Por Andrey Régis de Melo, Domingos Barroso da Costa e Veyzon Campos Muniz
Darcy Ribeiro dizia que a “mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta para explodir na brutalidade racista e classista”.[1]
E foi assim com João Alberto, ao se aventurar em um hipermercado porto-alegrense, encontrou o regime escravocrata, sentindo o peso da melanina.[2] Numa verdadeira mort à la carrefour, diante de pequena plateia e com registros de áudio e vídeo, foi espancado até a morte por dois seguranças do estabelecimento comercial. No fluxo homogêneo da história[3], o castigo corporal encontrava o corpo preto num violento ritual de controle e humilhação.
A compreensão da morte de João Alberto como crime racial exige o entendimento do processo de exploração econômica e institucional da população negra. Ao longo de mais de quatro séculos, aproximadamente, quinze milhões de homens, mulheres e crianças foram vítimas do trágico comércio transatlântico de escravos ao redor do mundo, segundo estimativa das Nações Unidas. Ciente desse lamentável cenário de crime contra a humanidade, a comunidade internacional passou a reconhecer que esta população representa um grupo vulnerável cujos direitos devem ser efetivamente assegurados.[4]
Entender como um corpo negro é espancado até a morte no ano de 2020, 132 anos depois de formalmente abolida a escravidão e 32 anos depois do pacto constitucional de 1988, quando houve a celebração da dignidade da pessoa humana como princípio estruturante do Estado Democrático de Direito brasileiro, exige esforço para uma longa caminhada, percurso necessário para ligar a asfixia de Beto ao ano de 1530, quando o primeiro navio tumbeiro atravessou o Oceano Atlântico e atracou no litoral brasileiro.
E não é fácil amarrar as duas pontas da história do genocídio brasileiro. De acordo com Martin Meredith, mais da metade dos escravizados exportados pelos portugueses para o Brasil morriam no percurso até a chegada no litoral brasileiro. A cada cem africanos escravizados “dez podem ter morrido pela captura, vinte e dois no caminho até o litoral, dez nas cidades costeiras, seis no mar e três nas Américas, antes de iniciar o trabalho”[5], o que é confirmado por Laurentino Gomes, que define o Atlântico como “um grande cemitério”[6][7].
Já em território brasileiro, os corpos negros foram submetidos ao que se pode denominar de economia política do castigo. A dominação senhor-escravizado interessava à metrópole, que não dispunha de recursos para o “controle da massa de escravos nem de meios para efetivá-los internamente à unidade produtiva”[8]. Nesse contexto, os negros sofriam castigos de todas as espécies, “na forma de mutilações de dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar”[9]. A violência desumanizava e causava a prematura morte por estafa.
No período que antecede a abolição do regime escravocrata, como não era mais possível agrilhoar o negro à unidade produtiva, que era seu lugar até então, a polícia e o sistema de justiça penal assumiram a tarefa de controlar o “medo negro”, não permitindo a ocupação dos espaços públicos, e instituindo a suspeição generalizada em desfavor da pele negra:
“A cidade que escondia, porém, ensejava aos poucos a construção da cidade que desconfiava, que transformava todos os negros suspeitos. É essa suspeição que Eusébio de Queiroz[10] está preocupado em afirmar: ‘qualquer’ ajuntamento de escravos deve ser dissolvido; ’os que nele se encontrarem’ devem ser presos; os ’que se tornarem suspeitos’ devem ter o mesmo destino. A suspeição aqui é indefinida, está generalizada, todos são suspeitos. Não é mais o Fulano com o chapéu desabado que importa, mesmo porque agora seria difícil saber quem era o Fulano mesmo que ele estivesse ostentando a cara limpa. Ao invés de uma suspeição ‘pontual e nominal’, é a suspeição generalizada que se torna o cerne da política de domínio dos trabalhadores”.[11]
A estratégia de eliminação avançou a passos largos no Século XIX. Embora os negros ocupassem boa parte dos postos de trabalho, o Brasil fez a opção pela imigração europeia à formação do proletariado.[12] Além disso, como observa Abdias Nascimento, também houve uma tentativa de “branquificação sistemática do povo brasileiro” por conta da miscigenação[13]. Embora a legislação brasileira pós-abolição não tenha importado o modelo estadunidense de Jim Crow[14], a classe dominante feita de netos e filhos dos antigos senhores de escravos sonegou escolas e terras, distribuindo discriminação e repressão, impedindo o acesso do negro aos espaços de poder político, social e econômico, não havendo, portanto, necessidade de leis para subordinação explícita de um grupo racial; a falácia da igualdade foi suficiente para manter o negro acorrentado aos grilhões do passado.[15]
Seguindo o curso da história, especialmente nas grandes metrópoles brasileiras e no sistema penitenciário, é possível observar explicitamente a existência de um estado de exceção que permite a eliminação de grupos vulneráveis[16]. A criminalização, o aprisionamento e os homicídios praticados contra a população negra – inclua-se nesse ponto as mortes produzidas em intervenções policiais/militares – indicam a continuidade da vocação escravocrata no âmbito das políticas criminal e de segurança pública.
A questão carcerária, por exemplo, persegue os negros há séculos. Em pesquisa de Thomas Holloway[17], há a informação de que, no início do Século XIX, quase metade da população era negra, porém, no âmbito da justiça criminal, 80% das pessoas submetidas a julgamento tinham como característica fenotípica a pele negra, geralmente acusadas de infrações penais como fugas, ofensas à ordem e furto de roupas e alimentos. Atualmente, o cenário demonstra que 64% dos encarcerados são pessoas negras, tudo a evidenciar que a propagandeada igualdade racial é falaciosa e tem por perverso efeito maquiar com narrativas um racismo que se sedimenta há séculos.[18]
O presente, então, não traz novidade para a população negra em relação à morte. De acordo com o Atlas da Violência 2020[19], 75,7% das vítimas de homicídios são pessoas negras. No período de uma década (2008-2018), as taxas de homicídio de negros apresentaram um aumento de 11,5%, enquanto de não negros houve uma diminuição de 12,%. Beto infelizmente entrou para tais estatísticas perversas. Se os dados são realocados para a escala World Health Statistics, a comparação é inevitável: os números revelam que os negros brasileiros estão sujeitos a riscos como se vivessem nos países mais violentos do mundo ou naqueles com conflitos armados em andamento.[20]
No âmbito da letalidade policial, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública analisou 5.896 registros de mortes resultantes de intervenções policiais nos anos de 2015 e 2016, o que corresponde a 78% do universo das mortes no período, e revelou que 76% das vítimas eram pessoas negras.[21] O dado é confirmado no ano de 2019[22], quando 79,1% das balas do Estado de Policialismo[23] acertaram peles pretas.
Com efeito, pode-se dizer que os aparelhos institucionais são, no mínimo, cúmplices na dominação e segregação étnico-racial pós-escravatura. Para Marlon Weichert, a análise de dados combinada indica a existência de uma política de segregação racial[24]. Sem embargo, o sistema de justiça criminal é a perversa representação dos pelourinhos, eis que as centenas de chicotadas foram substituídas pelo cálculo da pena privativa de liberdade, o encarceramento de negros é o nosso disfarçado Jim Crow, é o nosso apartheid[25], e as viaturas policiais parecem ocupar a mesma fúnebre função dos navios tumbeiros que carregavam amontoados de corpos e cadáveres negros à formação e manutenção do regime escravagista.
Não bastasse tudo isso, tal regime, no evolver dos Séculos XX e XXI, ganhou novos contornos no país com a adoção das estratégias de controle social alicerçadas no urbanismo militar.[26] A suspeição generalizada imposta pelas práticas policiais e o controle social militarizado nos espaços pauperizados desvelam a militarização da vida urbana, que é reproduzido inclusive por empresas de segurança privada em estabelecimentos comerciais. Para Stephen Graham[27]:
“A militarização também envolve a normalização dos paradigmas militares de pensamento, ação política; esforços de disciplinar agressivamente corpos, espaços e identidades considerados não condizentes com noções masculinizadas (e interconectadas) de nação, cidadania ou corpo; e o uso de uma ampla e diversificada propaganda política que romantiza ou higieniza a violência como um meio de vingança legítima ou de conquista de algum propósito divino. Acima de tudo, a militarização e a guerra organizam a ‘destruição criativa’ de geografias herdadas, economias políticas, tecnologias e culturas”.
A população negra dos bairros empobrecidos tornou-se indistintamente suspeita e foi categorizada como inimiga no plano interno, o que reforça a existência de um verdadeiro estado de exceção normatizado. O controle militarizado das pessoas negras em zonas periféricas gera uma brutal divisão. Como observa Frantz Fanon: “esse mundo compartimentado, esse mundo cortado em dois é habitado por espécies diferentes”[28]. As fronteiras internas são delimitadas por barreiras e operações militares, o espaço militarmente isolado permite a indiscriminada categorização dos corpos suscetíveis de serem mortos pelo Estado, tudo acobertado pelo retórico discurso da garantia da ordem pública dentro de uma guerra que busca a eliminação do seu próprio povo, sobretudo a morte de inimigos racial e socialmente construídos.
A morte de João Alberto é o somatório dos racismos individual, institucional e estrutural. Um branco não seria tratado daquela forma, a brutalidade da violência a que foi ostensivamente submetido bem indica uma autorização vigente há séculos quanto ao castigo público de corpos negros.
Beto foi socado e agredido até a morte porque existem pessoas que odeiam negros. Beto foi assassinado porque existem instituições que abordam, acusam e condenam negros de forma indiscriminada e sumária. Beto foi asfixiado porque as relações políticas, produtivas e sociais seguem a marginalizar negras e negros, a asfixia mecânica como expressão concreta de toda sorte de asfixias que historicamente lhes vêm sendo impostas.
– João Alberto morreu?
– Morreu. Morreu porque era negro.
Morreu porque os negros são matáveis no Brasil. Morreu porque sistemas racistas, como os experienciados por instituições públicas e privadas no país, subvertem a universalidade do direito à vida da população negra em perpetuação pandêmica dos privilégios da branquitude. Morreu porque a dignidade de negras e negros ainda está disponível nos supermercados mais próximos.
Andrey Régis de Melo é Defensor Público do Rio Grande do Sul. Dirigente do Núcleo de Defesa Criminal. Mestre em Ciências Sociais (UFSM). Especialista em Direito Penal e Criminologia (UNINTER-ICPC).
Domingos Barroso da Costa é Defensor Público do Rio Grande do Sul com atuação junto aos tribunais superiores. Mestre em Psicologia pela PUC-Minas. Especialista em Criminologia (PUC-Minas) e Direito Público (UNIGRANRIO).
Veyzon Campos Muniz é servidor da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul. Doutorando em Direito Público pelo Instituto Jurídico da Universidade de Coimbra. Mestre em Direito (PUCRS) e Especialista em Direito Público (UCS).
[1] RIBEIRO, DARCY. O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. 3ª ed. São Paulo: Global Editora, 2015.
[2] Frantz Fanon esclarece que “o preto ignora enquanto sua existência se desenvolve no meio dos seus; mas ao primeiro olhar branco, ele sente o peso da melanina”. FANON, Frantz. Pele Negra. Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 133.
[3] BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 14.
[4] MUNIZ, Veyzon Campos Muniz. Desenvolvimento sustentável, direito e raça. Revista Brasileira de Direito Constitucional e Internacional, vol. 118. São Paulo: RT, 2020.
[5] MAREDITH, Martin. O destino da África. Cinco mil anos de riquezas, ganâncias e desafios. Rio de Janeiro: Zahar, 2017, p. 142.
[6] GOMES, Laurentino. Escravidão. Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019, p. 47.
[7] O autor estima que 60% perdiam a vida e “catorze cadáveres foram atirados ao mar todos os dias”.
[8] LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 41.
[9] RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. 3ª ed. São Paulo: Global Editora, 2015, p. 89.
[10] Referência ao chefe de polícia.
[11] CHALHOUB, Sidney. Visões de Liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 239.
[12] Os negros em estabelecimentos artesanais e industriais no Rio de Janeiro passam de 64,5% [1852] para 10,2% [1872] (CHALHOUB, 2011, p. 250)
[13] NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro. Processo de um racismo mascarado. 3ª ed. São Paulo: Perspectivas, 2016, p. 83.
[14] O regime Jim Crow refere-se à legislação e aos regulamentos que estabeleceram a segregação racial nos EUA.
[15] “A igualdade formal pressupõe então a aplicação do mesmo procedimento a todas as pessoas para que o ideal democrático da proteção dos direitos individuais possa ser alcançado. Violações de direitos são vistas, dentro dessa perspectiva, como um defeito dentro do processo decisório […] Porém, a evolução social fez com que essa noção de igualdade fosse contestada porque a vida das pessoas tem uma dimensão material que não pode ser ignorada” (MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Contracorrente, 2019, p. 248).
[16] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 13.
[17] HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: FGV, 1977, p. 50-52.
[18] DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciárias 2016. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf. Acesso em 11 de dezembro de 2019.
[19] IPEA – Instituto de Pesquisas Aplicadas. Atlas da Violência 2020. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/24/atlas-da-violencia-2020. Acesso em 02 de novembro de 2020.
[20] No levantamento, Honduras (55,5%), Venezuela (49,2%) e El Salvador (46%) apresentam as maiores taxas de homicídios do mundo, conforme dados da Organização Mundial de Saúde. World Health Statistics 2018. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/272596/9789241565585-eng.pdf?ua=1&ua=1. Acesso em 11 de dezembro de 2019.
[21] FBSP – Fórum Brasileiro de Segurança Segurança Pública. Um retrato da violência contra negros e negras no Brasil. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2017/11/infografico-consciencia-negra-FINAL.pdf. Acesso em 11 de dezembro de 2019.
[22] FBSP – Fórum Brasileiro de Segurança Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf. Acesso em 02 de novembro de 2020.
[23] A política de segurança pública é vincada pelo “policialismo”, serviço que se caracteriza pela edificação de uma zona de suspensão dos direitos e garantias fundamentais dos subcidadãos negros matáveis.
[24] WEICHERT, Marlon. Violência sistemática e perseguição social no Brasil. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 11. São Paulo: FBSP, 2017, p. 108.
[25] Referência ao regime de segregação racial implementado na África do Sul entre 1948 e 1994.
[26] Segundo Júlia Valente, a utilização das forças militares para pacificação é algo comum na história brasileira, a autora destaca que, no período regencial, a instabilidade política que resultou na multiplicação de revoltas populares teve forte intervenção do Exército Brasileiro (VALENTE, Júlia. UPPs: Governo militarizado e a ideia de pacificação. Rio de Janeiro: Revan, 2016).
[27] GRAHAM, Stephen. Cidades sitiadas. O novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo, 2016.
[28] FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005, p. 56.
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