políticas, mas apresentar lições doutrinárias que enveredam as teorias do direito penal e que estão na ordem do dia. A conclusão é de que se podem investigar ações causais nas mais diversas condições da vida natural, todavia, sem abrir mão da cientificidade do tema e do seu aperfeiçoamento técnico.


[1] Advogado criminalista, mestrando em Direito pela Universidade de Brasília-UnB, especialista em Razonamiento Probatorio pela Universitat de Girona, pesquisador do Grupo de Pesquisa Sistemas Penais Econômicos do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

[2] Estudante de Direito.

[3] Por exemplo, o decreto n. 40.509 de 11 de março de 2020, do Governo do Distrito Federal.

[4] Deixaremos, dado a delimitação do objeto de estudo, de tratar do dolo.

[5] Estima-se que a Covid-19 tenha um número básico de reprodução estimado em 2,74, o que significa que para cada caso, espera-se que ocorram, em média, 2 a 3 casos secundários. Liu Y, Gayle AA, Wilder-Smith A, Rocklöv J. The reproductive number of Covid-19 is higher comparade to SARS coronavirus. J. Travel Med. 2020, feb: 1-6.

[6] Há no Código Penal o crime, art. 267, de “causar epidemia, mediante propagação de germes patogênicos”.

[7] O art. 268 do Código Penal Brasileiro estipula pena de 1 mês a 1 ano, cumulada a multa, a conduta de infringir determinação de poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa.

[8] Disponível em:

https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2020/fevereiro/13/plano-contingencia-coronavirus-COVID19.pdf. Acessado em 24/03/2020.

[9] A reflexão está direcionada a morte, todavia, não se desconsidera a realização dos crimes do art. 267 e 268 do Código Penal.

[10] Não é objeto de investigação deduzir os aspectos volitivos e cognoscitivos da ação.

[11] Greco, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Trad. Ronan Rocha. 1 ed. São Paulo: Marcial Pons: 2018, pp. 21.

[12][12] Nesse breve apanhado não se apresentará a necessária investigação acerca da causalidade na omissão própria ou imprópria. Para aqueles que desejam aprofundar o tema, recomendo a leitura da obra do professor Luís Greco, (Greco, 2018).  

[13] Hilgendorf, Eric. Direito Penal: parte geral / Eric Hilgendor, Brian Valerius : Trad. Orlandino Gleizer. 1. Ed. – São Paulo: Marcial Pons: 2019, pp. 92.

[14] Ele responderá pelo contágio ou por causar epidemia, vale dizer, provocar uma disseminação descontrolada em um período de tempo e espaço.

[15] Idem 8, pp. 93.

[16] Mendes, Paulo de Sousa. Causalidade complexa e prova penal. 1 ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019, pp. 253.

Artigo publicado originalmente no Poder 360.

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