Por Gabriela Rassy
Depois de cinco anos proibida em São Paulo, a Feira da Reforma Agrária do MST está de volta. Fomos até lá conversar com lideranças e comer muito bem
Te desafio a dar uma volta na Avenida Paulista, na Praia do Leme ou no Rio Vermelho durante o final de semana e não ver alguém vestido com um boné vermelho muito conhecido, ilustrado com um casal de camponeses em frente ao mapa do Brasil. Depois de exercer um papel importante na doação de alimentos durante a pandemia e na resistência contra o desmonte de Bolsonaro, mais do que nunca o MST prova que é sim, pop.
Selando esse status que o agro jamais deveria ter tomado para si, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra voltou ao Parque da Água Branca, em São Paulo, com a 4º edição da Feira Nacional da Reforma Agrária. O evento, que faz parte do calendário oficial da cidade, foi barrado pelo ex-governador João Doria e agora volta, em tempos de Tarcísio de Freitas, a ocupar o parque que recebeu as três primeiras edições.
“Embora tenha uma identidade do Tarcísio com o bolsonarismo, se elegeu em função disso, ele é governador. Na medida que eleito pela sociedade, assim como o presidente Lula”, diz Gilmar Mauro, integrante da direção nacional do MST. “Eu acho que há uma linha política interessante aqui no governo do estado e na prefeitura de São Paulo, boas conversas”, completou.
Depois de cinco anos, o evento volta ao parque a reunir milhares de camponeses de todas as regiões do Brasil, que trazem consigo 500 toneladas de alimentos na forma de 1.500 de produtos diferentes. Os mais de 1.200 feirantes chegam de Norte a Sul com produtos orgânicos, livres de veneno e mostrando o alcance da produção e da atuação do movimento.
Preservar o campo e a luta
Lindo de ver a quantidade de grãos e alimentos diferentes que são mantidos através dos bancos de sementes de cada assentamento. Na feira, algumas barracas inclusive vendiam pequenas sacas com mais de 10 tipos de grãos, entre feijões e favas, para serem cultivados. Tudo sem transgenia nem patentes genéticas de grandes multinacionais.
Lindo, mas poderia ter sido mais. Ainda que o MST tenha tido a primeira autorização para retornar ao Parque da Água Branca, isso aconteceu em um clima de tensão. No primeiro dia de evento houve interrupções no abastecimento de luz e água, taxas e alvarás de última hora e ameaças de multas altíssimas caso o parque não fosse liberado até às 22h.
O espaço Culinária da Terra, que oferecia cerca de cem pratos típicos regionais de quase todos os estados do Brasil, ficou totalmente no escuro até pelo menos às 20h no dia de abertura. O jantar foi às cegas, mas o tanto o arroz paraense como o de cuxá, típico do Maranhão, estavam deliciosos. Não há boicote elétrico que tire o sabor do nosso país.
Na pandemia, o MST doou mais de 7 mil toneladas de alimentos, 10 mil cestas básicas e 2 milhões de marmitas solidárias num enfrentamento contra a fome e a insegurança alimentar. Na Feira, o papel social segue com a doação de 25 toneladas de alimentos, pré-separadas para entidades sociais.
Ocupação que alimenta
Foram décadas vendo o MST vinculado exclusivamente e de forma simplista às invasões de terras e ao Partido dos Trabalhadores, como se o movimento fosse uma descendência do PT – imagem da qual agora suas lideranças tentam se afastar. A feira é o palco onde brilham os resultados do esforço de quase 2 mil associações e mais de 120 cooperativas, que trazem à mesa uma variedade de alimentos agro-industrializados e frescos.
E é exatamente nesse contexto que o MST pretende levantar uma reflexão: a relação entre reforma agrária e uma alimentação saudável, apresentando um novo modelo para o campo. “A nossa luta não é mais do que uma busca pela Constituição. Acreditamos que a reforma agrária seja uma das alternativas concretas para acabar com a fome”, ressalta Gilmar Mauro.
“A nossa luta não é mais do que uma busca pela Constituição. Acreditamos que a reforma agrária seja uma das alternativas concretas para acabar com a fome”
Gilmar Mauro
A feira é um reflexo vívido da intenção de apresentar de forma abrangente a reforma agrária e todo o caminho percorrido nesses quase 40 anos. “O início dessa luta se dá na ocupação de terra, é esse o vínculo que a gente também quer trazer para dentro da feira. Para esse alimento poder chegar aqui, poder massificar e efetivamente fazer com que se cumpra a função social, a gente precisa olhar lá para trás para ver de onde saiu essa primeira luta, e a luta se dá na luta pela terra, na luta pela ocupação”, relembra Ceres Hadich, também da direção nacional do MST. “O que a gente ocupou de terra estamos devolvendo para a sociedade brasileira em forma de comida.”
“O que a gente ocupou de terra estamos devolvendo para a sociedade brasileira em forma de comida”
Ceres Hadich
Não só Ceres, como o próprio João Paulo Rodrigues, responsável pela direção colegiada e membro da secretaria-geral do MST, consideram o movimento como um avanço surgido na redemocratização do Brasil. “Nós somos fruto de um processo de luta que aconteceu no Brasil que foi a redemocratização no país, na década de 1980. (…) Nós nascemos no mesmo período histórico. A CUT com os operários, o PT como partido político e o MST com a tarefa de organização dos camponeses e assim guiamos a nossa história. Com respeito, mas o MST não é correio de transmissão do PT e nem de nenhum outro partido”, afirmou João Paulo em entrevista recente ao jornalista Reinaldo Azevedo.
“A gente foi se fortalecendo e foi descobrindo com esse nosso Brasil recente como fazer a luta democrática, que é a luta pela reforma agrária, uma luta constitucional, uma luta legítima, ainda que a questão agrária já tenha mais de cinco séculos na nossa história, como uma grande dívida que nós temos com o povo brasileiro”, disse Ceres na Feira da Reforma Agrária.
Publicado originalmente no Elástica.
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