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Eu escrevo o que quero

Eu escrevo o que quero

Sou um homem negro, estudioso das relações raciais, mas não especialista em racismo

O título deste meu primeiro texto para a Folha é uma das traduções possíveis do livro “I Write What I Like” que reúne artigos do jornalista e ativista político Steve Biko escritos entre 1969 e 1972.

Biko foi das mais proeminentes vozes da luta contra o regime do apartheid que formalmente vigorou na África do Sul entre os anos de 1948 a 1994. Biko foi preso, torturado e brutalmente assassinado pelo governo sul-africano, mas sua trajetória de vida e seus escritos serviram de inspiração não apenas para a resistência contra o apartheid, mas para a luta anticolonial e antirracista em todo o mundo.

Na coletânea de textos, Biko nos apresenta a definição de “consciência negra”. Basicamente, a consciência negra é uma nova forma de inscrição da condição de ser negro no mundo. “É uma atitude da mente e um modo de vida”, diz.

 
Aqueles que já me acompanhavam antes de minha chegada aqui na Folha sabem que um dos meus objetos de estudo são as relações raciais.

A questão racial é um tema absolutamente central no debate politico, como os últimos acontecimentos de relevo mundial têm demonstrado.

Por isso, tratar do racismo é pressuposto de uma análise científica da realidade política. Os desdobramentos da crise econômica global, a pandemia, os protestos mundiais em decorrência do assassinato de George Floyd e a contestação cada vez maior dos cânones da democracia liberal têm revelado a força e a importância do debate racial em uma dimensão ética, mas, sobretudo, em uma dimensão política.

É muito difícil esperar que as grandes questões contemporâneas da política, da economia e do direito sejam compreendidas sem uma análise sofisticada do racismo e suas consequências. Por sofisticação nos referimos a pensar o racismo em sua concepção estrutural, ou seja, como elemento constitutivo da economia, do direito, da política e da cultura.

Mas não esperem aqui encontrar um “especialista em racismo”, até mesmo porque especialistas em racismo são os racistas; sou um homem negro, estudioso, sim, das relações raciais.

Mas minha formação é em direito, filosofia e política, temas cuja abordagem rigorosa só considero possível se a questão racial também for levada em consideração.

Nos últimos anos tenho lecionado no Brasil e no exterior filosofia e teoria geral do direito, além de teoria do Estado e pensamento social brasileiro. O cerne de minhas pesquisas gira em torno da relação entre crise, direito e Estado, de tal sorte que teremos muito a conversar em nossos próximos encontros.

Se falar e escrever —pensar, portanto— como ato político coloca-nos diante do conflito, do debate e do embate público, é também verdade que se nos abre a possibilidade de construção de alianças, de realização de projetos e de novos horizontes da vida social.

Minha disposição é que este espaço apresente outras formas de inscrição no mundo, que não nos aprisionem a certos temas do noticiário político e a formas mais ou menos “aceitáveis” de abordá-los. Por isso, escrever o que quero é ver a mim e a meus leitores e leitoras como seres completos em si mesmos, que, mais uma vez nas palavras de Steve Biko, não irão tolerar “quaisquer tentativas de diminuir o significado de sua dignidade”.

Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.

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