A miséria em que nos encontramos enquanto habitantes de um espaço comum atingido por pestes mortais biológicas e políticas nos coloca em posição semelhante à de Vladimir – Didi – e Estragon – Gogô –, personagens centrais da peça que apresentou Samuel Beckett ao mundo, intitulada Esperando Godot.
Assim como Vladimir e Estragon, nós, brasileiros, encontramo-nos miseráveis, cambaleantes e fantasmagóricos, em suspensão temporal, num cenário quase desértico, em que a vida definha e parece resumir-se a uma árvore ressequida, semi-morta, como se sentem Didi e Gogô na medida em que as circunstâncias não conferem densidade – realidade – à sua existência (“Será que dormi, enquanto os outros sofriam? Será que durmo agora? Amanhã, quando pensar que estou acordando, o que direi desta jornada?”ii).
Nada nos socorre, imersos em um desamparo que nos retira o sono ao mesmo tempo em que nos faz sonhar em vigília, instalando-nos em um estado de alerta paranoico diante da morte que se anuncia como presença latente e ubíqua.
Não fossem suficientes os sofrimentos que nos afligem desde a natureza, Vladimir e Estragon que somos, ainda temos de lidar com uma desigualdade que permite a poucos trazerem na coleira e sob o chicote outros como nós. As ameaças que recaem sobre nossa vida e dignidade são naturais, mas também políticas. Por parte daqueles poucos privilegiados, a maioria desamparada só tem recebido os restos, os ossos não enterrados depois de devidamente descarnados pelos donos de um gozo que inclui a vida e a liberdade de seus semelhantes em humanidade.
Cegos pelo poder, esses privilegiados insistem em não enxergar que as ameaças já não respeitam as diferenças de classe e que, abandonados como estamos, não haverá vidas que salvem as bolsas, o abismo de miséria a que nos dirigimos sendo, então, destino suficiente para nos igualar.
“Do útero para o túmulo e um parto difícil. Lá do fundo da terra, o coveiro ajuda, lento, com o fórceps.”iii
Quem seria esse coveiro que, antes de nosso tempo justo de envelhecer, quer nos lançar do útero ao fundo da terra a fórceps, no maior número possível?iv
Godot, talvez, possa nos ajudar a esclarecer esse mistério.
Entretanto, Godot não chega.
Crianças assustadas anunciam-nos que ele virá, que a esperança há de se renovar, mas as botas apertam, a fome não dá trégua, a razão falha… Deixar esse cenário até poderia ser uma saída, se tivéssemos para onde ir, um lugar que nos acolhesse pestilentos, fedidos, famintos, miseráveis…
Isso não é possível. Ao nosso redor, somente abismos e distâncias intransponíveis.
Nada a fazer quanto a isso, portanto. Tentar forçar uma fuga, neste momento, pode nos deixar ainda mais desamparados, de calças arriadas.
Estamos ilhados no absurdo e para dar conta disso, seguimos fazendo pilhérias, brigando, externando, na tragédia e/ou na comédia, nossa indignação. Insistimos… Afinal, “estamos sempre achando alguma coisa, não é, Didi, para dar a impressão de que existimos?”v
Os muitos milhares que seguem sofrendo e morrendo confirmam que, sim, existimos. Não só que existimos, mas que existimos ainda vivos, enquanto Godot não vem.
“O apelo que ouvimos se dirige antes a toda a humanidade. Mas, neste lugar, neste momento, a humanidade somos nós, queiramos ou não. Aproveitemos enquanto é tempo. Representar dignamente, uma única vez que seja, a espécie a que estamos desgraçadamente atados pelo destino cruel.”vi
Estaria Godot morto? Ou seria ele justamente uma ausência cuja assunção seria capaz de restaurar a vida impedida pelo coveiro que nos parteja, a fórceps e aos milhares, do útero para o túmulo?
Seja como for, o tempo de espera já tarda em dar lugar ao tempo de história, os discursos e as ações devendo se organizar para bem identificar aqueles que, disseminando paranoias com miragens delirantes, sequestram nossa esperança para melhor matá-la, de fome ou por estrangulamento. E são muitos os cúmplices.
Godot, essa desesperada esperança, não virá. Urge que não o esperemos.
ii BECKETT, Samuel. Esperando Godot. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p. 88.
iii Op. cit. p. 88.
iv Op. cit. p. 88.
v Op. cit. p. 66.
vi Op. cit. p. 77.
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