Por Flávio Ferreira
Sem cotas, novas estratégias ainda precisam avançar mais para conduzir negros à cúpula das bancas jurídicas
O curso de direito da Faculdade Zumbi dos Palmares não é considerado de elite no mundo do ensino jurídico, mas suas aulas levaram a refugiada ugandense Price Winfred Natutaaya, 39, a conseguir um emprego de assistente jurídica na área de direito do consumidor em um grande escritório de São Paulo.
Ameaçada de morte em Uganda pelo ativismo contra a mutilação genital de mulheres, Price chegou ao Brasil em 2013.
Formada em economia, seus primeiros trabalhos no país foram como faxineira. Ela começou a cursar direito na Zumbi dos Palmares e logo conseguiu um estágio na Defensoria Pública de São Paulo.
“No escritório me sinto prestigiada. Estou aprendendo muitas coisas na prática sobre direito do consumidor. A teoria que aprendemos na academia não é suficiente. Aqui vejo como a vida anda”, diz Price.
A contratação da ugandense faz parte de uma estratégia de eliminar requisitos elitistas de formação para contratar profissionais, deixando de lado também a tradicional cota numérica, em um novo método que está em implementação por grandes escritórios para aumentar a diversidade racial em seus quadros.
Exigências como ter estudado em faculdades consideradas de primeira linha, como USP, PUC, Mackenzie e FGV, e ter fluência em inglês foram abolidas como critérios eliminatórios e abriram caminho para reverter situações de até completa ausência de negros nas bancas jurídicas.
Esses programas de diversidade, porém, ainda não permitiram a chegada dos negros ao grupo dos sócios das cúpulas das bancas jurídicas.
Algumas das firmas que implantaram a estratégia antielitista fazem parte do grupo intitulado Aliança Jurídica pela Equidade Racial, composto por dez grandes escritórios que desde o fim de 2017 realizam atividades para promover a inclusão racial internamente.
O ponto de partida dos trabalhos foi uma pesquisa do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades) que mostrou que em 2018 o percentual de negros entre os advogados dessas bancas era de menos de 1%.
A banca Tozzini Freire Advogados foi uma das que adotaram a estratégia de tirar barreiras elitistas de suas fases de recrutamento.
Em 2018 não havia profissionais negros em seu time jurídico, mas após as mudanças nos processos seletivos passou a contar com 50 advogados e 28 estagiários negros em 2020. No total, as unidades da firma contam com 682 pessoas na equipe jurídica.
Kenneth Antunes Ferreira, sócio do escritório, diz que os melhores não são necessariamente aqueles que estão nas melhores faculdades e que já falam várias línguas.
“Há pessoas muito boas que não tiveram a mesma oportunidade e que, quando dada oportunidade a elas, elas mostram talentos, competem de forma igual e se mostram até melhores do que aqueles que a gente contratava.”
Segundo Ferreira, o programa de diversidade da firma levou a uma compreensão sobre a condição de renda familiar que está associada ao problema da falta de inclusão de negros no meio jurídico.
“Quem consegue estar em uma faculdade de primeira linha e ser fluente em inglês com 19 anos? Alguém que a família conseguiu investir muito dinheiro. Vimos que havia essa questão social envolvida”, diz.
O programa interno também está permitindo um contato mais próximo dos advogados com temas do cotidiano dos novos contratados, como, por exemplo, as vantagens do trabalho em home office.
“No tema da pandemia, quando algumas pessoas falaram que estavam até sentindo falta do trânsito, uma das meninas do programa disse: ‘Bom, eu ganho quatro horas no dia’.”
Isso porque ela saía de Guarulhos, ia para o Mackenzie, daí ia para o escritório e, às vezes, também ia para a aula de inglês, tudo com transporte público. “São realidades diferentes”, afirma o advogado.
Após o início do trabalho para promover a diversidade no escritório, Ferreira passou a se declarar pardo de pele clara.
“Esse é um ponto sensível para mim. Nunca fui muito militante da causa negra. Sou pardo, pele clara, e é aquela coisa, sempre é um meio termo: muito negro para ser branco, muito branco para ser negro. Passei a ser sócio do escritório sem ter essa discussão. Para me sentir à vontade para me autodeclarar pardo, foi e tem sido um grande aprendizado”, diz.
Em outro escritório da Aliança pela Equidade, o Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr. e Quiroga Advogados, também ocorreu a flexibilização dos critérios elitistas, mas seus recrutamentos de estudantes foram dirigidos exclusivamente a negros, como foi feito recentemente pela rede de lojas Magazine Luiza (Magalu), levantando grande polêmica.
Roberto Quiroga Mosquera, sócio da banca jurídica, diz que uma dificuldade inicial a ser superada foi a de mostrar a candidatos pretos e pardos que o escritório havia criado um ambiente de inclusão.
“Eles não achavam possível trabalhar em um escritório como esse. Falavam: ‘Esse não é um lugar para mim, é um escritório de brancos’. Na medida em que você mostra que isso é possível, que não existe preconceito, isso possibilita entenderem que ali é um lugar em que eles podem estar, e que pode ser deles.”
O número de negros no corpo jurídico da banca, incluindo advogados e estagiários, saltou de 26 para 91 desde 2018. As unidades da firma reúnem ao todo 771 profissionais do direito.
Porém, a exemplo dos outros escritórios, o programa ainda não levou à diversidade racial no grupo de sócios do topo do comando da banca.
Mosquera afirma que “isso vai levar um tempo. Temos também uma política arrojada de contratação de advogados já formados, para que com o tempo a gente possa chegar a ter negros na cúpula do escritório, sejam homens, sejam mulheres”.
Sócia da consultoria em equidade Gema, a advogada Thayná Yaredy diz que a eliminação dos critérios elitistas “é um ponto de partida de uma postura de diversidade muito importante dos escritórios. Sem a inclusão não conseguimos nem chegar ao debate sobre a equidade, que é a manutenção de um espaço saudável para essas pessoas”.
Segundo Thayná, o efetivo desenvolvimento dessa segunda etapa após a porta de entrada é fundamental para resolver o problema da falta de negros no topo das firmas.
Para a consultora, é preciso promover uma “mudança cultural dessas organizações para que elas consigam ter um comportamento diferente, que se preocupem em proteger as pessoas diversas dentro desses espaços que já são elitizados, que já tinham essa cultura de aglutinar determinadas pessoas dentro do lugar de trabalho”.
Essa expectativa de chegar a postos mais altos no escritório já faz parte dos objetivos da ugandense Price.
“Sinto que se eu for melhorando meu trabalho e ir ganhando experiência posso alcançar posições melhores na organização. Penso que posso chegar a um nível profissional que nunca conseguiria em Uganda”, conta a assistente jurídica.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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