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Mobilidade social no Brasil: da ascensão ao descenso sócio-ocupacional em 5 anos

Mobilidade social no Brasil: da ascensão ao descenso sócio-ocupacional em 5 anos

Por Paulo de Martino Jannuzzi

O Brasil voltou aos tempos da Década Perdida, depois da retomada da mobilidade social nos anos 2000

Os resultados quanto à mobilidade social ascendente constituem uma faceta pouco conhecida ou destacada nas análises do legado dos anos dos governos Lula/Dilma. Talvez, frente a mudanças sociais tão expressivas e tangíveis como a mitigação da fome, a redução acentuada da pobreza, da desigualdade e do trabalho infantil, a ascensão sócio-ocupacional de metade dos brasileiros (em relação ao primeiro emprego) pareça ser um resultado menos significativo. Não é. Trata-se de uma reversão do padrão de mobilidade vivenciada nos anos 1980 e 1990, não por acaso chamadas de “décadas perdidas”, quando a imobilidade e o descenso sócio-ocupacional haviam aumentado em relação ao período de formação urbano-industrial do país, dos anos 1940 aos 1970 1.

Em um dos trabalhos pioneiros sobre mobilidade social no Brasil, com dados nacionais levantados em 1972, Pastore identificou-a como um processo intenso e aparentemente antitético de mobilidade, resultado da natureza restrita da ascensão sócio-ocupacional dos trabalhadores rurais e de seus filhos 2. A mobilidade teria se concentrado na base da pirâmide social, em que muitos ascenderam pouco e poucos ascenderam muito. A mobilidade também foi territorialmente circunscrita, concentrada nos grandes centros urbanos do Centro-Sul, em especial São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Para a grande maioria dos volumosos fluxos de trabalhadores de enxada que chegavam do campo, as oportunidades ocupacionais acabaram se restringindo às ocupações de baixa remuneração e qualificação no mercado de trabalho urbano, na prestação de serviços, serviços domésticos e construção civil.

Esse era o quadro ainda em 1982, quando a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE apontou que pouco mais da metade – 52% – dos indivíduos (homens, responsáveis dos domicílios, com idade entre 15 a 74 anos) tiveram trajetória ascendente no mercado de trabalho (gráfico). Somente 4% dos indivíduos estavam em posição pior na escala sócio-ocupacional entre o primeiro emprego e aquele então ocupado em 1982. Esses eram os resultados do dinamismo econômico no final dos anos 1960 e começo dos 1970 e seus efeitos na oferta de postos na indústria, comércio e serviços induzidos, associados à intensificação da migração rural-urbana e dos fluxos do Norte/Nordeste em direção à São Paulo e Rio de Janeiro desde anos 1940 3.

mobilidade social no brasil por anos de levantamento

Se o “Milagre Econômico” explica em boa medida a natureza da mobilidade social captada em 1982, crédito semelhante, com sinais trocados, deve-se atribuir à “Década Perdida”. Afinal, as baixas taxas de crescimento econômico e do emprego nos anos 1980 – e em boa parte da década seguinte – significaram a redução das chances dos indivíduos que ingressaram na vida ativa nesse período – nascidos nos anos 1960 – a galgar e manter postos de trabalho de status igual ou superior a aqueles no qual primeiramente se inseriram. De fato, em 1996, comparativamente ao levantamento anterior, parcela menor – 42% – de indivíduos haviam logrado mobilidade ascendente; além disso, o descenso sócio-ocupacional ampliou-se para 13% dos indivíduos. Este quadro em 1996 refletia a combinação perversa, de um lado, da menor expansão do emprego em geral e em setores que tradicionalmente “puxaram” a mobilidade ascendente no passado – como a Construção Civil e Administração Pública –, e de outro, das demissões em setores econômicos com postos de trabalho mais qualificados e diversificados como os bancos comerciais e públicos e a indústria metal-mecânica paulista.

Frente a esse quadro, a retomada dos níveis de mobilidade ascendente em 2014 para níveis próximos aos de 1982 foi surpreendente. Afinal, cerca de 52% dos indivíduos lograram ascender em relação ao primeiro emprego em 2014, mesmo patamar apurado em 1982. E nesse caso, a mobilidade não ficou restrita ao Centro-Sul, nem circunscrita à base da pirâmide social. Espraiou-se pelo território e pelos segmentos médios da estrutura sócio-ocupacional.

Com a pandemia de covid-19, o quadro que já era ruim acabou piorando, como sugere a saída de mais de 8 milhões de ocupados na força de trabalho em 2020, segundo as pesquisas do IBGE

Essa retomada de oportunidades de mobilidade social pelo país deve-se, ao dinamismo na criação de postos de trabalho de nível técnico e superior, para atender as demandas de uma economia urbana mais complexa e com volume maior de investimentos, assim como também dos efeitos sinérgicos de várias políticas públicas, de acesso à educação básica e ao ensino superior, melhora geral da renda e de condições de vida da população mais pobre.

Entre 2003 e 2014, foram criados e/ou formalizados mais de 20 milhões de empregos, segundo os registros do Ministério do Trabalho, cifra muito superior aos 8 milhões de empregos que se registaram, em 17 anos, entre 1985 a 2002. A recuperação dos investimentos públicos em infraestrutura, assim como os privados, criou um volume expressivo de vagas na construção civil em todo o país, abrindo oportunidade de ocupações não apenas de baixa qualificação – como de serventes – mas também ocupações de qualificação média e técnica – como ladrilheiros, mestre de obras e técnicos de educação. O setor foi fortemente influenciado pela construção de moradias populares, escolas, postos de saúde, centros de assistência social, praças esportivas, obras de saneamento e pavimentação urbana, com repercussões sobre vários segmentos da economia 4.

A ampliação do escopo e cobertura das políticas sociais também repercutiram diretamente no emprego da construção civil, pelo investimento público para construção de equipamentos sociais, e indiretamente no emprego no comércio, pelos efeitos multiplicadores da renda transferida por um volume crescente de beneficiários das transferências da Previdência Social e do Programa Bolsa Família. Cidades médias no interior dos estados nordestinos passaram a oferecer emprego formal onde isso era pouco frequente, viabilizado com abertura de negócios de pessoas e famílias que haviam migrado no passado e agora voltavam a sua região de origem, com capital para pequeno comércio 5. Tal movimento de retorno influenciou diretamente as cifras de mobilidade – de quem saiu como trabalhador rural e voltou como pequeno proprietário – como indiretamente pelas vagas criadas no comércio e serviços na localidade de destino.

A mobilidade ascendente também se explica pela expansão do funcionalismo municipal ao longo das últimas décadas, para atender uma matriz mais diversificada de serviços, decorrentes da expansão de escopo e cobertura das políticas públicas, em particular a partir de 2004. Esse conjunto de políticas levou à forte ampliação de oportunidades em ocupações técnicas e de nível superior, em todo o território: as políticas demandavam volume crescente de professores da educação básica e infantil, merendeiras e nutricionistas, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, médicos e outros profissionais da saúde, assistentes sociais, psicólogos e advogados nos serviços socioassistenciais. Entre 2004 e 2014, o número de servidores públicos municipais cresceu de 3,6 milhões para 5,5 milhões, uma ampliação de 54%. Em municípios de pequeno e médio porte (até 50 mil habitantes) a expansão foi ainda maior, especialmente nas regiões Norte (124%) e Nordeste (61%) 6.

Não menos importante foi a ampliação de vagas em universidades – de 3,4 milhões para 8,1 milhões entre 2003 e 2015 – e de escolas técnicas criadas em municípios do interior brasileiro, em um contexto de implantação de políticas afirmativas de raça/cor e de mecanismos de equidade de acesso ao ensino técnico e superior, como as cotas de egressos de escolas públicas. Essa ampliação da oferta de vagas no setor público e privado procurava atender os efeitos de aumento da demanda por ensino superior, decorrentes da universalização do ensino fundamental a partir dos anos 1990 e concretizada em meados da década seguinte. Recursos do Fundef e depois do Fundeb foram fundamentais para construção de escolas em regiões mais pobres e rurais, assim como para contratação de professores com formação adequada, no que contribuiu também a institucionalização do Piso Nacional do Magistério 7.

A expansão do Programa Bolsa Família no Brasil profundo pressionou as prefeituras no provimento do atendimento e transporte escolar – e saúde primária– às crianças de famílias mais pobres. Um volume maior de crianças e adolescentes passaram a sair das escolas do ensino fundamental no Norte e Nordeste, pressionando a ampliação de oferta do ensino médio e, logo depois, de ensino superior, pelas expectativas criadas pela interiorização da oferta pública dos campi das universidades federais (pelo Reuni) e criação de mais de 400 unidades vinculadas aos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia 8.

Ademais, a criação do Prouni, a implantação do Enem, do Sisu (Sistema de Seleção Unificada) e forte ampliação de recursos para Assistência Estudantil nas universidades federais (bolsas de estudo, alimentação e moradia estudantil) criaram possibilidades concretas para que filhos de famílias mais pobres do semiárido nordestino – pretos e pardos em sua larga maioria – pudessem disputar vagas de ensino superior em um número muito maior de universidades, públicas ou privadas, em um universo mais amplo pelo país e adquirir as credenciais formativas para ingresso em emprego de maior remuneração 9. Como consequência dessas ações e políticas o acesso de negros ao ensino superior aumentou expressivamente no período, passando de 441 mil para 1,6 milhão entre 2002 e 2015, uma ampliação de quase quatro vezes 10. Em 2018, os negros já constituíam a maioria dos alunos nas universidades federais 11.

Nos últimos cinco anos, as perspectivas mudaram completamente, certamente ampliando a imobilidade e o descenso sócio-ocupacional, antes da pandemia de covid, vale ressaltar. O aumento explosivo da desocupação entre 2014 e 2019 e as mudanças nos contratos de trabalho trazidas pela Reforma Trabalhista já devem ter levado, em curto espaço de tempo, ao descenso sócio-ocupacional de milhões de brasileiros, obrigados a aceitar um posto de trabalho com menor proteção, de remuneração mais baixa ou de requerimentos técnicos aquém de suas experiências e formação (como o demonstram diversos motoristas e entregadores de aplicativos). O “austericídio” fiscal e seus efeitos nas políticas sociais e na educação tampouco trazem notícias positivas no campo da mobilidade. Com a pandemia de covid-19, o quadro que já era ruim acabou piorando, como sugere a saída de mais de 8 milhões de ocupados na força de trabalho em 2020, segundo as pesquisas do IBGE.

O Brasil já voltou ao Mapa da Fome, da desigualdade, da precarização do emprego… também na mobilidade o Brasil está caminhando para trás.

Artigo publicado originalmente no Nexo Jornal.

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