Para o advogado e professor de direito Lenio Luiz Streck, a Lei de Segurança Nacional, gestada na ditadura militar, é incompatível com a Constituição e deveria ser revogada e substituída por uma nova.
Streck, 65, foi um dos especialistas responsáveis pela elaboração do projeto de lei 3.864/2020, que pretende criar uma lei de defesa do Estado democrático de Direito.
Ele diz, no entanto, não acreditar que esta será a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal). Parte das ações na corte sobre o tema pedem a suspensão de toda a legislação, mas há também questionamentos solicitando apenas a invalidação de alguns trechos.
Streck também é um dos organizadores do recém-lançado “O Livro das Parcialidades”, que trata do julgamento da suspeição do ex-juiz Sergio Moro e que aponta abusos que teriam sido cometidos ao longo da Operação Lava Jato.
O livro, com 28 artigos, é do Grupo Prerrogativas —que reúne advogados críticos à Lava Jato, sendo que parte deles atua ou atuou na defesa de alvos da força-tarefa.
Como advogado, na Lava Jato, Streck diz ter realizado um trabalho para a defesa da Odebrecht e um parecer pro bono para a defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O livro é apresentado como a certificação de que um corpo caiu (no caso, a Lava Jato) e como os relatos de quem sabe por que o corpo caiu. Boa parte dos atos da Lava Jato no passado foram acompanhados ou referendados pelo Supremo. Por que a mudança nos posicionamentos da corte? Há um pouco de lenda urbana nessa questão de que o Supremo referendou os atos. Muitos dos processos não tratavam de questões de mérito de processos, por exemplo do ex-presidente Lula.
São duas questões, uma é a Lava Jato, em relação a esse número grande de pessoas que fizeram acordos de delação premiada, e muitos deles terminaram pela própria delação. Dizer que os processos todos foram referendados, no mérito, não [foram] tantos assim não. É que em direito tem uma especificidade, às vezes, e por uma questão de forma, o tribunal não examina.
Mas ao longo da operação a gente viu mudanças de posicionamento, por exemplo, em relação à prisão após condenação em segunda instância. Na verdade, o Supremo surpreendeu a comunidade jurídica em 2016, surpreendeu muito menos que em 2019, quando ele voltou ao leito normal, dizer que a presunção da inocência era constitucional, que era a nossa tese.
Como o senhor vê a decisão da suspeição de Moro em relação a outros casos da Lava Jato? Vai depender do entendimento do Supremo. Na minha opinião, é possível estender o habeas corpus da suspeição do caso tríplex para os outros três processos do Lula, porque a suspeição é algo personalíssimo, quem é suspeito é o juiz Sergio Moro. E as circunstâncias em que houve a suspeição, conforme o Supremo decidiu, elas se dão nos processos em que Lula é réu e Sergio Moro é juiz.
Na linha do que o Supremo decidiu, a tendência é que tenha consequência restrita ou que vá impactar outros réus? Na minha opinião, o Supremo vai tomar uma decisão restrita. O máximo que o Supremo vai fazer —vai depender ainda— é [decidir] se estende ou não o caso do tríplex para os outros processos, como o do sítio [de Atibaia (SP)]. Isso tem chance de acontecer, mas não tem chance de isso se estender assim para outros casos. As notícias assim assustam as pessoas. Já passei por isso no caso da presunção da inocência. ‘Ah, vai acontecer tal coisa’. Cada réu vai ter que entrar com uma ação para provar isso, é uma questão bem complexa, complexíssima.
O fato de o Supremo ter citado as mensagens da Operação Spoofing, mas não ter enfrentado a questão da legalidade, pode ser considerado um problema nessa decisão? Não, tecnicamente, não. Primeiro, ele poderia ter utilizado, [mas] não utilizou, porque teve provas suficientes. O Supremo fez uma decisão histórica, porque começou a compreender que a parcialidade é causa de nulidade, porque o Código só fala em suspeição. Basta um elemento para tornar um juiz, no caso, suspeito ou parcial. E o Supremo deu mais que um elemento, ele nem precisou [das mensagens]. E acho que também, estrategicamente, para evitar maiores críticas à sua decisão, ele tinha elementos suficientes para decidir desse modo e apenas referiu a Operação Spoofing para dar o contexto, o clima.
Como o senhor avalia a decisão do Supremo quanto à imparcialidade e a influência que as mensagens podem ter tido para a formação da decisão dos ministros? O modo como a Lava Jato e a força-tarefa conduziram tudo isso não fez bem para o Brasil. Não se pode cometer crimes para combater crimes. Os fins não justificam os meios. Então as mensagens da Operação Spoofing são muito importantes, ainda vão ser muito importantes, ninguém pode negar que elas existem. Todos nós sabemos que elas existem, ninguém pode ignorar. Agora, a sua utilização no processo, que o Supremo ainda não fez, vai depender de novos julgamentos.
Outro ponto trazido no livro é a questão de que o fenômeno da Lava Jato é consequência do realismo jurídico, de que o direito seria aquilo que o Judiciário diz que é. Como o senhor vê isso em outros temas, por exemplo, na decisão quanto à reeleição dos presidentes do Congresso no fim de 2020? O realismo jurídico é um problema muito sério. É a tese pela qual o direito é aquilo que os tribunais dizem que é. É uma tese ativista. Agora, há uma diferença entre ativismo judicial e judicialização da política, se a gente não fizer essa separação, não funciona.
Por exemplo, quando o Supremo dá uma decisão como essa do federalismo, em que ele diz que os estados e municípios são copartícipes, ele não está fazendo ativismo, ele está fazendo judicialização. Como é que a gente descobre se uma decisão é ativista ou judicializadora? Se a decisão pode ser dada para outros casos, do mesmo modo, nas mesmas condições, isto é o primeiro passo para entendermos que ela judicializa, mas quando a decisão é fruto de uma vontade individual e de uma decisão individual do juiz —porque ele acha que é bom ou que é ruim— aí é ativismo. No Brasil o ativismo ainda é muito forte. O próprio Supremo pratica de quando em vez pratica ativismos.
E no caso da reeleição dos presidentes do Congresso? O Supremo, por maioria, decidiu corretamente. Por vezes, a interpretação aqui no Brasil, é muito maleável. Tem uma metáfora americana de que a lei é como um donuts, uma rosca, no meio tem um buraco que dá para preencher como se quer. Eu não concordo com isso, mas a interpretação do direito no Brasil deveria ser revista.
Em janeiro, o senhor escreveu artigo em que defende que, enquanto a LSN não fosse extraída do ordenamento jurídico, era imprescindível se insurgir contra a sua aplicação. Isso mudou, no caso, quando o senhor avaliou a prisão do Daniel Silveira? O fato de eu achar que a Lei de Segurança Nacional, de que ela é inconstitucional ou que ela é incompatível não significa que, se o Supremo a usou em um determinado caso, eu não possa dizer que o Supremo está correto naquele caso. O direito é assim, o fato de eu pensar simplesmente não tira uma lei do sistema. O fato de eu concordar não melhora, não piora uma lei, o fato de eu discordar da lei também não tira ela do sistema. São coisas diferentes. O Supremo disse que ela é constitucional, o Supremo aplicou. O problema vai ser se o Supremo disser agora que ela é inconstitucional e ele já tinha aplicado.
Na sua opinião, a LSN deveria ser considerada inconstitucional em sua íntegra ou parcialmente? Eu sou membro de duas comissões, a Comissão da OAB e também auxilio nesse caso uma comissão com o deputado Paulo Teixeira, nós consideramos a necessidade urgente de aprovar uma lei de defesa do Estado democrático de Direito. Isso quer dizer que o parlamento tem que se manifestar. Eu penso que esta lei não está recepcionada porque ela tem uma péssima filiação, a origem é viciada, o fundamento que é a ditadura militar, a própria lei diz defesa do regime, daquele regime. Então, tem uma série de problemas. O correto é tirar essa lei fora do sistema, evidente. Mas provavelmente o Supremo não o fará. De novo, estou dizendo que o melhor seria se essa lei fosse varrida, que ela é um entulho e no lugar dela fosse colocada uma lei de defesa do Estado democrático de Direito, que é uma lei nova, que nós estamos fazendo, que não trata os adversários políticos ou os críticos do regime como inimigos.
O presidente Jair Bolsonaro disse no ano passado que ele acabou com a Lava Jato porque não há corrupção no governo dele. Como o senhor avalia o combate a corrupção no governo atual? Eu não creio que o combate à corrupção, que está hoje a cargo do procurador-geral da República, o [Augusto] Aras tenha diminuído. O combate à corrupção continua, a diferença do combate à corrupção hoje e do combate que foi feito anteriormente é que, aos poucos, o combate está sendo feito de acordo com as regras do jogo. É o mínimo que se espera numa democracia. Todos os exemplos de voluntarismos, como na Itália, foram ruins. A Itália teve resultados ruins. A Lava Jato da Itália [Operação Mãos Limpas] resultou no Berlusconi. E aqui a Lava Jato resultou no presidente Bolsonaro.
Muitos apontam que quando se fala de crimes do colarinho branco, há impunidade em relação a outros crimes. Como o senhor avalia a atuação do Judiciário em relação a crimes de colarinho branco? Até o Mensalão, por aí, tinha-se, digamos, essa situação: o andar de baixo era o preferido pelo braço do direito penal e sofria, porque o andar de baixo, os pobres, também eram processados faltando sempre uma boa dose de garantismo.
Depois houve uma viragem, começou-se também a pegar o andar de cima. Uma coisa só que ficou, de certo modo, foi a falta de um sistema garantista. Por isso que até hoje estamos lutando pelo juiz de garantias e estamos lutando pelo sistema acusatório: juiz não investiga, juiz não acusa, juiz não auxilia a acusação, juiz julga. Promotor acusa, mas não persegue e não faz agir estratégico. Advogado defende, advogado faz agir estratégico, porque o advogado é pago para isso.
Neste ponto não é justa a crítica de pessoas que têm sido investigadas pelo inquérito das fake news, de que ele tem um juiz julgando e investigando? Esse é um problema. E confesso que aí nós temos um problema que é um problema no sistema. Com a palavra, a Procuradoria-Geral da República que, se tivesse, naquele momento, com a Raquel Dodge, cumprido o seu dever, nada disso precisava ter acontecido.
A grande questão é que, no direito, na democracia, é diferente você discutir isso no plano de um tribunal no interior do Brasil, e na Suprema Corte. Quem defende a Suprema Corte? É o procurador-geral da República. Mas se a Procuradoria-Geral da República —não estou dizendo este procurador, estou dizendo os anteriores— não defende a Suprema Corte, o que eu faço? Por isso que ela teve, como última ratio, lançar mão de uma legislação que vale ainda, segundo o próprio Supremo, que é esta de poder abrir inquéritos, quando ele mesmo, o Supremo, é vítima, assim como acontece, por exemplo, em outros países. Essa é a questão. Nem tudo é perfeito.
RAIO-X
Lenio Luiz Streck, 65
Advogado, professor titular de direito da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) e da Universidade Estácio de Sá. Membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB Nacional e do Grupo Prerrogativas. Foi procurador de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul até 2014.
Publicado na Folha de S.Paulo.
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