728 x 90

Leniência anticorrupção: o possível e o necessário nos planos legal e infralegal

Leniência anticorrupção: o possível e o necessário nos planos legal e infralegal

Por Pedro Estevam Alves Pinto Serrano e Anderson Medeiros Bonfim

A função do Estado reflete fim, tarefa ou incumbência correspondente a certa necessidade coletiva ou a certa zona da vida social. Expressa, ainda, atividade com características próprias, modelo de comportamento [1]. Nesse segundo sentido, a função do Estado expressa atos e atividades que ele desenvolve em harmonia com as regras que o condicionam e conformam [2]. Em ambas as acepções de função, “exibe-se um elemento finalístico: directamente, na função como tarefa; indirectamente, na função como actividade” [3]. A função no sentido de atividade relaciona-se a um complexo ordenado de atos, interdependentes uns em relação aos outros, destinados à prossecução de um fim ou de vários fins conexos. É a atividade, desenvolvida pelo Estado, por meio de seus órgãos e agentes, na realização das incumbências que lhe são atinentes constitucional ou legalmente.

As funções estatais implicam, necessariamente, na edição de normas jurídicas [4]. A função administrativa consiste na edição de normas jurídicas, mas com uma característica mais específica: volta-se à concretização dos princípios constitucionais, sempre com vistas ao interesse público. Portanto, a função administrativa, sob o aspecto formal, consiste na “edição de um veículo introdutor de normas genericamente denominado de ato administrativo” [5]. Assim considerando, o exercício válido da função administrativa restringe-se à edição de atos administrativos.

A relevância de tais premissas está em permitir concluir que a função administrativa “consiste na edição de atos administrativos, seja pelo Legislativo, seja pelo Judiciário, nas matérias relacionadas a sua organização e atuação funcional, seja pelo Executivo, para todas as demais matérias” [6]. Ademais, é pressuposto para compreensão do significado material da função administrativa o exame do princípio da legalidade, o qual, na sua acepção clássica, construiu-se no sentido de que a Administração limita-se a executar as leis editadas pelo Legislativo. Ou seja, administrar é, de acordo com referida concepção, “editar atos individuais e concretos que cumpram as leis, gerais e abstratas”.

Contemporaneamente é preciso compreender que a função administrativa como ponderação, no caso concreto, tendo em vista aquela realizada pelo legislador. Portanto, sob o ponto de vista formal, a função administrativa consiste na edição de atos administrativos. Por outro lado, pelo aspecto substancial, ela “consiste na apuração da medida constitucional da exigência de cumprimento de determinados fins, tendo em vista as circunstâncias do caso concreto, a atividade legislativa até então exercida e as diferenças de peso efetuadas pelo constituinte; bem como a fixação para o caso concreto, de acordo com a medida apurada, dos meios necessários para realização desses fins” [7].

Portanto, o exercício da função administrativa do Estado é, no Direito brasileiro, especialmente condicionada. O caráter subordinado da função administrativa do Estado veda que a noticiada pretensão de restruturação do acordo de leniência anticorrupção contrarie a Lei nº 12.846/2013, espécie normativa que, além de instituir referido mecanismo administrativo de autocomposição, atribuiu responsabilidade objetiva às empresas pela prática de atos de corrupção contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira. Trata-se, portanto, da instituição de uma regra de responsabilidade que independe da constatação de dolo ou culpa, bastando a comprovação do nexo de causalidade entre a conduta [8] e o dano [9].

Especificamente com relação à suposta pretensão de esvaziamento das prerrogativas atribuídas ao Ministério Público por meio de um noticiado acordo de cooperação entre diversos órgãos, a providência poderá ser ilegal ou, a depender do caso, inconstitucional se desrespeitosa, direta ou indiretamente, ao regime jurídico especialmente delineado pela Lei nº 12.846/2013.

Destaque-se, desde já, que a Lei nº 12.846/2013 não prevê qualquer competência do Ministério Público no tema dos acordos de leniência anticorrupção, ao contrário das pretensões da Medida Provisória nº 703/2015, que admitia a celebração acordos de leniência de forma isolada ou em conjunto com o Parquet, hipótese em que seria impedido o ajuizamento ou o prosseguimento de ações em curso por qualquer dos legitimados às ações judiciais previstas na Lei nº 12.846/2013, na Lei de Improbidade Administrativa (exceto cautelares) e em ações de natureza civil, tais como a ação civil pública. Ademais, previa-se a obrigatoriedade de atuação do Ministério Público, em conjunto com o chefe do respectivo poder do ente da federação, sempre que não existisse órgão de controle interno.

Ainda que, no regramento atual, o acordo de leniência da Lei nº 12.846/2013 não se insira no campo de competência do Ministério Público, em agosto de 2017 foi expedida a Orientação nº 07/2017, da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF) para dispor sobre acordos de leniência e, em especial, prever que as negociações, tratativas e formalização de acordos devam ser realizadas pelo membro detentor da atribuição para a propositura da ação de improbidade administrativa ou da ação civil pública prevista na Lei Anticorrupção.

Ademais, tendo em vista as interfaces entre o acordo de leniência e a colaboração premiada, previu-se que o início das negociações do acordo de leniência deve se dar de forma concomitante ou posterior à negociação do acordo de colaboração premiada. Caso as negociações sejam realizadas em conjunto com outros órgãos, tais como Controladoria-Geral da União (CGU), Advocacia-Geral da União (AGU), Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e Tribunal de Contas da União (TCU), estabeleceu-se que os acordos serão lavrados em instrumentos independentes, a fim de viabilizar o encaminhamento aos respectivos órgãos de controle.

Com vistas a fundamentar a competência do MPF para celebrar acordos com um escopo tão abrangente, previu-se que eles deverão ser fundamentados nos seguintes dispositivos: a) artigo 129, inciso I, da Constituição; b) artigo 5º, §6º, da Lei 7.347/85; c) artigo 26 da Convenção de Palermo; d) artigo 37 da Convenção de Mérida; e) artigo 3º, §2º e §3º, do Código de Processo Civil; f) artigos 840 e 932, III, do Código Civil; g) artigos 16 a 21 da Lei nº 12.846/2013; e, por fim, h) Lei 13.140/2015. Entretanto, a recorrência às referidas espécies normativas e tratados internacionais não são capazes de fundamentar a competência do MPF para a celebração do acordo de leniência anticorrupção.

Do mesmo modo, carece de fundamento legal e sequer sana o vício de competência o compromisso comumente assumido pelo MPF de realizar gestões junto às demais autoridades e entidades públicas buscando adesão ao acordo ou a formalização de seus próprios acordos, desde que compatíveis com o do MPF.

Ainda que o Ministério Público não detenha atribuições no âmbito da Lei Anticorrupção, é preciso destacar que os mesmos atos nela enquadrados podem sofrer a incidência da Lei da Ação Civil Pública, que prevê o compromisso de ajustamento de conduta e, ainda, na Lei de Improbidade Administrativa, recentemente alterada para, expressamente, instituir o acordo de não persecução cível, sem prejuízo da discussão de que, principalmente desde 2015, com o advento da Lei nº 13.140/2015, que dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da Administração Pública, já haveria permissão legal para autocomposições no âmbito das relações cíveis regidas pelo Direito público.

Já quanto ao âmbito criminal, incorporando algumas características do modelo da Justiça criminal negociada — mas sem que isso represente a adoção, por exemplo, do plea bargaining [10] do sistema norte-americano —, o artigo 3º, inciso I, da Lei nº 12.850/2013, incidente exclusivamente sobre crimes praticados por organizações criminosas [11], instituiu a chamada colaboração premiada [12], a ser entabulada pelo Ministério Público ou pelo delegado de polícia.

Especificamente com relação à competência para a celebração do acordo de leniência previsto na Lei Anticorrupção, ela foi conferida à autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública que tenha sofrido os atos lesivos, ao passo que a CGU é o órgão competente para celebrar acordos de leniência no âmbito do Executivo federal e relativos a atos de corrupção contra a Administração Pública estrangeira.

Os benefícios passíveis de serem conferidos à empresa colaboradora são, em especial, redução do valor da multa administrativa em até dois terços, isenção da publicação extraordinária da decisão condenatória e, ainda, afastamento da proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público.

Quanto às competências atribuídas pela Lei nº 12.846/2013 à AGU, as principais previsões são manifestar-se sobre a aplicação de sanções administrativas e ajuizar ações para fins de responsabilização judicial. Com relação ao acordo de leniência anticorrupção, a Medida Provisória nº 703/2015, que não chegou a ser convertida em lei, realizou determinadas alterações na Lei nº 12.846/2013 para tratar expressamente da competência da AGU para, em conjunto com os demais órgãos, celebrar acordo de leniência, hipótese em que seriam ampliados os benefícios para a empresa colaboradora.

Atualmente, reconhecendo as limitações de competência para a celebração de acordo de leniência anticorrupção, a AGU realiza atuação conjugada com a CGU para, em especial, amalgamar aos referidos acordos o ressarcimento ao erário.

É inegável que a multiplicidade de órgãos competentes para realizar investigação, prevenção e repressão da corrupção, bem como promover o ressarcimento ao erário e autocomposição, gerou obstáculos para a celebração de acordos de leniência anticorrupção, cujo estímulo requer o entabulamento e repercussão em diversas instâncias de controle e, portanto, maior entrosamento entre elas. O debate público deve centrar-se em tais aspectos.

Nesse cenário, resta saber quais as discussões estão sendo realizadas nos gabinetes do Palácio do Planalto, Supremo Tribunal Federal, CGU, AGU, Ministério da Justiça, Procuradoria-Geral da República (PGR) e TCU, preterido que está o debate público. Destaque-se, desde já, que não será através de uma possível atividade estatal infralegal que, à luz do cenário normativo apresentado, serão concentradas as prerrogativas relativas à autocomposição estatal na CGU e AGU e suprimidas, pela via transversa, as atribuições do Ministério Público.


[1] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo V, Coimbra: Coimbra, 2004, p. 8.

[2] Id. p. 8-9.

[3] Id. p. 9.

[4] MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, p. 37 e seguintes.

[5] Id. p. 75 e seguintes.

[6] Id. p. 78.

[7] Id. p. 93.

[8] Para Maria Helena Diniz, “a ação, elemento constitutivo da responsabilidade, vem a ser o ato humano, comissivo ou omissivo, ilícito ou lícito, voluntário e objetivamente imputável do próprio agente ou de terceiro, ou o fato de animal ou coisa inanimada, que cause dano a outrem, gerando o dever de satisfazer os direitos do lesado” (DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 43).

[9] O dano é a consequência da conduta do agente, o qual faz nascer o dever de reparação. Segundo Fernando Noronha, “é o prejuízo, de natureza individual ou coletiva, econômico ou não-econômico, resultante de ato ou fato antijurídico que viole qualquer valor inerente à pessoa humana, ou atinja coisa do mundo externo que seja juridicamente tutelada” (NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 473).

[10] O plea bargaining compreende, essencialmente, uma declaração de culpa, guilty plea, ou, ainda, uma espécie de não questionamento da culpa imputada, o que ocorre negocialmente e pode implicar, por exemplo, na redução dos delitos levados à acusação, alteração para um delito de menor gravidade ou, ainda, a diminuição da pena (Newman, Peter. The new palgrave dictionary of economics and the law. New York, 1998, p. 46).

[11] A configuração de uma organização criminosa requer, consoante artigo 1º, §1º, da Lei nº 12.850/2013, o preenchimento dos seguintes requisitos: a) associação entre prelo menos, quatro pessoas físicas; b) estrutura ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas; c) busca de obter vantagens; e, por fim, d) prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos ou que sejam de caráter transnacional.

[12] O acordo de colaboração premiada “consiste em um benefício concedido ao acusado que, admitindo a participação no delito, fornece às autoridades informações eficazes, capazes de contribuir para a resolução do crime”. (STF. HC nº 174.286/DF).

Artigo publicado no Consultor Jurídico.

Compartilhe

Deixe um comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *

Mais do Prerrô

Compartilhe