Terá início nesta terça (6) o julgamento da chapa Dilma-Temer, acusada de abusar do poder econômico e político nas eleições presidenciais de 2014. Trata-se, sem dúvida, do processo mais importante da história da Justiça Eleitoral. É natural que, por isso, surjam inúmeras análises sobre os rumos que o caso tomará no TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Tão fundamental quanto, porém, é voltar os olhares para o contexto inicial da ação e perceber o que se deve aprender com esse episódio traumático.
Dilma Rousseff (PT) venceu as eleições de 2014 por margem pequena. Para se reeleger, sua propaganda usou tom acima do usual, o que gerou ressentimentos, especialmente dos concorrentes Aécio Neves (PSDB) e Marina Silva (Rede). Isso contaminou a capacidade de diálogo entre importantes atores da política nacional.
O ajuizamento da ação no TSE foi decorrência desse quadro, como ficou claro em recente gravação de conversa telefônica de Neves. O tucano reconhece que, de maneira irresponsável, teria iniciado o processo apenas como forma de revide (para “encher o saco”, como ele disse).
Quem analisa as petições iniciais desse caso verifica que foram apresentados ao TSE episódios de pouca importância ou fatos que, a despeito da gravidade, não guardavam conexão com a disputa de 2014 (as primeiras referências feitas pelo PSDB com relação à Lava Jato mencionavam propinas pagas em 2012 e 2013).
Diante da fragilidade e da inviabilidade da ação, a ministra Maria Thereza de Assis Moura, primeira relatora do caso no TSE, extinguiu a causa sem exame de mérito –isto é, sem nem apreciar se eram verdadeiros os episódios descritos. O plenário da corte, contudo, reformou essa decisão determinou que o processo seguisse em frente, admitindo ainda a inserção de novos fatos e a produção de outras provas.
Ocorre que o direito eleitoral é marcado pela preclusão e pela celeridade, o que justifica a existência de prazos rígidos. A ação constitucional que trata do abuso de poder econômico deve ser ajuizada até no máximo 15 dias após a diplomação dos eleitos. Passado esse período, sobretudo após a manifestação das defesas, não deveria ser possível acrescentar fatos novos e, como consequência lógica, tampouco deveriam ser aceitas provas não indicadas no pedido inicial.
EMENDAS
O TSE, no entanto, autorizou que a ação contra a chapa Dilma-Temer fosse alvo de reiteradas emendas, gerando um processo mutante que ganhava novas feições a cada nova delação premiada que se tornava pública. Ao fazer esse movimento, a corte eleitoral se impôs alguns desafios.
O primeiro seria reconhecer o abuso de poder econômico da chapa Dilma-Temer quando as provas indicam que os autores da ação incorreram em práticas equivalentes. A repressão ao abuso de poder nas eleições decorre da necessidade de preservar a igualdade de chances entre os competidores e garantir, com isso, a lisura e a normalidade da disputa.
O próprio Aécio Neves, em conversa com o senador Zezé Perrella (PMDB-MG), reconheceu que os métodos usuais de fazer política no país pelo caixa dois (o que parece encontrar eco em colaborações premiadas segundo as quais sua campanha presidencial de 2014 também foi contaminada com dinheiro não contabilizado, de origem duvidosa e destinado à compra de apoio de outras siglas).
Se Aécio incorreu nos mesmos pecados e se a razão de ser do direito eleitoral é a preservação da igualdade de condições, o TSE teria dificuldade de penalizar a chapa Dilma-Temer e de deixar imunes outros tantos políticos que se valeram de condutas equivalentes.
O outro desafio que o TSE se impôs diz respeito à cindibilidade da chapa, que é apontada por alguns como a solução para preservar o mandato do presidente Michel Temer (PMDB) em nome da estabilidade econômica. Decisão com esse conteúdo, entretanto, soaria casuística; a jurisprudência do tribunal é consolidada no sentido de que, uma vez afetada a igualdade na disputa, a cassação da chapa é medida de rigor.
O artigo 91 do Código Eleitoral contempla a indivisibilidade da chapa majoritária, e o artigo 22, XIV, da lei complementar nº 64/90 indica que a consequência do abuso de poder é a cassação do registro ou diploma do titular e de seu vice. A discussão sobre a responsabilidade pelos atos torna-se relevante somente para aplicar ou não a pena de inelegibilidade.
TRIBUNAL DE CORREÇÃO
Por mais traumática que seja a situação, ela pode trazer lições extremamente valiosas para o Brasil. A mais evidente delas é que a Justiça Eleitoral, em questões relativas a abuso de poder, deve atuar para corrigir situações efetivamente graves. Não pode ser apenas um mecanismo para resolver crises políticas nem pode optar por soluções aparentemente mais fáceis ou agradáveis a determinados segmentos da sociedade, mas geradoras de insegurança jurídica.
Deve ser severo o exame inicial sobre a viabilidade de uma ação eleitoral que possa afetar um mandato eletivo, já que seu relaxamento conduz, inexoravelmente, à excessiva judicialização dos pleitos, o que traz consigo os famigerados terceiros turnos e a instabilidade institucional danosa típica desses contextos.
A segunda das lições é a urgência de o Brasil fazer um debate sobre o financiamento das campanhas. O uso generalizado do caixa dois é uma das descobertas mais evidentes da Operação Lava Jato, que já vem produzindo uma mudança geracional na política (enquanto velhos nomes são inseridos nos escândalos, surgem nomes novos que se apresentam como avessos à política). Contudo, sem uma discussão verdadeira sobre o custo das eleições, será questão de poucos anos até que esses políticos sem cabelo branco se vejam afetados pelos velhos problemas.
Por fim, a lição de maior valor é que não se pode e não se deve perder, jamais, a capacidade de interlocução na política. O tom agressivo da última campanha presidencial minou o diálogo entre importantes atores nacionais, gerando como consequência o início irresponsável de uma empreitada tendente a cassar a chapa vencedora por meio de um processo levado a reboque pelas revelações da Lava Jato sem a devida limitação técnica que caberia à Justiça Eleitoral fazer.
Artigo publicado originalmente em Folha de S. Paulo.
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