Por Fani Rodrigues
Em entrevista exclusiva a Opera Mundi, Jorge Arreaza disse que diplomacia do Brasil ‘já não é o Itamaraty de dois anos atrás, quando era uma grande escola diplomática para a América Latina e para o mundo’
O ministro de Relações Exteriores da Venezuela, Jorge Arreaza, afirmou que o governo do presidente Jair Bolsonaro terá que pedir perdão ao povo “pela forma como estão pisoteando a diplomacia do Brasil”.
Em entrevista exclusiva a Opera Mundi, Arreaza falou sobre a relação com o governo brasileiro e disse que a diplomacia do Brasil “já não é o Itamaraty de dois anos atrás, quando era uma grande escola diplomática para a América Latina e para o mundo”.
O ministro também se mostrou preocupado com a situação dos 11,8 mil brasileiros que vivem na Venezuela, que ficaram sem serviços consulares depois que o governo Bolsonaro retirou de Caracas o corpo diplomático no início do mês.
O chanceler ainda falou sobre a tentativa de invasão frustrada sofrida pela a Venezuela no dia 03 de maio e sobre a denúncia da agressão apresentada pela Rússia no Conselho de Segurança da ONU.
Leia a entrevista na íntegra:
Opera Mundi: Depois da Operação Gedeón, algum país, fora os aliados da Venezuela, entrou em contato com o governo venezuelano para manifestar repúdio contra essa ação violenta?
Jorge Arreaza: Não. Nenhum país entrou em contato conosco, por nenhuma via. Quem entrou em contato foram os partidos de esquerda e os movimentos populares. Mas, até o momento, nenhum governo da América Latina, nem da Europa, se manifestou sobre o tema. Houve um silêncio cúmplice para esconder o escândalo de uma ação armada, mercenária, financiada pelos Estados Unidos e que foi organizada em território colombiano. Isso é uma vergonha para as Relações Internacionais e para o continente americano, que um país tenha se sujeitado a isso, que um país latino-americano tenha participado de uma operação que também recebeu financiamento do narcotráfico, com mercenários dos Estados Unidos. Isso é uma vergonha. Além disso, estamos vendo agora como a União Europeia, os Estados Unidos e os países do Grupo de Lima, que estão cartelizados contra a Venezuela, estão retomando a matriz de opinião de que existe uma suposta crise humanitária na Venezuela. Vão realizar uma conferência no dia 26 de maio para que doadores internacionais possam disponibilizar recursos para os imigrantes venezuelanos. Esse é o tema difundido pela mídia para encobrir a invasão mercenária.
Por que esses países insistem nesse tema da crise humanitária se a ONU e os mais importantes fundos de investimento social afirmam que a Venezuela não se enquadra no perfil técnico de país que sofre uma crise humanitária?
Parece que estão esgotando as ideias utilizadas para atacar a Venezuela midiaticamente e voltam a esse tema já superado. A Venezuela é o único país do mundo que está recebendo migração inversa, porque estão regressando milhares de venezuelanos (42 mil nos últimos dois meses), saindo da Colômbia, mas também do Chile, Peru e Equador. Também querem ocultar esse fenômeno. Estão voltando e nós estamos disponibilizando atendimento à saúde gratuito para o tratamento contra a covid-19.
O presidente Nicolás Maduro se reuniu com o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, e ao sair dessa reunião o presidente disse que aceitaria ajuda e assistência humanitária de quem queira fazer doações através das Nações Unidas, como é natural. Pensamos que choveria doações, que enviariam mais de 10 aviões diários de ajuda humanitária pela preocupação que pareciam ter com a Venezuela, mas era pura hipocrisia. Essa é uma estratégia de guerra de quarta geração. Fizeram a mesma coisa na República Dominicana em 1965, mandaram 10 médicos para a assistência humanitária e junto com eles mil militares da marinha dos EUA. Invadiram o país para derrubar o governo. Isso é o que estão tentando fazer na Venezuela.
Qual é o valor dos recursos estatais da Venezuela bloqueados hoje no exterior?
Recursos em dinheiro e em ouro são cerca de 10 bilhões de dólares nos bancos internacionais. A isso temos que somar os ativos, como as refinarias da nossa petroleira, PDVSA, nos EUA, o lucro que deixamos de receber, a repatriação de capital desse lucro que não é enviado desde 2017. Esses recursos podem superar os 30 bilhões de dólares. Se tivéssemos acesso a todos esses bens, a situação econômica do nosso país seria totalmente diferente. Além disso, o bloqueio afeta também a indústria petroleira, porque temos dificuldade na exportação e na distribuição do nosso petróleo. Não podemos importar equipamentos e peças de manutenção, nem os produtos químicos necessários para o refino. Quando vamos exportar perseguem nossos navios. Se incluirmos o que deixamos de produzir devido ao bloqueio facilmente chegaríamos a 100 bilhões de dólares de prejuízo. Essas ações figuram como uma tentativa de genocídio, que estamos tentando conter. A intenção dos EUA é deixar o povo venezuelano morrer de fome até que possam derrubar o governo eleito em um processo democrático.
Relacionado a esse tema do bloqueio, a Venezuela passa por uma escassez de combustível. O Irã foi o único país que aceitou vender gasolina ao governo venezuelano, mas os EUA ameaçam frear o trânsito dos navios iranianos em águas internacionais do Mar Caribe. Como o senhor vê essa situação?
O Irã está denunciando publicamente que recebeu ameaças e advertências dos EUA por enviar esses navios à Venezuela. Espero que isso não aconteça. De qualquer maneira, quando esses navios entram em águas territoriais venezuelanas são escoltados por barcos e aviões da Força Armada Nacional Bolivariana. Temos que garantir que essa gasolina chegue para que o povo da Venezuela possa ter um alívio de alguns meses e isso vai dar tempo de ir recuperando as refinarias com apoio internacional que estamos recebendo de vários países para importar peças e equipamentos para voltar a produzir gasolina no nosso país.
A Venezuela estabeleceu diálogo com algum país do Caribe por onde esses navios estão passando ?
Não, porque essa é uma transação regular entre dois estados soberanos, membros da Organização de Estados Exportadores de Petróleo (Opep). Não existe nenhuma objeção por parte da Organização Mundial do Comércio. Os países da região sabem que o único país que pode tentar se meter nessa história são os Estados Unidos, por sua loucura imperialista.
O presidente Nicolás Maduro havia dito, na semana passada, que os dois canais de comunicação entre os governos da Venezuela e dos Estados Unidos foram cortados pelo governo Trump depois da tentativa de invasão frustrada. Isso continua assim?
O presidente Maduro é muito generoso na hora de estabelecer diálogo com quem nos ataca, com nossos adversários. E digo adversários para não chamá-los de inimigos. Estamos trabalhando para recuperar os canais de diálogo que existiam antes da Operação Gedeón. Existe uma conversa de que eles querem apoiar com ajuda humanitária através dos organismos das Nações Unidas. Por essa via temos um nível de diálogo. Espero que um dia os EUA aprendam a respeitar os povos da nossa América.
Na semana passada ocorreu outra reunião no Conselho de Segurança da ONU sobre a Venezuela. Diferente de outras vezes, quando os discursos eram mais equilibrados entre os que eram contra e os que faziam a defesa da Venezuela, dessa vez a maioria condenou a tentativa de invasão. O que aconteceu para mudarem de posição?
O Conselho de Segurança da ONU se ativa sempre que existe alguma situação que possa colocar em risco a paz e a segurança internacional. Quando convocaram uma reunião no ano passado, esse debate foi politizado de acordo com os interesses dos EUA para atacar a Venezuela. Argumentavam que o presidente Maduro não permitia a entrada da ajuda humanitária na Venezuela, citando informes de uns especialistas que jamais pisaram em território venezuelano. Aquilo foi um teatro montado. Nesse momento havia alguns membros do Conselho de Segurança que estavam confusos, estavam tentando entender o que estava acontecendo. Esse ano, a situação é muito diferente, o escândalo com os mercenários foi tão grande que a violação da Carta das Nações Unidas, desde artigo um até o último, ficou evidente.
Qual é a estratégia atual dos Estados Unidos dentro do Conselho de Segurança da ONU em relação à Venezuela?
A estratégia é a máxima pressão contra a Venezuela, usando a premissa de que todas as opções estão sobre a mesa. Acusam o presidente Maduro, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Diosdado Cabello, o ministro da Defesa, Vladimir Padrino López e o ministro de Petróleo, Tareck el Aissami, de narcotráfico. Usaram processos fraudados, que serviram para dar luz verde a esses grupos de mercenários, que vieram à Venezuela usando a desculpa de que estão buscando uma recompensa pela cabeça dos políticos venezuelanos, como no velho oeste dos EUA. É a barbárie contra civilização. No debate no Conselho de Segurança me surpreendeu ver alguns países da Europa se solidarizarem com os EUA. É inaceitável que um Estado não defenda os princípios das Nações Unidas. Por isso vimos que a ampla maioria defendeu a Carta da ONU, defendeu a Venezuela. Uma minoria apoiou os EUA.
Qual é o nível de contato e comunicação da Venezuela com o Ministério de Relações Exteriores do Brasil? O senhor já falou com o chanceler Ernesto Araújo?
Nunca, jamais nos falamos. Nunca falamos com o Itamaraty, que já não é o Itamaraty de dois anos atrás, quando era uma grande escola diplomática para a América Latina e para o mundo. Esse Itamaraty de Araújo decidiu desconhecer a Venezuela, desconhecer o governo que os venezuelanos elegeram democraticamente. Adotaram a estratégia de defender um governo fake, de golpe de Estado, e uma atitude de agressão contra a Venezuela. Não existe nenhum tipo de comunicação entre nós. Inclusive a comunicação do Itamaraty com nosso corpo diplomático no Brasil é absolutamente informal. Não existe nada oficial, nem notas diplomáticas são consideradas em atos oficiais. Isso é uma falta de respeito, a diplomacia não aceita esse tipo de conduta. Tentaram expulsar nossos diplomatas sem tomar em conta a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (CVRD).
O consulado do Brasil na Venezuela fechou no início desse mês. O governo da Venezuela foi comunicado dessa decisão?
Enviaram uma nota diplomática avisando sobre o encerramento das atividades consulares. Pediram autorização para a entrada de um voo militar que vinha do Brasil para retirar os diplomatas brasileiros. Porém, não ativaram as convenções diplomáticas, não romperam relações consulares. O que fizeram foi apenas retirar o corpo diplomático. Se o Brasil decide romper as relações diplomáticas, sob o regulamento da convenção de Viena e declarar nossos diplomatas personas non gratas teremos que reconhecer, mas até o momento isso não ocorreu. Querem fazer tudo à margem da convenção, de maneira selvagem, primitiva. Tecnicamente as relações continuam existindo. No entanto, agora, os brasileiros que vivem na Venezuela estão sem amparo legal. Se algum deles tiver problemas com os documentos pessoais ou algum problema de saúde grave não tem a quem recorrer, para que o Estado brasileiro possa dar a devida assistência. Consideramos que isso é muito negativo para a população brasileira.
Como vê o futuro da diplomacia entre Caracas e Brasília?
Espero que nossos consulados possam permanecer no Brasil para proteger nossos cidadãos e que o consulado do Brasil na Venezuela volte a funcionar. Sei que temos posições ideológicas absolutamente opostas, mas com o anterior ministro, Aloysio Nunes, chanceler do ex-presidente Michel Temer, havia diálogo. Foi um governo com quem tivemos muitas diferenças, mas eu falava com Aloysio Nunes cordialmente. Existiam diferenças e coisas que concordávamos e nessas questões trabalhávamos juntos. Éramos muito francos. Embora existam diferenças entre nossos governos, com quem temos que dialogar? Com quem é mais importante dialogar? Juntamente com aqueles que pensam diferente. Por isso, se o chanceler do Brasil quiser falar comigo, ligo para ele amanhã. Até o momento, não existe nenhum interesse porque não reconhecem nosso governo. Em algum momento vão ter que pedir perdão ao povo, pela forma como estão pisoteando a diplomacia do Brasil.
Falei com alguns brasileiros que moram na Venezuela e que estão preocupados porque não sabem como vão renovar passaporte sem o consulado do Brasil em Caracas. Com o isolamento social em vigor, também não podem voltar ao Brasil. O que eles podem fazer?
Se eles se organizarem e formarem uma comissão para vir falar com o vice-ministro da chancelaria venezuelana para América Latina podemos pensar em algo, com muito prazer. Vamos desenhando fórmulas, porque nós também estamos preocupados com a situação dos brasileiros na Venezuela e sentimos responsabilidade em relação a esses cidadãos.
Qual é a posição do governo venezuelano em relação a expulsão dos diplomatas venezuelanos anunciada pelo governo Bolsonaro no dia 2 de maio?
Nossa posição é não sair do Brasil. Somos países vizinhos, com populações migrantes, e a Constituição da Venezuela nos obriga a proteger nossos cidadãos, assim como a Constituição do Brasil. Como eles apelam à barbárie, esse tema agora está com a Justiça brasileira, é um tema interno do Brasil. Acho que é positivo para os venezuelanos que estão no Brasil que o corpo diplomático venezuelano esteja no país, para que os ajudem, sobretudo com a expansão descontrolada do coronavírus.
Na fronteira da Venezuela com o Brasil existe algum tipo de coordenação política ou diálogo sobre as medidas adotadas para controlar a pandemia da covid-19?
Existe um nível de comunicação entre as forças armadas dos dois países, mas não entre os ministérios de Saúde. Também existe comunicação entre o governo do estado de Roraima e o governo do estado de Bolívar, do lado venezuelano. Estamos preocupados com o foco de contágio via estados de Roraima e Amazonas, pois estão entrando venezuelanos que voltam do Brasil contagiados com a covid-19. Gostaríamos que houvesse comunicação com todas as instâncias do governo brasileiro, que deixem de bobagem, de desconhecer o governo da Venezuela.
Entrevista publicada originalmente na Opera Mundi.
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