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Labirinto

Quatrocentas e sete pessoas mortas em um dia. O número não é redondo, nem bonito. Os sete são tão importantes quanto os quatrocentos demais. São pais, mães, tios, primos, avós de alguém que ainda não morreu. São filhos de alguém que já não vê razão para viver. Deveria ser proibido filhos morrerem antes dos pais. Não pode haver dor maior.

Quarentena e sete shopping centers foram reabertos na mesma data em que quatrocentas e sete famílias não puderam velar suas vítimas da Covid-19. Quarenta e sete não é um número redondo, nem bonito. Só em Santa Catarina foram reabertos vinte e no Rio Grande do Sul , dez shopping centers. Esses número são redondos, mas não são nada bonitos.

As imagens das dezenas de covas rasas, espremidas, abertas à espera dos cadáveres não é mais bonita que a foto das valas comuns, vários caixões enfileirados, tratores deitando terra, tumba coletiva a unir quem nunca sequer se conheceu. São apenas caixões. A prefeitura de São Paulo tranquilizou a população: comprou quarenta mil urnas funerárias. Aos paulistanos, que descansem em paz, a terra haverá de cobri-los em caixotes de aglomerado. Cada um no seu, derradeira e única propriedade alcançada por muitos daqueles defuntos individuais enterrados coletivamente. Fingimos que são apenas ataúdes, fingimos ignorar que em cada um existe uma pessoa morta que era pai, mãe, tio, primo, avó ou avô, amigo ou, pior, filho ou filha de alguém. Sem fingimento a vida e as mortes em nossa realidade bolsonara seriam insuportáveis.

As imagens dos shopping centers reabertos, um deles ao som de saxofone, repletos de gente, de pais, mães, tios, primos, avós e filhos de alguém não são nada bonitas. São como um buquê, diria Criolo, sensível poeta da cotidianidade capitalista periférica. Buquês são flores mortas. Estavam lá para contaminar e serem contaminadas, embora disso não tenham consciência. E para morrer ou para chorar seus defuntos dentro de poucas semanas, mas fingem não saber que estão sendo individualistas e irresponsáveis. Ou não se importam.

A maneira capitalista de existir em sociedade nos condicionou ao consumo, real ou onírico, em locus desejáveis da convivialidade pequeno-burguesa estandarizados. Os shoppings são todos iguais, caixões de concreto a encerrar pessoas esvaziadas de humanidade a comprar itens supérfluos, em geral desnecessários em essência. Muita gente não consegue imaginar suas vidas fora daqueles templos do consumo. Muitas famílias preferem as praças de alimentação às mesas da cozinha ou às praças reais. Pessoas que não se conhecem fingem interagir dentro de um enorme esquife, antinatural, simulacro de um determinado modo de vida. O confinamento tirou dessas pessoas o acesso a uma maneira de existir.

Com o relaxamento do isolamento social por parte de alguns governadores os shoppings, “estão cheios de almas tão vazias. A ganância vibra, a vaidade excita. Devolva minha vida e morra. Afogada em seu próprio mar de fel
Aqui ninguém vai pro céu”. Seus frequentadores sabem que é irracional sua escolha por contaminarem e serem contaminados. Veem na televisão o colapso no sistema hospitalar, com falta de leitos e respiradores. Sabem, mas fingem não saber. Não conseguem existir de outra maneira. Querem voltar à normalidade capitalista à qual estavam acostumados, adestrados, têm a compulsão pelo consumo daquilo de que não precisam. Querem ver e serem vistos. Querem suas medíocres vidas de novo.

A reabertura dos shoppings e os fagueiros passeios neles de libertados defensores da escolha individual são atitudes criminosas e suicidas. A maneira capitalista de existir em sociedade também. E não é nada bonita.

Aquelas pessoas que correram aos reabertos centros comerciais são como buquês. “Buquês são flores mortas. Num lindo arranjo. Arranjo lindo feito pra você”. Dentro de algumas semanas muitos deles terão mortos pela pandemia para chorar. Mas não se importam. A vida tem que voltar ao normal para gerar lucro aos lojistas e para ilusoriamente acabar com o isolamento. Como os caixões enfileirados na cova comum, se aglomeram consumidores no comércio reaberto. Ali não há um coletivo de pessoas, há um aglomerado de indivíduos. Não há um colorido jardim, há uma coroa de flores. Fúnebres flores mortas, não celebrativas guirlandas.

Muitos dos que festejam a irresponsável decisão flexibilizadora lotarão as UTIs dos hospitais dentro em breve e não terão guardamento. Serão rapidamente enterrados em ataúdes que parecerão pequenos para tamanho individualismo e tantas inúteis vaidades. Optam pelo velório em vida dos valores da solidariedade social. Cantou o referido poeta que “não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você. Encontro duas nuvens. Em cada escombro, em cada esquina. Me dê um gole de vida”. Precisamos dele para suportar tanta iniquidade.

Os mortos dos outros não importam. A preocupação com a pandemia está, como o vírus, em suspensão. O país parou para assistir o festival de feias traições. Moro fez uma delação premiada e, como sempre, mentiu traindo quem o nomeou. O traído reuniu seu funesto e agourento ministério, aglomerado, para, também mentindo desavergonhadamente, desqualificar o outro inescrupuloso mendaz enquanto morriam centenas de pessoas. Não importa mais se há ou não números redondos. Ignoraremos que eram um buquê de pessoas, flores mortas.

No dia da reabertura dos quarenta e sete shoppings faleceram quatrocentas e sete pessoas. Amanhã os números (fingiremos que não eram vidas desperdiçadas) serão outros. Teremos milhares de mortes diárias dentro de algumas semanas como consequência da reabertura parcial e prematura do comércio de rua em muitas cidades e dos shoppings centers.

Resta-nos, nesse “labirinto místico”, a mentira generosa. Faremos de conta de que não há relação de causa e efeito entre o acréscimo de mortes a serem choradas e aquele modo capitalista de vida que é, também e acima de tudo, um modo de morrer em sociedade para assegurar os privilégios de uma minoria.

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