A condução coercitiva do reitor da Universidade Federal de Minas Gerais, Jaime Arturo Ramirez, da vice-reitora, Sandra Regina Goulart Almeida, e de outras pessoas ligadas à universidade, como a ex-vice-reitora e renomada historiadora Heloisa Starling, pela Polícia Federal, choca, mais uma vez, não só a comunidade acadêmica, mas todos aqueles comprometidos com a vida democrática e com a garantia dos direitos fundamentais como bem primordial da nossa sociedade.
Neste momento em que o combate à corrupção é propagandeado como necessidade principal para alcance de uma moralidade social e pública, pouco ou nada se fala sobre a corrupção maior (no sentido moral e político da expressão) a que temos assistido, que é justamente a apropriação e a deterioração de nossos direitos, por meio da produção de medidas de exceção cada vez mais recorrentes.
O conceito de corrupção, no plano moral e político,embora exista há muito tempo na história humana, foi ressignificado intensamente após as revoluções chamadas burguesas ou liberais — Gloriosa, americana e francesa. A partir dali, houve uma ruptura com o modo aristocrático absolutista de governar, no qual o patrimônio do Estado se confundia com o patrimônio pessoal do rei. A antológica frase “O rei sou eu”, atribuída ao rei Luis XIV da França, embora provavelmente nunca tenha sido proferida, traduz bem a centralização absoluta de poder na figura do monarca, que personificava o Estado e estabelecia as leis.
A noção de direitos fundamentais e de direitos humanos não existia no período aristocrático, ou seja, a sociedade e os indivíduos não eram titulares de direitos ante o Estado. Também a ideia de bem público tinha um sentido muito diverso do atual. A partir dessas revoluções foi que o conceito de bem público se estabelece como sinônimo de bem comum, ainda num sentido excessivamente restrito naquele momento histórico. O patrimônio do Estado — dinheiro, bens patrimoniais, mas também seu patrimônio jurídico, ou seja, o conjunto de direitos de que o Estado é proprietário — passa a ser considerado da sociedade, uma vez que o Estado é entendido como um instrumento da sociedade, e não do governante. O governante torna-se, então, mero gerente, alguém que gerencia o Estado em nome da sociedade, do povo. A reconfiguração da ideia de bem público e bem comum, do bem estatal como bem da sociedade, fez surgir também um novo significado de corrupção, que passou a refletir a ideia de apropriação privada daquilo que é público, dos bens do Estado, que são os bens de toda a sociedade, ganhando sentido político, moral, jurídico e penal.
Aliás, até meados do século XX, uma série de conceitos da política e do direito constitucional tinham também significação mais reduzida do que hoje. Só a partir do pós-guerra, com a declaração dos direitos universais e dos direitos humanos e com as chamadas constituições rígidas surgidas na Europa continental, é que esses conceitos se modificam. Mas a primeira metade do século XX se caracterizou por uma determinada isomorfia entre o conceito de democracia, a noção de sistema jurídico e a ideia de bem público e de corrupção.
A democracia era tida apenas numa concepção formal, o que se caracteriza, no plano do poder e do Estado, por um regime político no sentido estrito, ou seja, um regime de Estado, mero procedimento formal de se acessar o poder. O regime democrático era visto como um conjunto de regras formais de regulação dos conflitos políticos e sociais e de mecanismos para adoção de decisões e escolha de governantes. Nesse modelo de democracia, não há qualquer limitação ao conteúdo das decisões políticas, mas apenas à forma como se chega a essas decisões, que são adotadas de forma majoritária, garantindo também às minorias o direito de contestação e de organização pela reivindicação de seus direitos. Essa acepção foi mudando, até se chegar ao entendimento atual de que não existe democracia fora de uma sociedade democrática , e de que as regras da democracia impõem comportamentos normas e valores para a vida social, além de regrar os procedimentos de decisão e acesso ao poder.
Nunca é demais lembrar de que, no fim da primeira metade do século XX, a normatividade democrática foi utilizada pelo nazismo e pelo fascismo para ascender ao poder, e, em seguida, ser solapar a própria democracia por meio de leis autorizadas pelo judiciário alemão e italiano. Além de ensejar a segunda guerra mundial, uma imensa tragédia para a humanidade, esse processo histórico levou o homem ocidental à perda, talvez, de seus dois principais pilares de visão de mundo. O primeiro era a crença de que o regime democrático seria a forma mais aperfeiçoada de acesso ao poder na história humana. O segundo foi um forte abalo no entendimento de que a razão seria a via moralmente mais adequada, porque isenta e igualitária, para a tomada de decisões. Tudo isso ruiu quando, em nome de uma suposta racionalidade e dentro de uma aparente legalidade democrática, atrocidades morais foram cometidas. Esse choque atingiu profundamente todas as ciências humanas, parte das ciências exatas e biológicas e produziu, depois de algum tempo, várias demandas com o intuito de se resgatar o sentido do homem ocidental.
Na política e no Direito, se estabeleceu um certo pacto democrático humanista, que gerou, no plano do direito internacional, a declaração universal dos direitos humanos e, no campo dos direitos nacionais, as constituições do pós-guerra. Esse pacto significa a adoção de valores morais e políticos próprios da vida democrática. A democracia deixa de ser vista apenas como um regime de Estado e passa a ser entendida como uma forma de vida social. Uma sociedade realmente democrática não apenas deve ter mecanismos coletivos de acesso ao poder, mas também adotar certos valores morais próprios da vida democrática — que se traduzem, essencialmente, nos direitos humanos negativos e positivos. Esse pacto é aceito tanto por conservadores modernos, quanto por liberais, social-democratas, liberais de esquerda e boa parte dos marxistas.
A democracia deixa de ser concebida apenas como o regime da soberania popular, no sentido formal da possibilidade de escolha de seus representantes, e passa a ser o regime de uma sociedade que assume como padrão moral a observância aos direitos humanos. Isso repercute diretamente na ideia de bem público, que passa a ser entendido num sentido muito mais amplo, como o conjunto de valores e de direitos que envolvem a vida democrática, traduzindo-se, no plano técnico-jurídico, nos chamados direitos metaindividuais, que são os direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos.
O bem público, ou bem comum, ganha dimensão maior do que os bens do Estado, pois diz respeito a uma forma de viver em sociedade, ou seja, a direitos que não pertencem apenas ao Estado, mas a toda sociedade. Os bens comuns ou públicos mais relevantes da vida social não são o patrimônio, os bens materiais do Estado, mas sim o conjunto de direitos e garantias que protege a sociedade e seus integrantes.
Dessa forma, quando o Estado restringe, limita ou, mais intensamente, esvazia o sentido desses direitos, retirando seu significado e transformando-os em mera declaração simbólica, temos a apropriação privada, pela autoridade que interpreta a ordem jurídica, do bem comum mais caro ao conjunto da sociedade. Podemos dizer assim que, hoje, o pior tipo de corrupção, no sentido moral e político da expressão, não é a apropriação do dinheiro público, mas sim a do significado daquilo que representa os direitos constitucionalmente garantidos.
O esvaziamento de sentido dos direitos fundamentais e humanos significa uma forma autoritária de vida social, incompatível com os valores morais da democracia. Não há imoralidade maior no mundo contemporâneo, tanto no plano político quanto moral, do que se apropriar privadamente e de forma autoritária dos direitos. A moralidade superior em uma vida democrática não é a moralidade privada que cada um de nós tem — a conduta individual , de costumes privados —, mas a moralidade pública que se constitui no pós-guerra. É esse pacto civilizatório que cria o entendimento de que, independentemente dos valores privados de cada um, devem prevalecer, em uma sociedade hipercomplexa como a nossa, em que diferentes modos de vida coabitam, os mecanismos de tolerância que tornam a convivência possível. A convivência tolerante é, portanto, inerente à democracia.
O que vemos no Brasil de hoje é a produção cada vez mais intensa daquilo que eu tenho chamado em meus escritos de medidas de exceção no interior da democracia. Essas medidas são mais cirúrgicas em relação aos Estados ou governos de exceção típicos do século XX, mas com igual intensidade autoritária no âmbito em que elas atuam e menor possibilidade de percepção pela sociedade, uma vez que são produzidas sob aparente legalidade democrática e não há, na estrutura estatal, o locus característico do ditador. Essas medidas se assemelham ao que ocorreu no nazismo e no fascismo no plano estrutural, uma vez que se valem das formas democráticas para praticar o autoritarismo por meio de medidas específicas, precisas, com objetivos e inimigos demarcados.
A expansão das medidas de exceção no Brasil e na América Latina, ao contrário do que ocorre na Europa, onde o autoritarismo se insere por meio de atos legislativos que fortalecem o Executivo e dentro de um regime jurídico especial de segurança nacional, tem por soberano instaurador o sistema de justiça e tem em seus agentes a fonte para a prática permanente de exceção, por meio de medidas que lhes são formalmente próprias
A proliferação das medidas de exceção representa o esvaziamento de sentido dos direitos fundamentais pelos agentes do Estado, implicando restrição ao seu âmbito de incidência determinado pela Constituição, pois retira das pessoas e da sociedade uma parte significativa de seu principal patrimônio — o direito à vida, à liberdade, à consciência, à manifestação de ideias, à defesa, à presunção de inocência, entre outros. Todos esses direitos, que são muito mais relevantes para a existência humana do que o dinheiro público, sob pretexto de se preservar o erário, são corrompidos diariamente, esvaziados de sentindo, restringidos inconstitucional e imoralmente. Não há, na sociedade contemporânea, imoralidade maior do que vulnerar, corromper os valores da vida democrática, em especial os direitos fundamentais.
É esse tipo de corrupção, entendida como deterioração de direitos, que causa, ou deveria causar, grande preocupação no Brasil, hoje. Estão entre alguns poucos exemplos — já que são muitos — desse esvaziamento, a decisão do Supremo Tribunal Federal que admite a possibilidade de prisão antes mesmo do trânsito em julgado definitivo das decisões criminais, vulnerando frontalmente nossa Constituição e a própria legislação processual penal. Assistimos também à prisão absurdamente abusiva do professor e ex-reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier, que o levou a um processo de depressão, culminando na tragédia de seu suicídio; ao uso de prisões preventivas para obter confissões e delações; à banalização das prisões cautelares como forma de controle social, já que a maioria dos nossos aprisionados está sob esse regime, contrariando as determinações da ONU ao Brasil. E mais recentemente temos sido surpreendidos também por atos de censura a manifestações artísticas e por outras medidas de exceção, sendo realizadas nos mais variados ambientes da vida em sociedade
O uso excessivo e corriqueiro das conduções coercitivas também integra esse pacote de medidas de exceção. A forma abusiva com que as autoridades acadêmicas da UFMG foram levadas para depoimento, mesmo estando à disposição dos agentes da Polícia Federal e já tendo prestado esclarecimentos ao Ministério Público, no âmbito da investigação que envolve a construção e implantação do Memorial da Anistia Política do Brasil, revela que, novamente, atores do mundo intelectual e acadêmico passam a ser tratados como inimigos e vitimizados por essa imensa imoralidade pública que é o esvaziamento de sentido dos direitos fundamentais.
Esse movimento autoritário, a exemplo do que ocorreu com as ditaduras do século XX, não vem sendo reportado pela mídia tradicional que, aliás, muitas vezes, a ele se alia e co-produz. Assim, essas medidas absolutamente conflitantes com moral pública de uma sociedade democrática não são percebidas como tais pela população e, rapidamente, se naturalizam. Portanto, estamos sob grave risco de que, de forma imperceptível, sem que a sociedade se dê conta, esse ambiente autoritário se consolide. É fundamental que haja reação a esse forte movimento de medidas de exceção, pois, do contrário, assistiremos ao naufrágio da democracia e de um patamar mais civilizado de vida em sociedade.
Os direitos fundamentais são patrimônio da sociedade e de cada um, são o único bem comum e individual ao mesmo tempo. São direitos comuns porque protegem a sociedade e a vida democrática, significando, aliás, a realização da vida social democrática, e, concomitantemente, são bens exercíveis individualmente por cada um de nós. Esvaziá-los de sentido, como tem ocorrido nos exemplos que citei e em muitas outras circunstâncias, nos atinge a todos. Cada vez que um abuso é cometido contra os direitos de quem quer que seja, a sociedade e, ao mesmo tempo, cada um de nós vai perdendo parte de seu maior patrimônio.
Por óbvio combater a corrupção é um dever do Estado e necessidade da sociedade, mas se feito por qualquer meio inviabiliza-se atingir seu fim, pois a título de combater o crime perde-se a civilidade, transformando-se a selvageria do crime em forma de vida geral
Combater esse esvaziamento de sentido de direitos, na esfera privada e pública, é um dever de todo cidadão hoje. O Estado, ao agir, não pode defraudar a liberdade das pessoas e o juiz, ao julgar, tem que ser um agente dos direitos fundamentais, que é o verdadeiro bem público, e não suposto agente do combate ao crime, papel que cabe a outras instituições. É preciso reagir e enfrentar essas medidas que vão esfarelando a democracia e retirando a parte mais importante do patrimônio da sociedade, que são os direitos fundamentais. Não há ofensa maior para nós, enquanto sociedade, do que a apropriação privada e a degradação desse conjunto de garantias que é o bem público primordial comum e de cada um, nossos direitos, nossa vida civilizada.
*O conceito de apropriação privada da linguagem foi cunhado pelo professor Luiz Eduardo Gomes do Nascimento, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).
Texto publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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